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Processo n.º 21/2014. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Secretária para a Administração e Justiça.
Recorrido: A.
Assunto: Residente permanente da RAEM. Domicílio permanente ou definitivo em Macau. Cônjuge e filhos menores. Separação de facto. Poderes discricionários. Margem de livre apreciação.
Data da Sessão: 7 de Janeiro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
   I - A Comissão Preparatória da RAEM, para efeitos de aplicação do artigo 24.º da Lei Básica, aprovou um parecer, em 16 de Janeiro de 1999 (publicado no Boletim Oficial, I Série, de 20 de Dezembro de 1999), referindo que as disposições relativas ao domicílio permanente em Macau e à residência habitual em Macau são regulamentadas pela Região Administrativa Especial de Macau quanto à sua execução na Região Administrativa Especial de Macau.
O certo é que a lei não esclarece o que entende por domicílio permanente ou definitivo em Macau.
II – Para efeitos do disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea 9), da Lei n.º 8/1999, tem domicílio permanente ou definitivo em Macau quem, além de residir habitualmente em Macau, tem aqui centrada a sua economia doméstica, quem tem em Macau o centro da sua vida profissional e familiar (ou, quem não exercendo profissão em Macau, possui meios de subsistência estáveis), quem paga os seus impostos em Macau, com intenção de aqui permanecer definitivamente.
III - Domicílio permanente, no contexto do disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea 9), da Lei n.º 8/1999, mencionado na conclusão II -, é um conceito indeterminado, sendo que na parte em que se refere ao centro da vida doméstica do residente, não confere à Administração qualquer margem de livre apreciação; já na parte em que se trata de apurar se o interessado tem intenção de permanecer definitivamente em Macau, há uma intenção de conferir à Administração uma margem de livre apreciação, por estar em causa um juízo de prognose, fundamentalmente, mas não exclusivamente, com suporte nos elementos mencionados no artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 8/1999.
IV – Para efeitos do disposto no artigo 1.º, n.º 1, alínea 9), da Lei n.º 8/1999, relativamente a um indivíduo casado, separado de facto, a circunstância de o seu cônjuge e filhos menores não residirem em Macau, não obsta a que ele tenha domicílio permanente em Macau, desde que se verifiquem os pressupostos mencionados na conclusão II.
  O Relator,
  Viriato Manuel Pinheiro de Lima



ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A (doravante designado por ora recorrido), interpôs recurso contencioso de anulação do despacho da Secretária para a Administração e Justiça (doravante designada por ora recorrente), de 9 de Janeiro de 2013, que negou provimento ao recurso hierárquico interposto de despacho do Director dos Serviços de Identificação, que lhe havia negado o estatuto de residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 10 de Outubro de 2013, concedeu provimento ao recurso, anulando o acto recorrido, por violação dos artigos 8.º, n.º 2, alínea 2) e 1.º, alínea 9) da Lei n.º 8/1999 e 24.º, alínea 5) da Lei Básica.
Inconformada, interpõe a Secretária para a Administração e Justiça recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
- O requerente é de nacionalidade irlandesa, aplicável o disposto do art. 24.º, al. 5) da Lei Básica e art.º 1º, n.º 1, al. 9) da Lei n.º 8/1999 sobre o estatuto de residente permanente de Macau.
- No entanto, no acórdão recorrido há vários sítios a manifestar que é residente permanente a pessoa que tenha residido habitualmente em Macau sete anos consecutivos. Os juízes de tribunal a quo entendem que o requerente tem habitualmente residido em Macau por sete anos consecutivos, tornando-se residente permanente de Macau, obviamente tem ignorado que o domicílio permanente em Macau também é uma condição obrigatória para tornar residente permanente, de forma que é impossível fazer um entendimento correcto ao art. 24.º, al. 5) da Lei Básica e ao art. 1º, n. º1, al. 9) e o art. 8.º da Lei n.º 8/1999.
- A recorrente entende que nos termos do art. 24.º, al. 4) e al. 5) da Lei Básica, “ter habitualmente residido em Macau por sete anos consecutivos” e “ter em Macau o domicílio permanente” são duas condições completamente independentes e indispensáveis ao mesmo tempo.
- Além do devido respeito, a recorrente totalmente discorda com o constante na decisão recorrida que os familiares próximos do requerente são dispensáveis de residirem em Macau.
- Sabe-se que o pai, a mãe e os filhos são familiares nucleares da família, pelo senso comum, nas circunstâncias gerais, os pais e os filhos devem viver juntos num mesmo país ou território, pelo que, a recorrente entende que “se os familiares próximos da família terem residido habitualmente em Macau” é elemento de referência importante para confirmar a residência permanente do requerente. Caso os familiares próximos não tenham residido habitualmente em Macau, então há forte indício a mostrar que o requerente não tem em Macau o domicílio permanente.
- Caso, em conformidade com a opinião do acórdão recorrido, os “próximos familiares” não precisam residir em Macau, esta conclusão fechada que é tirada, viola a intenção legislativa, também se priva do poder discricionário que o legislador concede à autoridade administração na aplicação de leis.
- No entanto, o acórdão recorrido manifesta que o requerente apenas precisa fazer a declaração em relação à separação, assim viola evidentemente o poder discricionário que compete à autoridade administrativa em termo de instrução.
- No caso em apreço, a questão importante para a autoridade administrativa fazer a decisão é se a declaração de separação com cônjuge é verdade ou não, no entanto, a separação de facto entre o requerente e a sua cônjuge é uma alegação por parte unilateral, sem qualquer prova substancial, o requerente explica que não é capaz de prestar prova de separação com cônjuge por motivo de evitar a partilha de bens. A autoridade administrativa não aceita esta explicação, uma vez que a tal explicação não é suficiente para justificar a não residência dos próximos familiares da parte em Macau, enquanto o requerente e o seu cônjuge mantêm o matrimónio.
