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Processo n.º 28/2014
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
Data da conferência: 19 de Novembro de 2014
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Interdição da entrada na RAEM
- Princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
- Perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas
- Proporcionalidade

SUMÁRIO
1. No caso de haver fortes indícios quanto à prática ou à preparação para a prática de crimes, a Administração pode decretar a interdição de entrada com fundamento na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM - art.º 12.º n.ºs 2 e 3 da Lai n.º 6/2004 e art.º 4.º n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003.
2. Com a previsão, como pressuposto da interdição de entrada, de existência de “fortes indícios” da prática do crime, não se pode falar na aplicação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, já que a exigência legal, tão só, de fortes indícios se opõe logicamente à ideia de comprovação de prática do facto ilícito.
3. Não se aplica, na matéria de interdição de entrada em virtude de existirem fortes indícios da prática do crime, os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
4. Quanto à “existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas”, exigida no n.º 3 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004 como fundamento para interdição de entrada, afigura-se-nos que a sua avaliação cabe no âmbito do poder discricionário da Administração, insindicável pelo tribunal.
5. É conferida à Administração uma margem de livre apreciação sobre se, perante a situação concreta, deve formular um juízo de prognose positivo quanto à existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas.
6. No que respeita à proporcionalidade da medida de interdição de entrada por 3 anos à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que determinam, mais uma vez estamos perante o exercício do poder discricionário da Administração.
7. Está-se perante o exercício do poder discricionário quando a Administração determina o prazo de interdição de entrada na RAEM segundo as normas legais.
8. Nos casos em que a Administração actua no âmbito do poder discricionário, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos excepcionais.
9. E só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável.
10. A intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.
  
A Relatora,
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança de 31 de Julho de 2012 que determinou, em sede do recurso hierárquico necessário, a sua interdição de entrada pelo período de 3 anos.
Por Acórdão proferido em 16 de Janeiro de 2014, o Tribunal de Segunda Instância decidiu negar provimento ao recurso.
Inconformado com a decisão, recorreu A para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) Reiteram-se, e dão-se aqui por integralmente reproduzidas as conclusões formuladas em sede de recurso contencioso; nomeadamente, mas não só, que
B) A conduta imputada ao ora recorrente não pode categorizar-se como «conduta particularmente» violenta e, por conseguinte, não configura um «perigo efectivo» (art.º 12.º, n.º 3 da Lei 6/2004) para a segurança e ordem pública, até por ser um mero acto isolado – que não permite a conclusão de que revela um traço inequívoco da personalidade do recorrente, no sentido de tornar expectável a sua repetição, ou sequer meramente provável a sua recorrência.
C) Por conseguinte, a interdição de entrada por 3 (três) anos, imposta ao Recorrente, não é proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinaram, incumprindo, portanto, com os parâmetros estabelecidos no n.º 4 do citado art.º 12.º da Lei n.º 6/2004.
D) Efectivamente, o facto da desistência de queixa por parte do alegado ofendido bem revela que tudo não passou de mera altercação sem maiores consequências, sem alarme social ou desacato de ordem pública, não bastando meras considerações subjectivas, ou conjecturas de ordem psicológica e hipotética, para aplicação da medida de interdição, para mais por um período apreciável de três anos.
E) A decisão recorrida, como anteriormente o acto recorrido, viola os princípios da presunção de inocência (consignado no art.º 29.º da Lei Básica) e do in dubio pro reo e, bem assim, as disposições dos nºs. 3 e 4 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004.
Ademais,
F) A coberto do argumento de que não está em causa a apreciação da responsabilidade penal do recorrente porque não se cura de saber se deve ser aplicada ao recorrente alguma pena ou medida de segurança, a decisão a quo convalida uma medida de cariz administrativo que, na realidade, em nada se distingue, senão na nomenclatura da sua natureza jurídica, de uma medida de segurança. Mas,
G) O facto de estarmos no âmbito do exercício da actividade administrativa não desobriga, como visto supra, a Administração de respeitar princípios derivados de direitos fundamentais, i.e., não permite à Administração ultrapassar a vinculação mínima a que está sempre sujeita, ainda que no âmbito do exercício de poderes discricionários.
H) Salvo o respeito devido julga-se ser detectável algum sofismo no percurso lógico da fundamentação da douta decisão recorrida, que ora adverte não estarmos no âmbito de uma averiguação ou acção penal – (não está em causa a apreciação da responsabilidade penal do recorrente porque não se cura de saber se deve ser aplicada ao recorrente alguma pena ou medida de segurança), – ora, adiante, justifica a decisão da Administração por se entender haver indícios de o mesmo ter praticado crime de ofensa à integridade física contra residente.
I) Isto é, por uma lado escuda-se no facto de não estarmos no âmbito de uma acção penal (caso em que teria sempre que ter em linha de conta os referidos princípios norteadores), contudo, por outro lado, aceita a “punição” imposta ao Recorrente porque considera haver indícios da prática de um crime, e que em nada se distingue, em termos práticos, de uma típica medida de segurança.
J) A decisão a quo utiliza-se da dogmática jurídica própria da ciência do Direito Penal e da jurisdição penal para sancionar o Recorrente, mas veda-lhe a protecção por via dos princípios dessa mesma dogmática porque, diz, não se trata aqui da sua «responsabilidade penal».
K) Impedindo, assim, ao Recorrente, o acesso aos direitos consagrados para todo e qualquer arguido mas, concomitantemente, atingindo a sua esfera jurídica com restrições a direitos de personalidade, como se de arguido passasse a condenado.
L) O entendimento da douta decisão recorrida, redundaria num autêntico princípio da culpabilidade presumida, ou do in dúbio pro administração, ao arrepio de todo o percurso histórico-civilizacional que desembocou na presunção de inocência e no in dubio pro reo.
M) A douta decisão a quo foi mais longe ainda, ao concluir que o recorrente tem uma personalidade mal formada ... (uma pessoa que se irrita facilmente e bastante violenta) ...
N) Tal juízo de (des)valor é intolerável, porque produzido à margem e para além de qualquer actividade probatória, acrescendo que não é de admitir um tão grave juízo sobre a personalidade de um indivíduo com base num acto isolado e praticado em circunstâncias não suficientemente esclarecidas: a desistência de queixa por parte do ofendido aponta para a probabilidade da existência de contornos fácticos de cariz justificador e ou exculpador da conduta do Recorrente, os quais não foram averiguados.
O) Efectivamente, a incipiente actividade instrutória constante dos autos – e não sujeita a devido contraditório, – é insuficiente para aquele juízo de valor sobre a personalidade do Recorrente.
P) Julga-se, portanto, que a censura que a decisão a quo produziu a respeito da personalidade do Recorrente conforma a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, por excesso de pronúncia.
Q) Efectivamente, a Administração limitou-se à recolha dos indícios factuais para o efeito da elaboração do auto de ocorrência, o que não constitui instrução (nem em termos adjectivos e processuais, nem nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 85.º e ss. do Código do Procedimento Administrativo), pelo que
R) Em face da insuficiência/inexistência de instrução, inexistem fundamentos de facto para a conclusão produzida na decisão recorrida a respeito da personalidade do Recorrente.

