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Processo n.º 113/2014. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: A e mulher B.
Recorridos: C, D, E, F, Ministério Púbico e interessados incertos.
Assunto: Incidente de falsidade de documento suscitado em recurso jurisdicional cível.
Data do Acórdão: 5 de Novembro de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
O Tribunal de Segunda Instância, após ter proferido decisão num recurso jurisdicional cível e, antes de transitada em julgado a decisão, tendo declarado falso um documento, nos termos dos artigos 475.º, n.º 3 e 471.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, esgotou o seu poder jurisdicional quanto à causa, não podendo proferir nova decisão no recurso, anulando ou revogando a anterior.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos provados
A e mulher B intentaram acção declarativa com processo ordinário contra C, D, E, F, Ministério Púbico e interessados incertos, pedindo a declaração da titularidade do domínio útil de um imóvel sito em Macau, com o [Enderecço (1)]1.
A acção foi julgada procedente2.
Em recurso interposto pelo Ministério Público, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 16 de Janeiro de 2014, revogou a sentença, absolvendo os réus do pedido, com o fundamento de que não se demonstra que o domínio útil seja pertença de privados.
Recorreram os autores.
Entretanto, na mesma data em que interpuseram recurso do mencionado acórdão, os autores arguiram a falsidade de um documento junto com a contestação e pediram que, em consequência da declaração de tal falsidade, fosse proferida nova decisão pelo TSI sobre o objecto da causa (o recurso da sentença da 1.ª instância) ou, em alternativa, fosse anulado todo o processado após a contestação, visto ter sido com esta peça que foi junto o documento que se pretendia fosse julgado falso.
Entretanto, ficaram suspensos os termos do recurso do acórdão de 16 de Janeiro de 2014, até decisão do incidente de falsidade.
O TSI, por acórdão de 22 de Maio de 2014, deu provimento ao pedido de declaração de falsidade do documento, mas indeferiu os demais pedidos, por considerar estar esgotado o seu poder jurisdicional com o Acórdão de 16 de Janeiro de 2014.
Recorrem os autores do acórdão de 22 de Maio de 2014 (doravante designado de acórdão recorrido), na parte em que lhes foi desfavorável, isto é, na parte em que o TSI indeferiu a pretensão de que fosse proferida nova decisão pelo TSI sobre o objecto da causa (o recurso da sentença da 1.ª instância) ou, em alternativa, fosse anulado todo o processado após a contestação.
Entendem que, das disposições conjugadas dos artigos 475.º, n.º 3 e 570, n.º 1, resulta que o TSI poderia proceder à rectificação da decisão já proferida, face à decisão do incidente de falsidade.
É este o recurso que importa decidir.

II – O Direito
1. A questão a resolver
Trata-se de saber se o TSI, após ter proferido decisão num recurso jurisdicional cível e, antes de transitada em julgado a decisão, tendo declarado falso um documento, nos termos dos artigos 475.º, n.º 3 e 471.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (como serão todos os artigos adiante citados), pode/deve proferir nova decisão no recurso, anulando ou revogando a anterior.