- Nos termos do art.º 1532.º, n.º 2 e do art. 1553.º do Código Civil, a lei prevê que na relação matrimonial os cônjuges têm obrigação de vida em comum e coabitação. Sendo impossível de prestar a prova de separação, a declaração de separação do requerente não é suficiente para ilidir a disposição jurídica de vida em comum e coabitação entre os cônjuges.
- De facto, o requerente até agora não presta qualquer documento comprovativo para suportar que a sua declaração de ter separado com cônjuge corresponde à verdade, ainda por cima, nos autos administrativos não há qualquer documento que provasse a sua autenticidade. No entanto, sem ter feito qualquer medida de instrução à declaração de separação prestada pelo requerente, e sem ser incluindo no facto assente o estado de separação, simplesmente fundado da declaração do requerente, os juízes de tribunal a quo concluíram que “cumpriu portanto, o seu dever de informação, concomitantemente instrutório, e não pode ser prejudicado por ter dito a verdade.” (linha 3 a 5 da fls. 28 do acórdão recorrido).
- Pelo que, os juízes de tribunal a quo proferiram o acórdão sem ter fundamentos suficientes de factos, violando o disposto do art.º 571.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, o acórdão recorrido deve ser nulo.
O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.

II - Os Factos
Estão provados os seguintes factos:
1 - O recorrente do recurso contencioso requereu - e foi-lhe concedida - a “residência temporária” na R.A.E.M., através do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau (I.P.I.M.) (Proc. nº XXXX/2005/O2R), ao abrigo do Regulamento Administrativo nº 3/2005, de 4/4 que aprova, o “regime de fixação de residência temporária de investidores, quadros dirigentes e técnicos especializados”.
2 - Não obstante o disposto no art. 5.º daquele diploma, sob a epígrafe “Agregado familiar”, nunca o recorrente do recurso contencioso solicitou a autorização de residência para o seu cônjuge - de quem se encontra separado de facto desde 2004 - nem para a filha menor do casal.
3 - Tanto o cônjuge, como a sua filha permanecem, desde essa altura, na República da Irlanda, onde vivem permanentemente.
4 - A residência temporária do recorrente do recurso contencioso foi-lhe sendo sucessivamente renovada até à presente data;
5 - Altura em que recebeu dos “Serviços de Migração - Comissariado de Estrangeiros” uma guia, notificando-o de que “completou 7 anos de autorização de residência em 2012/09/15, e deve dirigir-se o mais breve possível à Direcção dos Serviços de Identificação a fim de tratar das formalidades relativas ao seu documento de identificação da R.A.E.M.”.
6 - Em 8.10.2012, o recorrente do recurso contencioso de nacionalidade irlandesa requereu, em impresso próprio, junto da Direcção dos Serviços de Identificação (DSI) a renovação do Bilhete de Identidade da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
7 - Na mesma data declarou, o seguinte:
«Declaration Statement
Date: October 8th, 2012
I, A, holder of Macau I.D.XXXXXXX (X), declare that my wife B, holder of Irish Passport #XXXXXXX, and my daughter C holder of Irish Passport #XXXXXXXXXX, do not live or reside in Macau, have not applied for, and will not apply for Macau residency. Both B and C live in Ireland permanently. I alone, A am applying for permanent residency status».
8 - E em 10/10/2012 requereu o “estatuto de residente permanente”, apresentando a declaração respectiva a que se refere o art. 8º da Lei nº 8/1999, à qual juntou os seguintes documentos:
- «Documents proving that applicant has ordinarily resided in Macao for a continuous period of not less than seven years from the day of this application (e.g. permanent resident permit or BIR)»;
- «Documents proving that applicant has ordinarily and fixed accommodation in Macao, that is, proof of purchasing his own housing or renting the house of others (the latest contract and rent receipt for the past three months)»;
- «Proofs of being employed or having stable income in Macao (e.g. evidence of employment or any other source of income)»;
- «Tax paid in Macao as required by the Law».
9 - O Director dos Serviços de Identificação, indeferiu o pedido do recorrente do recurso contencioso de residência na R.A.E.M. em virtude de “a maior parte dos membros do (seu) agregado familiar: o cônjuge e a filha, não residirem em Macau”.
10 - O recorrente do recurso contencioso apresentou recurso hierárquico para a Secretária para a Administração e Justiça.
11 - Foi proferido nessa ocasião o seguinte parecer nº XX/GAD/2012 (fls. 15 dos autos):
«Exma. Senhora Secretária para a Administração e Justiça
Tendo esta Direcção de Serviços recebido em 23.11.2012, o recurso dirigido à Senhora Secretária para a Administração e Justiça, interposto pelo advogado D, na qualidade de procurador do Sr. A contra a decisão da DSI, de 15.10.2012, que indeferiu o requerimento apresentado pelo ora recorrente, relativo à “Declaração em como tem o domicílio permanente em Macau”, cumpre a esta Direcção de Serviços prestar o seguinte parecer, nos termos do artigo 159.º do Código do Procedimento Administrativo:
I. APRESENTAÇÃO DE FACTOS
1. O ora recorrente, A, natural de Irlanda, onde nascido em XX de Setembro de 19XX, portador de passaporte irlandês, n.º XXXXXXX, em 2005 requereu a residência em Macau por investimento, e foi autorizada a sua residência temporária em Macau, por despacho do Chefe do Executivo, de 16.09.2005.
2. Em conformidade com o aludido despacho do Chefe do Executivo, o Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública emitiu-lhe em 20 de Outubro de 2005 a Guia de Autorização de Residência (XX-XXXXXX-IPIM), e com base neste documento, o ora recorrente requereu à DSI, no mesmo dia (20 de Outubro de 2005), a emissão do Bilhete de Identidade de Residente Não Permanente n.º XXXXXXX(X)..