A entidade recorrida não apresentou contra-alegações.
E o Exm.º Procurador-Adjunto do Ministério Público emitiu o douto parecer, entendendo que se deve negar provimento ao presente recurso jurisdicional.
Foram corridos os vistos.

2. Factos Provados
Nos autos foram considerados assentes os seguintes factos com pertinência para a decisão da causa:
- No dia 16 de Janeiro de 2012, num estabelecimento de sopa de fitas, quando o recorrente estava a discutir com a sua amiga, abeirando-se do mesmo um empregado de mesa daquela loja perguntando-lhe o que queria comer, de repente, o recorrente pegou numa garrafa de cerveja com a qual deu um golpe na cabeça do tal empregado, causando-lhe ferimentos.
- Após o que fugiu do local.
- Tendo sido instaurado inquérito, mas o mesmo acabou por ser arquivado face à desistência de queixa apresentada pelo ofendido.
- Por despacho do Sr. Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, de 28/2/2012, foi determinada a interdição de entrada do recorrente na RAEM, pelo período de 3 (três) anos (cfr. fls. 43 do processo administrativo).
- Inconformado com o despacho, apresentou recurso hierárquico necessário junto do Sr. Secretário para a Segurança, tendo este proferido, em 31 de Julho de 2012, despacho no sentido de manutenção da interdição de entrada do recorrente na RAEM, pelo período de 3 anos (cfr. fls. 8 e 9 do processo administrativo).

3. Direito
Imputa o recorrente a violação dos princípios da presunção de inocência, do in dubio pro reo, das disposições dos n.ºs 3 e 4 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004, invocando ainda a nulidade do Acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso.
Vejamos se assiste razão ao recorrente.