2. Incidente de falsidade suscitado em tribunal superior quando já foi proferida decisão no recurso, mas este ainda está pendente
Com o incidente de falsidade, previsto nos artigos 471.º, 469.º, 472.º e seguintes, visa-se imputar e declarar a falsidade de um documento oferecido pela parte contrária, para que esta não o possa utilizar, para os fins próprios da prova documental, que visa a prova de factos alegados pela respectiva parte.
O incidente de falsidade é deduzido no prazo de 10 dias a contar da apresentação do documento ou nos 10 dias subsequentes à data em que a parte contrária teve conhecimento do facto que fundamenta a arguição (artigos 471.º e 469.º).
Em princípio a decisão do incidente tem lugar conjuntamente com a decisão da causa (artigo 474.º, n.º 3). Mas pode suceder que o incidente só seja suscitado após a decisão da causa, o que é sempre possível enquanto a causa estiver pendente, isto é, enquanto a decisão da causa não tiver transitado em julgado. É o que resulta do disposto do n.º 3 do artigo 475.º:
“3. Se a arguição3 tiver lugar em processo pendente de recurso, são suspensos os termos deste e, admitida a arguição, a questão é julgada no tribunal em que o processo se encontra”.
Deve dizer-se que a arguição de falsidade em recurso é rara.
É que havendo um prazo de 10 dias para arguir a falsidade, a contar da apresentação do documento, normalmente só quanto aos documentos juntos com as alegações (artigo 616.º) será possível tal arguição, sendo que a lei é bastante restritiva quanto à possibilidade de junção de documentos em recurso.
Mais raro, ainda, será o caso de arguição de falsidade após a prolação da decisão pelo tribunal de recurso, atento o mencionado prazo de 10 dias para arguição da falsidade e o tempo que medeia normalmente entre o oferecimento das alegações (artigo 613.º) com a junção de documentos, no tribunal recorrido e a prolação da decisão pelo tribunal de recurso (artigo 626.º), tempo esse que inclui a subida do processo do tribunal de 1.ª instância ao TSI, despacho liminar do relator (artigo 621.º), vista aos juízes-adjuntos (artigo 626.º), elaboração do projecto de acórdão pelo relator (artigo 626.º) e inscrição do processo em tabela para julgamento (artigo 627.º).
A questão que se põe é a de saber o que sucede se o tribunal de recurso já tiver proferido decisão sobre o recurso da causa e, entretanto, suscitada a falsidade de um documento, o mesmo tribunal tiver declarado a sua a falsidade. Pode ou deve pronunciar-se novamente sobre o recurso da causa?
Não pode.
Vigora no nosso Direito o princípio do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal. Após ter decidido certa questão, o tribunal não pode reapreciá-la. É o que resulta do disposto no artigo 569.º, n.º 1.
Há excepções a esta regra.
Quais são?
1.ª Excepção:
A rectificação de erros materiais, omissões quanto a custas, erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a lapsos manifestos (artigo 570.º, n.º 1).
O caso dos autos não se enquadra nesta situação, como é de cristalina evidência. Na norma só cabem lapsos menores, manifestos, o que não é o que se pretende: que o Tribunal julgue novamente a causa à luz do “desaparecimento” de um documento.
2.ª Excepção:
Reforma quanto a custas e multa (artigo 572.º).
3.ª Excepção:
Nulidade de sentença, prevista no artigo 571.º. Neste caso, ou pode haver recurso da decisão ou não pode. Se pode haver, argúi-se a nulidade em recurso. Se não pode, argúi-se perante o próprio tribunal.
O problema é que as nulidades da sentença são apenas as constantes do n.º 1 do artigo 571.º e aí não cabe a situação dos autos.
4.ª Excepção:
Reparação da decisão pelo tribunal recorrido em caso de recurso, quando não respeite ao mérito da causa (artigo 617.º).
Estamos fora do âmbito da norma, que só se refere a decisões do juiz de 1.ª instância. Por outro lado, o nosso caso respeita ao mérito da causa.
5.ª Excepção:
Anulação de actos processuais de que resulte a anulação de processado, incluindo a anulação da decisão (artigo 147.º, n.º 2).
Também não nos movimentamos no âmbito deste instituto, já que não foi arguida qualquer nulidade processual, nem a mesma se vislumbra.
Em suma, no caso dos autos prevalece o princípio do n.º 1 do artigo 569.º. A questão suscitada só pode ser resolvida, eventualmente, em recurso ordinário, se o houver (como se sabe, as violações de normas no julgamento de facto são passíveis de ser conhecidas pelo TUI), ou em recurso de revisão [artigo 653.º, alínea b): dado que a matéria da falsidade não foi discutida no processo; isto é, foi declarada a falsidade, sem se examinar a influência da declaração na causa].
Improcede, por conseguinte, o recurso.

III – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.
Devolva ao TSI para apreciação do requerimento de interposição de recurso do acórdão relativo ao mérito da causa.
Macau, 5 de Novembro de 2014.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

1 O pedido não era exactamente este mas acabou nele transformado, depois de uma decisão do TSI, em recurso de despacho de indeferimento liminar da acção.
2 Houve uma pretensão improcedente, mas é irrelevante, já que os autores não recorreram.
3 Da falsidade do documento
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