3. Em 12 de Dezembro de 2011, o ora recorrente recebeu a notificação do Serviço de Migração do CPSP, informando do tratamento das formalidades relativas ao seu documento de identificação da RAEM, na DSI, a partir de 15 de Setembro de 2012, data em que o ora recorrente completa 7 anos consecutivos de residência em Macau.
4. Em 8 de Outubro de 2012, o ora recorrente requereu perante a DSI a emissão do Bilhete de Identidade de Residente Permanente e no mesmo dia prestou a “Declaração em como tem o seu domicílio permanente em Macau”, nos termos do previsto no artigo 8.º da Lei n. 08/1999.
5. Nos termos do artigo 8.º da Lei n.º 8/1999, para referência da DSI na apreciação do requerimento “Declaração em como tem o domicílio permanente em Macau”, o requerimento deve ser instruído com os seguintes elementos:
(1) Prova de que Macau é local da sua residência habitual;
(2) Prova de que Macau é local de residência habitual de familiares próximos;
(3) Prova da existência de meios de subsistência estáveis ou do exercício de profissão em Macau; e
(4) Prova do pagamento de imposto nos termos da lei.
6. Em 10 de Outubro de 2012, o ora recorrente apresentou à DSI os documentos acima referidos nas alíneas (1), (3) e (4) (designadamente: certidão de registo predial, provas de contribuição predial e imposto profissional e certidão de trabalho passada pela empresa “E”) e prestou declaração escrita sobre a situação de residência dos seus familiares próximos.
7. O ora recorrente afirma que a sua esposa, B, e a sua filha, C, que desde sempre vivem na Irlanda, não residem em Macau nem têm planos para requerer autorização de residência em Macau.
8. Pelo facto de os familiares próximos (cônjuge e filha) do ora recorrente não terem residência habitual em Macau, não estão satisfeitos os requisitos previstos no artigo 8.º da Lei n.º 8/1999, o que se torna impeditivo proceder ao reconhecimento de que o ora recorrente tem domicílio permanente em Macau. O ora recorrente foi notificado da decisão da DSI, de 15.10.2012, sobre a não aceitação da declaração por ele prestada em como tem o seu domicílio permanente em Macau (através do Oficio n.º XXXX/DIR/2012 (W/P), datado de 17.10.2012).
9. Não concordando com a decisão da DSI, em 29 de Outubro de 2012 o ora recorrente solicitou, telefonicamente, à DSI um esclarecimento para saber por que motivo foi sido indeferido o seu pedido e explicou que ele e a sua mulher se separaram por muitos anos, justificando que caso venha a formalizar o divórcio, implicará a partilha de bens, sendo, por isso, que agora não podia tratar do divórcio. Em 6 de Novembro de 2012, a DSI notificou o ora recorrente, também por via telefónica, da manutenção da decisão do indeferimento.
II. ANÁLISE JURÍDICA
Nos termos do previsto na alínea 9) do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 8/1999, ao ora recorrente é exigida a residência habitual por um período de 7 anos consecutivos em Macau e aqui tem o seu domicílio permanente para adquirir o estatuto de residente permanente, assim sendo, é imprescindível que o ora recorrente preencha cumulativamente esses dois requisitos: residência habitual em Macau por um período de 7 anos consecutivos e declaração em como tem o domicílio permanente em Macau.
Quanto ao segundo requisito sobre “declaração em como tem o domicílio permanente em Macau”, a Lei n.º 8/1999, no seu artigo 8.º (Reconhecimento do domicílio permanente),n.º 2, define:
“2. Na declaração prevista no número anterior, feita pelos indivíduos referidos nas alíneas 7), 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º, devem constar, para referência da DSI na apreciação do requerimento, os seguintes elementos:
1) Ser Macau o local da sua residência habitual;
2) Ser Macau o local de residência habitual de familiares próximos, nomeadamente o cônjuge e os filhos menores;
3) A existência de meios de subsistência estáveis ou o exercício de profissão em Macau;
4) O pagamento de impostos nos termos da lei.”
Nestes termos, cabe à DSI proceder à consideração e análise completa dos documentos e alegações apresentadas pelo requerente para determinar se o requerente tem ou não domicílio permanente em Macau. No que se refere na alínea 2), de uma regra geral, o requerente e os seus familiares próximos residem normalmente no mesmo país ou região, por esta razão que a residência habitual dos familiares próximos do requerente é factor preponderante na análise para saber se o requerente tem ou não residência habitual em Macau. Quando existem razões especiais que justificam a ausência de Macau dos familiares próximos, como por exemplo encontra-se a submeter a tratamento clínico no exterior de Macau ou a necessidade de acompanhar os filhos menores a estudar no exterior de Macau, a DSI fará a análise em função das circunstâncias concretas.
Embora estejam satisfeitos os requisitos especificados nas alíneas 1), 3) e 4), o ora recorrente manifestou na declaração apresentada em 10.10.2012, nas alegações verbais de 29.10.2012 e no recurso interposto em 27.11.2012 que a sua mulher e a sua filha vivem desde sempre na Irlanda e não têm nem terão a intenção de fixarem residência em Macau. Manifestou ainda o ora recorrente que se separou da mulher há anos e por questão da partilha de bens não prefere tratar do divórcio, entretanto, numa situação em que se verifica ainda relação conjugal com a mulher, a DSI considera que o motivo invocado pelo ora recorrente não é razoável para justificar por que os familiares próximos não residem em Macau. De facto, a situação da residência da cônjuge não será ponderada se se verificar o divórcio.