3.1. Vamos começar pela questão de nulidade do Acórdão recorrido, por excesso de pronúncia.
Nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 571.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do art.º 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, é nula a sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Alega o recorrente que a censura que o Acórdão recorrido produziu a respeito da sua personalidade conforma a nulidade, por excesso de pronúncia, ao concluir que “o recorrente tem uma personalidade mal formada, designadamente é uma pessoa que se irrita facilmente e bastante violenta”, sendo intolerável tal juízo de desvalor, porque produzido à margem e para além de qualquer actividade probatória.
Ora, é de salientar que a nulidade invocada pelo recorrente se reporta a “questões” e não a motivações, argumentos, ou ainda opiniões.
Não obstante a proibição de excesso de pronúncia, certo é que nada impede que o tribunal forme certa convicção ou tire alguma conclusão a partir da matéria de facto provada, para a qual é legítimo.
No caso vertente, o que o Tribunal recorrido fez não é mais do que emitir, com base nos factos assentes, um juízo sobre a personalidade do recorrente.
E tal como opina o Digno Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer emitido, trata-se apenas de uma mera excrescência, compreensível em face dos factos provados e, de todo o modo, irrelevante na decisão.
Não se considera haver qualquer excesso de pronúncia por parte do Acórdão recorrido.

3.2. Sobre a violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo
Sobre a matéria ora em causa, a interdição de entrada na RAEM, dispõe o art.º 12.º da Lei n.º 6/2004 (Lei da Imigração Ilegal e da Expulsão) o seguinte:
“Artigo 12. º
Interdição de entrada
1. As pessoas a quem seja decretada a expulsão ficam, depois de esta ser concretizada, interditas de entrar na RAEM por um período a fixar na ordem de expulsão.
2. Pode igualmente ser decretada a interdição de entrada:
1) Preventiva ou sucessivamente, quando os motivos que levam à recusa de entrada, nos termos das alíneas 1) a 3) do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003, justifiquem que essa medida seja prolongada no tempo;
2) Às pessoas a quem seja revogada a autorização de permanência nos termos do n.º 1 do artigo anterior.
3. A interdição de entrada pelos motivos constantes das alíneas 2) e 3) do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003 deve fundar-se na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM.
4. O período de interdição de entrada deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam.”

No caso vertente, a interdição de entrada do recorrente foi determinada ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 12.º n.º 2, al. 1) da Lei n.º 6/2004 e 4.º n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003.
A disposição da al. 3) do n.º 2 do art.º 4.º da Lei n.º 4/2003 refere-se à circunstância de “existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes”.
Daí decorre que, no caso de haver fortes indícios quanto à prática ou à preparação para a prática de crimes, a Administração pode decretar a interdição de entrada com fundamento na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM.

Alega o recorrente que a decisão recorrida, bem como o acto administrativo impugnado, viola os princípios da presunção de inocência, consagrado no art.º 29.º da Lei Básica, e do in dubio pro reo, já que, face à extinção do procedimento penal por desistência de queixa por parte do ofendido do crime de ofensa à integridade física e à insuficiência/inexistência de instrução, não se pode entender haver indícios de o recorrente ter praticado o crime em causa.
É verdade que, segundo os princípios supra mencionados, informadores quanto à prova, todo o arguido acusado da prática de crime se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação pelo tribunal e a existência de qualquer dúvida acerca do objecto do processo tem que ser sempre valorada a favor do arguido.
Na óptica do recorrente, tais princípios aplicam-se também ao Direito Administrativo.
Ora, afigura-se-nos que a aplicabilidade desses princípios na matéria ora em causa - a interdição de entrada, fica logo afectada pela disposição da al. 3 do n.º 2 do art.º 4.º da Lei n.º 4/2003, que permite a recusa e a interdição de entrada no caso de existirem fortes indícios da prática do crime (o negrito é nosso).
Como se sabe, considera-se por fortes indícios, como conceito jurídico indeterminado que é, “os sinais de ocorrência de um determinado facto, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que o facto foi praticado pelo arguido. Esta possibilidade razoável é uma possibilidade mais positiva que negativa, ou seja, a partir das provas recolhidas se forma a convicção de que é mais provável que o arguido tenha praticado o facto do que não o tenha praticado. Aqui não se exige uma certeza ou verdade como no julgamento criminal”.1
E “tem-se entendido haver fortes indícios da prática de crime quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a condenação, já que nas fases preliminares do processo crime não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas apenas indícios”. 2
Simplificando, é de dizer que o que se demonstra com os fortes indícios é apenas uma possibilidade razoável sobre a prática de um determinado facto, e não a certeza ou verdade da prática do facto, que só pode ser confirmada com o julgamento e com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Daí que, com a previsão, como pressuposto da interdição de entrada, de existência de “fortes indícios” da prática do crime, não se pode falar na aplicação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, vigentes nomeadamente na fase de julgamento, já que a exigência legal, tão só, de fortes indícios se opõe logicamente à ideia de comprovação de prática do facto ilícito.
O que importa é que a lei não exige a prática do crime, comprovada com a decisão judicial transitada em julgado, para que um indivíduo não residente seja interdito de entrar na RAEM, sendo bastante a existência de fortes indícios quanto à prática do crime.