Face ao exposto, o ora recorrente não reúne os requisitos previstos na alínea 2) do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 8/1999, o que se torna impeditivo proceder ao reconhecimento do domicílio permanente em Macau do mesmo, pelo que a DSI decidiu não aceitar a declaração por ele prestada em como tem o seu domicílio permanente em Macau.
Face ao acima expendido, vimos, mui respeitosamente, solicitar a Senhora Secretária que mantenha a decisão da DSI.»
12 - A Secretária para a Administração e Justiça (S.A.J.) manteve aquela decisão, nos termos seguintes (fls. 15):
«1. Concordo com a análise e os fundamentos constantes do presente Parecer.
2. Não aceitando a “declaração em como tem o domicílio permanente em Macau” prestada pelo recorrente, mantenho a decisão da DSI».


III – O Direito
1. As questões suscitadas e a apreciar
Apreciar-se-á se o acórdão recorrido incorreu em nulidade por falta de fundamentação de facto e se violou o disposto nos artigos 8.º, n.º 2, alínea 2) e 1.º, alínea 9) da Lei n.º 8/1999, 24.º, alínea 5) da Lei Básica e 21.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Administrativo Contencioso.

2. Separação de facto do ora recorrido e seu cônjuge como facto assente.
O ora recorrido é cidadão irlandês e obteve o estatuto de residente temporário em Macau desde 2005, ao abrigo do regime de fixação de residência temporária de investidores, quadros dirigentes e técnicos especializados.
O seu cônjuge e filha menor residem na Irlanda e nunca residiram em Macau.
O ora recorrido alegou no procedimento administrativo estar separado de facto do cônjuge.
Os serviços da Direcção dos Serviços de Identificação entenderam que o motivo indicado pelo ora recorrido para estar separado de facto e não divorciado (questões de partilha de bens) não é razoável para justificar por que os familiares próximos não residem em Macau. E assim também entendeu a entidade recorrida.
Na petição inicial do recurso contencioso o ora recorrido afirmou estar separado de facto do cônjuge desde 2004.
Na contestação do recurso contencioso, a entidade recorrida não impugnou este facto.
Por isso, nos termos do artigo 54.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, o acórdão recorrido deu o facto como assente ou provado.
Nas suas alegações neste recurso jurisdicional, parece querer vir a entidade recorrida, ora recorrente, reabrir a discussão acerca do facto em questão.
Mas tal discussão ficou definitivamente encerrada com a prolação do acórdão recorrido. Na verdade, o TUI, em recursos jurisdicionais do TSI, como é o nosso caso, não tem poder de cognição em matéria de facto (artigos 47.º, n.º 1, da Lei de Bases da Organização Judiciária e 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso).
Logo, temos por assente a matéria de facto considerada provada pelo acórdão recorrido, designadamente, que o ora recorrido está separado de facto do cônjuge desde 2004.

3. Fundamentação de facto
A ora recorrente entende que o acórdão recorrido incorreu em nulidade por falta de fundamentação de facto, isto porque considerou provada a separação de facto com base na declaração do ora recorrido, prestada no procedimento administrativo.
Mas não é assim, como se disse atrás. O facto foi considerado provado porque alegado na petição e não impugnado na contestação, pela entidade recorrida.

4. Os requisitos para obtenção do estatuto de residente permanente da RAEM.
Imputa a ora recorrente a violação do disposto nos artigos 8.º, n.º 2, alínea 2) e 1.º, alínea 9) da Lei n.º 8/1999, 24.º, alínea 5) da Lei Básica e 21.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Administrativo Contencioso ao acórdão recorrido.
O ora recorrido é cidadão irlandês e obteve o estatuto de residente temporário em Macau desde 2005, ao abrigo do regime de fixação de residência temporária de investidores, quadros dirigentes e técnicos especializados.
Dispõe o artigo 24.º da Lei Básica:
“Artigo 24.º
Os residentes da Região Administrativa Especial de Macau, abreviadamente denominados como residentes de Macau, abrangem os residentes permanentes e os residentes não permanentes.
São residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau:
1) Os cidadãos chineses nascidos em Macau antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, bem como os seus filhos de nacionalidade chinesa nascidos fora de Macau;
2) Os cidadãos chineses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, e os seus filhos de nacionalidade chinesa nascidos fora de Macau, depois de aqueles se terem tornado residentes permanentes;
3) Os portugueses nascidos em Macau que aí tenham o seu domicílio permanente antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau;
4) Os portugueses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, e aí tenham o seu domicílio permanente;
5) As demais pessoas que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, e aí tenham o seu domicílio permanente;
6) Os filhos dos residentes permanentes referidos na alínea 5), com idade inferior a 18 anos, nascidos em Macau antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau.
As pessoas acima referidas têm direito à residência na Região Administrativa Especial de Macau e à titularidade do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau.
Os residentes não permanentes da Região Administrativa Especial de Macau são aqueles que, de acordo com as leis da Região, tenham direito à titularidade do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, mas não tenham direito à residência”.
A Lei n.º 8/1999, de 19 de Dezembro, veio estatuir sobre os conceitos de residente permanente e residente não permanente da RAEM e regulamentar o acesso a estes estatutos jurídicos.
No artigo 1.º dispõe-se sobre quem são os residentes permanentes, da seguinte forma:
“Artigo 1.º
Residentes permanentes
  1. São residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau, abreviadamente designada por RAEM:
  1) Os cidadãos chineses nascidos em Macau, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, se o pai ou a mãe, à data do seu nascimento, residia legalmente ou tinha adquirido o direito de residência em Macau;
  2) Os cidadãos chineses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM;
  3) Os filhos dos residentes permanentes referidos nas alíneas 1) e 2), de nacionalidade chinesa e nascidos fora de Macau, se à data do seu nascimento o pai ou a mãe satisfazia os critérios previstos na alíneas 1) ou 2);
  4) Os indivíduos nascidos em Macau antes ou depois do estabelecimento da RAEM, de ascendência chinesa e portuguesa, que aqui tenham o seu domicílio permanente, se à data do seu nascimento, o pai ou a mãe residia legalmente ou tinha adquirido o direito de residência em Macau;
  5) Os indivíduos de ascendência chinesa e portuguesa, que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, e aqui tenham o seu domicílio permanente;
  6) Os filhos dos residentes permanentes referidos nas alíneas 4) e 5), de nacionalidade chinesa ou que ainda não tenham feito opção de nacionalidade, nascidos fora de Macau e que aqui tenham o seu domicílio permanente, se o pai ou a mãe, à data do seu nascimento, satisfazia os critérios previstos nas alíneas 4) ou 5);
  7) Os portugueses nascidos em Macau, antes ou depois do estabelecimento da RAEM e que aqui tenham o seu domicílio permanente, se à data do seu nascimento, o pai ou a mãe já residia legalmente ou tinha adquirido o direito de residência em Macau;
  8) Os portugueses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, e aqui tenham o seu domicílio permanente;
  9) As demais pessoas que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos antes ou depois do estabelecimento da RAEM, e aqui tenham o seu domicílio permanente;
  10) Os filhos dos residentes permanentes referidos na alínea 9), nascidos em Macau, de idade inferior a dezoito anos, se à data do seu nascimento, o pai ou a mãe satisfazia os critérios previstos na alínea 9).
  2. O nascimento em Macau prova-se por registo de nascimento emitido pela conservatória competente de Macau”.

   O artigo 4.º é do seguinte teor:
“Artigo 4.º
Residência habitual
1. Um indivíduo reside habitualmente em Macau, nos termos da presente lei, quando reside legalmente em Macau e tem aqui a sua residência habitual, salvo o previsto no n.º 2 deste artigo.
2. Considera-se que um indivíduo não reside em Macau numa das seguintes situações:
1) Se entrou em Macau ilegalmente;
2) Se permanece em Macau ilegalmente;
3) Se apenas tem autorização de permanência;
4) Se permanece em Macau na qualidade de refugiado;
5) Se permanece em Macau na qualidade de trabalhador não residente;
6) Se é membro de posto consular recrutado não localmente;
7) Se, após a entrada em vigor da presente lei, for sujeito a prisão por sentença condenatória transitada em julgado ou a prisão preventiva, salvo posterior absolvição;
8) Outros casos previstos em diplomas legais.
3. Para os efeitos do estatuto de residente permanente referido nas alíneas 2), 5), 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º e da perda do direito de residência referida no n.º 2 do artigo 2.º, a ausência temporária de Macau não determina que se tenha deixado de residir habitualmente em Macau.
4. Para a determinação da residência habitual do ausente, relevam as circunstâncias pessoais e da ausência, nomeadamente:
1) O motivo, período e frequência das ausências;
2) Se tem residência habitual em Macau;
3) Se é empregado de qualquer instituição sediada em Macau;
4) O paradeiro dos seus principais familiares, nomeadamente cônjuge e filhos menores.
5. Os sete anos consecutivos referidos nas alíneas 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º, são os sete anos consecutivos imediatamente anteriores ao requerimento do estatuto de residente permanente da RAEM”.
Por sua vez, o artigo 8.º do mesmo diploma legal estatui o seguinte:
“Artigo 8.º
Reconhecimento do domicílio permanente
1. Ao requerer o estatuto de residente permanente, os indivíduos referidos nas alíneas 4) a 9) do n.º 1 do artigo 1.º devem assinar uma declaração em como têm o seu domicílio permanente em Macau.
2. Na declaração prevista no número anterior, feita pelos indivíduos referidos nas alíneas 7), 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º, devem constar, para referência da DSI na apreciação do requerimento, os seguintes elementos:
1) Ser Macau o local da sua residência habitual;
2) Ser Macau o local de residência habitual de familiares próximos, nomeadamente o cônjuge e os filhos menores;
3) A existência de meios de subsistência estáveis ou o exercício de profissão em Macau;
4) O pagamento de impostos nos termos da lei.
3. Se existirem dúvidas sobre as declarações prestadas, nos termos do n.º 1, pelos indivíduos referidos nas alíneas 4), 5) e 6) do n.º 1 do artigo 1.º, a DSI pode solicitar comprovativos dos elementos referidos no número anterior”.

Não sofre dúvida que a situação do recorrente é a prevista nos artigos 24.º, alínea 5) da Lei Básica e 1.º, n.º 1, alínea 9), da Lei n.º 8/1999.
  Na versão em língua portuguesa, esta última norma estabelece como requisitos para a obtenção do estatuto de residente permanente:
  1) A residência habitual em Macau, pelo menos durante sete anos consecutivos antes ou depois do estabelecimento da RAEM
  2) O domicílio permanente em Macau.
  No entanto, na sua versão em língua chinesa, exactamente como consta do artigo 24.º, alínea 5) da Lei Básica, a tradução fiel não é de domicílio permanente em Macau, mas mais aproximadamente, domicílio definitivo em Macau. Isto é, a versão da Lei Básica aponta para o estabelecimento definitivo do domicílio em Macau.
Já XIAO WEIYUN1 advertia «Ora, que significa "ter o seu domicílio permanente em Macau"? Quais são as situações em que uma pessoa não "tem o seu domicílio permanente em Macau"? No futuro, deve haver leis na RAEM para definir o sentido e o alcance destes conceitos, a fim de que o n.º 2 do artigo 24.° da Lei Básica de Macau possa ser concretizado» .
  É indisputado que o recorrente teve residência habitual em Macau durante sete anos consecutivos.