Por outro lado, a previsão quanto a “fortes indícios” está ligada à natureza da medida de interdição de entrada.
Na realidade, não se tratando de nenhuma pena ou medida de segurança, consequência do procedimento penal, nem de pena disciplinar como consequência do procedimento administrativo disciplinar, a interdição de entrada na RAEM é considerada como “uma medida policial de prevenção tomada em consequência da análise de personalidade e situação pessoal de um não-residente da RAEM”, para cuja determinação prevalecem mais os interesses públicos da sociedade da RAEM.3
Sendo a medida preventiva que é, a interdição de entrada não pressupõe necessariamente a prática do facto ilícito, sendo bastante a existência de fortes indícios do crime.
Resumindo, não se aplicando, na matéria de interdição de entrada em virtude de existirem fortes indícios da prática do crime, os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, não tem razão o recorrente ao invocar a sua violação.

E quanto à existência de fortes indícios da prática do crime de ofensa à integridade física, não se pode esquecer que no contencioso administrativo, em recurso jurisdicional correspondente a segundo grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância aprecia, em princípio, questão de direito e não matéria de facto, não podendo exercer censura sobre as conclusões a que o Tribunal de Segunda Instância chegou neste âmbito.
Não se afigura censurável o entendimento consignado no Acórdão recorrido no sentido de considerar que todos os elementos carreados ao processo administrativo indiciam suficientemente a prática pelo recorrente do crime em causa, não havendo dúvidas quanto à existência de fortes indícios de prática do mesmo crime, pesa embora a desistência da queixa pelo ofendido.
Improcede o argumento do recorrente.

3.3. Sobre a violação das disposições dos n.ºs 3 e 4 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004 – existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM e proporcionalidade do período de interdição de entrada
Ao abrigo das normas ora em causa, a interdição de entrada pelos motivos constantes das alíneas 2) e 3) do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003 deve fundar-se na existência de “perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM” e o período de interdição deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que determinam.
Na tese do recorrente, a sua conduta não pode categorizar-se como «conduta particularmente» violenta, não configurando um perigo efectivo para a segurança e ordem pública, até por ser um mero acto isolado. E a interdição de entrada por 3 anos não é proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade da sua conduta.

Ora, quanto à “existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas”, exigida no n.º 3 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004 como fundamento para interdição de entrada, afigura-se-nos que a sua avaliação cabe no âmbito do poder discricionário da Administração, insindicável pelo tribunal.
Vale a pena citar aqui o entendimento deste Tribunal de Última Instância expendido no seu Acórdão proferido em 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000, em que abordou um conceito semelhante previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 33.º da Lei n.º 6/97/M, segundo a qual será interdita a entrada na RAEM aos não residentes a respeito dos quais conste informações sobre “existência de fortes indícios de que constituem ameaça para a ordem pública ou para a segurança do Território”.
Neste Acórdão, considera-se como conceito indeterminado a referida “ameaça para a ordem pública ou para a segurança do Território”, que “é um juízo de avaliação da sua actividade futura, é a emissão de juízos de valor que contêm elementos subjectivos, muitos deles integrados numa prognose. Esta, …, é um raciocínio através do qual se avalia a capacidade para uma actividade futura, se imagina a evolução futura de um processo social ou se sopesa a perigosidade de uma situação futura.
Como defende J. M. SÉRVULO CORREIA4 o juízo de prognose respeita à subsunção da situação concreta no conceito encerrado na previsão da norma e não à interpretação em abstracto de tal conceito.
Assim, estabelecendo um paralelo com o exemplo referido atrás, no n.º 14, relativo a licença de instalação de um estabelecimento hoteleiro na República Federal Alemã, os conceitos indeterminados «ordem pública» e «segurança» de Macau carecem de ser interpretados e o modo do seu entendimento em abstracto é revisível pelo tribunal. Mas o juízo, perante os pressupostos de facto, sobre se o interessado constitui ou não ameaça para a ordem pública ou para a segurança de Macau é um juízo de prognose, visto que envolve uma apreciação da hipotética conduta futura do interessado5.
Quer dizer, interpretada a norma, chega-se à conclusão que a intenção da lei é a de conceder uma margem de livre apreciação à Administração, cujo mérito não deve ser sindicado pelos tribunais.
A ordem pública é o conjunto de regras que asseguram o funcionamento do Estado ou do Território, mantendo a paz e a ordem, também assegurando o bem comum, satisfazendo as necessidades colectivas6 e, mais restritamente, refere-se à tranquilidade das ruas, de forma a manter afastados quaisquer tumultos que possam perturbar os cidadãos.
Segurança de Macau é todo o conjunto de procedimentos que impedem a desestabilização das instituições.”
Seguindo de perto o entendimento supra transcrito, é de crer que, na interpretação da norma contida no n.º 3 do art.º 12.º da Lei n.º 6/2004, é conferida à Administração uma margem de livre apreciação sobre se, perante a situação concreta, deve formular um juízo de prognose positivo quanto à existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas.
No nosso caso concreto, nota-se no despacho impugnado que a Administração considera que por causa da conduta do ora recorrente, com fortes indícios de prática do crime de ofensa à integridade física, “na sua pessoa se potencia um perigo efectivo para a segurança e ordem públicas da R.A.E.M.” (cfr. fls. 20 dos autos).
Sendo insindicável pelo tribunal tal juízo de prognose, há que julgar não assistir razão ao recorrente.