  A dúvida está em saber se o recorrente tem em Macau o seu domicílio permanente, com esta ideia de domicílio definitivo.

5. Domicílio permanente em Macau.
A Comissão Preparatória da RAEM, para efeitos de aplicação do artigo 24.º da Lei Básica, aprovou um parecer, em 16 de Janeiro de 1999 (publicado no Boletim Oficial, I Série, de 20 de Dezembro de 1999), referindo que as disposições relativas ao domicílio permanente em Macau e à residência habitual em Macau são regulamentadas pela Região Administrativa Especial de Macau quanto à sua execução na Região Administrativa Especial de Macau.
O certo é que a lei não esclarece o que entende por domicílio permanente ou definitivo em Macau.
Contudo, o artigo 8.º, atrás citado, para efeitos de instrução procedimental, dispõe que ao requerer o estatuto de residente permanente, os indivíduos referidos nas alíneas 4) a 9) do n.º 1 do artigo 1.º devem assinar uma declaração em como têm o seu domicílio permanente em Macau, para referência da DSI na apreciação do requerimento.
Ora, para os indivíduos mencionados nas alíneas 4) a 9) do n.º 1 do artigo 1.º, a lei estabelece como requisito para a obtenção do estatuto de residente o domicílio permanente em Macau.
  E, em tal declaração, devem constar os seguintes elementos:
1) Ser Macau o local da sua residência habitual;
2) Ser Macau o local de residência habitual de familiares próximos, nomeadamente o cônjuge e os filhos menores;
3) A existência de meios de subsistência estáveis ou o exercício de profissão em Macau;
4) O pagamento de impostos nos termos da lei.
  
Deste modo, o preceito, ao impor obrigações ao interessado, para efeitos da apreciação do seu domicílio permanente ou definitivo em Macau, pelo órgão administrativo, fornece pistas sobre este mesmo conceito.
Explica LUO WEIJIAN2: “O domicílio permanente é o local onde uma pessoa reside com a intenção de ali permanecer por longo período de tempo. Em princípio, uma pessoa pode ter várias residências, entendidas estas como o local onde ele reside não para permanecer por longo período, antes por períodos transitórios, mas só pode ter um único domicílio, isto é, o local onde se estabelece permanentemente. A determinação do domicílio permanente é feita através da presunção de factos, por um lado, e através da declaração expressa da própria pessoa, por outro. De acordo com as disposições da Lei sobre Residente Permanente e Direito de Residência, o requerente declara primeiro que tem o seu domicílio permanente em Macau, e depois, tem que fornecer os respectivos elementos para provar, nomeadamente: ser Macau o local da sua residência habitual; ser Macau o local de residência habitual de familiares próximos, nomeadamente o cônjuge e os filhos menores; a existência de meios de subsistência estáveis ou o exercício de profissão em Macau; e o pagamento de impostos nos termos da lei”.
Como vimos, a Lei Básica aponta para que o conceito de domicílio permanente seja o domicílio definitivo da pessoa.
No fundo, parece estar em causa alguma coisa semelhante ao entendimento do conceito de domicílio na orientação mais antiga e tradicional, a que alude CASTRO MENDES3:
“Tradicionalmente, entendia-se que o domicílio é um conceito que, como a posse, exigiria dois elementos: um objectivo ou material, corpus, actos ou factos significativos de ligação com um local; outro subjectivo e espiritual, animus, a intenção de ter certa terra como seu centro de vida (animus morandi, ou animus manendi, permanendi)”.
Parece-nos ajustada esta doutrina ao conceito interpretando.
Assim, afigura-se-nos que se deve considerar que tem domicílio permanente ou definitivo em Macau quem, além de residir habitualmente em Macau, tem aqui centrada a sua economia doméstica, (quem tem em Macau o centro da sua vida profissional e familiar ou, quem não exercendo profissão em Macau, possui meios de subsistência estáveis), quem paga os seus impostos em Macau, com intenção de aqui permanecer definitivamente.
Mas, ao contrário do entendimento da ora recorrente, consideramos que as várias alíneas atrás citadas são meros indícios da existência de residência permanente em Macau por parte do interessado, com vista à apreciação da sua situação pela Direcção dos Serviços de Identificação (“para referência da DSI na apreciação do requerimento”) e não requisitos cumulativos do conceito de domicílio permanente.
Por outro lado, afigura-se-nos que a Administração, no seu poder de interpretação e de aplicação do artigo 1.º, n.º 1, alínea 9) da Lei n.º 8/1999, tem todo o poder de considerar quaisquer factos que entenda pertinentes e que entenda relevarem para integrarem o conceito de domicílio permanente em Macau, mesmo que não constem do elenco do artigo 8.º, n.º 2, da mesma Lei.
E os tribunais têm o poder de fiscalizarem tal interpretação e aplicação da lei, como se dirá melhor adiante.
Assim, estamos certos que para um indivíduo casado, separado de facto, a circunstância de o seu cônjuge e filhos menores não residirem em Macau, não obsta a que ele tenha domicílio permanente em Macau, desde que, além de residir habitualmente, tenha aqui centrada a sua economia doméstica, o centro da sua vida profissional e familiar (ou, quem não exercendo profissão em Macau, possui meios de subsistência estáveis), pague os seus impostos em Macau, com intenção de aqui permanecer definitivamente.
Na verdade, a própria norma indica que o cônjuge e os filhos menores são, apenas, duas categorias familiares (com fonte, respectivamente, no casamento e no parentesco no 1.º grau da linha recta), entre outras (“nomeadamente”) que o órgão administrativo tem de atender para concluir se o interessado tem domicílio permanente em Macau, conjuntamente com os restantes elementos previstos no preceito (local da sua residência habitual, a existência de meios de subsistência estáveis ou o exercício de profissão em Macau e o pagamento de impostos).