No que respeita à proporcionalidade da medida em causa (interdição de entrada por 3 anos) à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que determinam, mais uma vez estamos perante o exercício do poder discricionário da Administração.
Tal como entende este Tribunal de Última Instância, a decisão de decretar a interdição de entrada “é discricionária, como também é discricionária a fixação do período de interdição de entrada, já que os conceitos a que a lei subordina o mesmo período concedem uma margem de livre apreciação à Administração (deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam). 7
Não se pode perder de vista que a medida de proibição de entrada constitui uma autêntica medida de polícia, que visa intervir no exercício de actividades individuais susceptíveis de fazerem perigar interesses gerais que se prendem concretamente com a manutenção da ordem pública e segurança da RAEM, que podem ser postos em perigo com a entrada e permanência de não residentes.
Há que ter sempre presente as razões atinentes à segurança e à ordem públicas que estão subjacentes na proibição de entrada e a natureza dessa mesma medida.
Por outro lado, estamos perante o exercício do poder discricionário quando a Administração determina o prazo de interdição de entrada na RAEM segundo as normas legais.
E nos casos em que a Administração actua no âmbito do poder discricionário, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, como é o nosso caso, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos excepcionais.
E só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável [art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC].
E a jurisprudência também entende assim, tendo este Tribunal de Última Instância decidido que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.8
Há que pôr em confronto, como já foi dito, os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto, para aferir da proporcionalidade, em sentido estrito, da medida concretamente aplicada. E só no caso de considerar inaceitável e intolerável o sacrifício é que se deve concluir pela violação do princípio da proporcionalidade.
O acto administrativo impugnado visa obviamente prosseguir um dos interesses públicos, que é prevenção e garantia da segurança, da ordem públicas e estabilidade social da RAEM e tem o fundamento legal.
Cabe à Administração da RAEM considerar e avaliar a conduta e a personalidade do recorrente, ponderar a existência de perigo que pode ser causado à segurança e ordem públicas com a entrada e permanência do recorrente e tomar a medida que considera adequada e necessária.
Tendo em conta os elementos constantes dos autos, não se afigura que a medida de proibição de entrada por 3 anos aplicada ao recorrente é manifestamente excessiva nem desproporcional.
É de concluir pela improcedência do recurso, também nesta parte.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 6 UC.
  
   Macau, 19 de Novembro de 2014
  
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho
1 Cfr. Ac. do Tribunal de Última Instância, de 27-4-2000, Proc. nº 6/2000, entre outros.
2 Cfr. Ac. do Tribunal de Última Instância, de 3-5-2000, Proc.n.º 9/2000.
3 Cfr. Ac.do Tribunal de Última Instância, de 30-7-2008, Proc. n.º 34/2007.
4 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 119.
5 Sobre a qualificação dos conceitos «ordem pública», «segurança pública» e «perturbação da ordem pública» como conceitos indeterminados puros, cfr., respectivamente, BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., p. 126 e F. AZEVEDO MOREIRA, ob. cit., p. 58.
6 Acórdão de 15.12.99, do Tribunal de Última Instância de Hong Kong (Hong Kong Special Administrative Region v. Ng Kung Siu e Lee Kin Yun).
7 Cfr. Ac.do Tribunal de Última Instância, de 9-5-2012, Proc.n.º 13/2012.
8 Cfr. Acórdão do TUI, de 15 de Outubro de 2003, Proc. n.º 26/2003, entre outros.
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