Nem podia ser de outro modo, já que, mesmo um indivíduo casado, pode viver com outros membros da família, como avós, pais, tios, netos, adoptantes, padrastos, etc. e não necessariamente com o cônjuge e os filhos menores, por uma multiplicidade de razões, que vão desde o exercício de profissão ou outra actividade por parte do cônjuge, até ao estudo dos filhos, que impossibilitem que vivam permanentemente juntos.

6. Discricionariedade, conceitos indeterminados e margem de livre apreciação
Veio a ora recorrente defender nas alegações de recurso jurisdicional uma tese nova, isto é, que ainda não tinha sustentado no processo: a de que a Administração exerce poderes discricionários quando reconhece a residência permanente na RAEM a um residente temporário, que tenha tido residência habitual em Macau durante os sete anos consecutivos imediatamente anteriores ao requerimento para aceder àquele estatuto.
  Vejamos.
  Dispensamo-nos aqui de distinguir entre o exercício de poderes vinculados e discricionários por parte da Administração. Fizemo-lo, desenvolvidamente, no acórdão de 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000, em termos que continuam a merecer a nossa adesão.
Ao contrário do que a ora recorrente sustenta, quando, no artigo 8.º da Lei n.º 8/1999, se dispõe que, ao requerer o estatuto de residente permanente, os indivíduos referidos nas alíneas 4) a 9) do n.º 1 do artigo 1.º devem assinar uma declaração, de que constam vários elementos, em como têm o seu domicílio permanente em Macau, para referência da DSI na apreciação do requerimento, não se pretende conferir nenhum poder discricionário à Administração para definir quem deve ser e quem não deve ser residente permanente, sem prejuízo do que adiante (n.º 7) se dirá, a propósito do poder conferido à Administração na conclusão de que o interessado tem ou não intenção de permanecer definitivamente em Macau, no âmbito da apreciação do requisito domicílio permanente, mencionado na alínea 9) (e noutras alíneas) do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 8/1999.
O que se pretende é facilitar a instrução procedimental, já que a Administração não tem poderes policiais ou investigatórios da situação privada e familiar das pessoas. Por isso, a lei obriga os interessados, que querem obter o estatuto de residente permanente, a colaborar com a Administração, fornecendo-lhe elementos que de outra forma seriam difíceis de obter por parte desta.
Interessa, no entanto, recordar o que então dissemos no nosso acórdão de 3 de Maio de 2000, a propósito dos conceitos indeterminados, face ao conceito de “domicílio permanente”, embora não tenha sido neste ponto que a ora recorrente se baseou para defender a existência de margem de livre apreciação por parte da Administração.
Dissemos aí:
“Importa, agora, distinguir a discricionariedade dos conceitos indeterminados.
Para tal, afigura-se conveniente partir da natureza do poder discricionário.
Sobre esta questão, existem, fundamentalmente três teses4.
Para uma, a discricionariedade consiste na liberdade da Administração na interpretação de conceitos vagos e indeterminados.
Para outra, a discricionariedade é, basicamente, vinculação da Administração a normas extrajurídicas que podem ser técnicas, científicas ou normas de boa administração.
Outra tese, que é a adoptada pela generalidade da doutrina, vê na discricionariedade uma liberdade de decisão reconhecida por lei à Administração, a fim de que esta escolha entre vários comportamentos possíveis o que lhe aparecer mais adequado à prossecução do interesse público.
Apreciemos a figura dos conceitos indeterminados.
Como refere ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA5 a expressão conceito indeterminado pretende referir aqueles conceitos que se caracterizam por um elevado grau de indeterminação. A estes opõem-se os conceitos determinados, sendo os relativos a medidas (metro, litro, hora) ou a valores monetários (pataca, dólar norte-americano) os conceitos mais determinados.
Quase todos os conceitos jurídicos contêm algum grau de indeterminação, de tal sorte que PHILLIP HECK6 sublinhou que os conceitos absolutamente determinados seriam muito raros no direito.
A utilização pelo legislador de conceitos indeterminados constitui expediente de que aquele se serve por motivos vários, como para «permitir a adaptação da norma à complexidade da matéria a regular, às particularidades do caso ou à mudança das situações, ou para facultar uma espécie de osmose entre as máximas ético-sociais e o Direito, ou para permitir levar em conta os usos do tráfico, ou, enfim, para permitir uma “individualização” da solução7».
ROGÉRIO SOARES8 acentua que o legislador utiliza prodigamente os conceitos indeterminados perante as complexidades da sociedade moderna.
Pois bem, a distinção fundamental entre discricionariedade e conceitos indeterminados está em que, enquanto no primeiro caso, o órgão tem uma liberdade actuação quanto a determinado aspecto, no segundo caso estamos perante uma actividade vinculada, de mera interpretação da lei, com base nos instrumentos da ciência jurídica.
Aqui, nos conceitos indeterminados, não há liberdade. Logo que se apure qual a interpretação correcta da norma - e em direito só há uma interpretação correcta em cada caso – o aplicador da lei tem de a seguir necessariamente.
Por isso, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA9referiu que «a discricionariedade começa onde acaba a interpretação».
Deste modo, quando se conclua que a tarefa a efectuar é apenas a de interpretar a lei, o tribunal pode fiscalizar a aplicação do direito feita pela Administração.
No entanto, a doutrina cedo detectou que ao lado dos conceitos indeterminados que se traduzem na mera interpretação da lei, há um outro grupo de situações em que se mostra que a intenção da lei é a de pretender «deixar ao órgão administrativo a escolha dos pressupostos quando os define através de noções vagas ou indeterminadas10».
Este segundo grupo é que J. M. SÉRVULO CORREIA11 considera que são os verdadeiros conceitos indeterminados, ou conceitos indeterminados puros.
A doutrina alemã, a partir dos anos cinquenta avançou com a construção de doutrinas com vista a delimitar os casos em que a aplicação de conceitos indeterminados envolve o exercício de capacidade de apreciação própria da Administração, não sindicável pelos tribunais.
Foi assim que BACHOF lançou a célebre teoria da margem de livre apreciação, definindo-a como o âmbito dentro do qual se reserva à Administração uma margem para a livre apreciação dos pressupostos da sua actuação. Para o Professor alemão nem todo o conceito indeterminado confere uma margem de livre apreciação à Administração, sendo ao legislador que incumbe escolher os casos em que assim sucederá.12
Posteriormente, WALTER SCHMIDT, veio defender que «a avaliação de pressupostos que integram a situação concreta, para efeito da sua subsunção em conceitos indeterminados que figuram na hipótese da norma, reduz-se sempre a um problema de prognose, quer se trate de avaliação de qualidades de pessoas ou coisas, quer, directamente, da estimativa sobre a evolução futura de processos sociais…
À luz desta construção, a «margem de livre decisão» reduz-se aos casos de discricionariedade e de aplicação isolada de conceitos de prognose: a aplicação de todos os outros elementos do «Tatbestand» de uma norma jurídica é inteiramente sindicável pelos tribunais»13.
Seguindo a doutrina de WALTER SCHMIDT, J. M. SÉRVULO CORREIA14 explicitou que «a aplicação do conceito indeterminado tipo ao caso concreto (Anwendung) envolve a emissão de juízos de valor que inevitavelmente contêm elementos subjectivos, muitos deles integrados numa prognose. A prognose é um raciocínio através do qual se avalia a capacidade para uma actividade futura, se imagina a evolução futura de um processo social ou se sopesa a perigosidade de uma situação futura…
O juízo de prognose respeita à subsunção da situação concreta no conceito encerrado na previsão da norma (Tatbestand) e não à interpretação em abstracto de tal conceito. Assim, por exemplo, vigora na República Federal (Alemã) uma norma jurídica que determina que deverá ser recusada a licença de instalação de um estabelecimento hoteleiro quando os factos (Tatsachen) justificarem a suposição de que o requerente não merece confiança (Zuverlässigkeit) necessária para o desempenho de tal actividade industrial. O conceito indeterminado «confiança» carece de ser interpretado e o modo do seu entendimento em abstracto é revisível pelo tribunal. Mas o juízo, perante os pressupostos de facto, sobre se o requerente merece ou não a necessária confiança é um juízo de prognose, visto que envolve uma apreciação da hipotética conduta futura do requerente no desempenho da actividade pretendida».
Acresce que, para o mesmo autor, os conceitos indeterminados do 1.º tipo, que não envolvam juízos de prognose são determinados, porque o seu conteúdo é apurável através de métodos teorético-discursivos.15
Por outro lado, aos conceitos indeterminados do 2.º tipo, aqueles em que se revela a intenção de conferir uma margem de livre apreciação à Administração, devem aplicar-se as regras já estudadas a propósito dos limites e da fiscalização judicial do exercício de poderes discricionários16, afirmando-se que, embora estruturalmente diferenciáveis, discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados são unificáveis em termos de regime jurídico 17”.
Também MÁRIO AROSO DE ALMEIDA18, mais recentemente, afirma substancialmente o mesmo:
“A primeira dificuldade que, neste domínio, se coloca prende-se com a necessidade de delimitar os casos em que a utilização de conceitos imprecisos na previsão legal dos pressupostos tem o alcance de conferir poderes de valoração próprios ao agente administrativo. A melhor doutrina parece já ter, no entanto, demonstrado que isso não sucede quando o legislador utiliza conceitos passíveis de serem preenchidos segundo critérios jurídicos ou recorrendo a conhecimentos da experiência comum, assim como também não sucede quando o legislador se limita a remeter para critérios de natureza técnica de aplicação objectiva, que, embora envolva o recurso a conhecimentos não jurídicos, pode ser, por isso, sindicada pelo tribunal, designadamente através do recurso à prova pericial.
Só deve, assim, entender-se que a utilização de conceitos imprecisos na previsão legal dos pressupostos tem o alcance de conferir poderes de valoração próprios ao agente administrativo quando o preenchimento de tais conceitos exige do agente administrativo a formulação de juízos de valor ou de prognose que exprimam o exercício infungível da função administrativa. É, pois, apenas neste circunscrito universo de situações que se deve admitir que, como o legislador confere poderes próprios de apreciação ao agente administrativo, o tribunal dispõe de poderes mais limitados de controlo”.

7. Domicílio permanente. Conceito indeterminado.
Pois bem, no caso dos autos, temos de distinguir.
Como dissemos, tem domicílio permanente ou definitivo em Macau quem, além de residir habitualmente em Macau, tem aqui centrada a sua economia doméstica, (quem tem em Macau o centro da sua vida profissional e familiar ou, quem não exercendo profissão em Macau, possui meios de subsistência estáveis), quem paga os seus impostos em Macau, com intenção de aqui permanecer definitivamente.
Relativamente à parte do conceito que se refere ao centro da economia doméstica (quem tem em Macau o centro da sua vida profissional e familiar ou, quem não exercendo profissão em Macau, possui meios de subsistência estáveis), trata-se de um conceito indeterminado do 1.º tipo, porque não existe qualquer prognose (raciocínio através do qual se avalia a capacidade para uma actividade futura, se imagina a evolução futura de um processo social ou se sopesa a perigosidade de uma situação futura), mas mera interpretação da lei segundo critérios jurídicos, totalmente sindicável pelos tribunais.
Já quanto a saber se o interessado tem intenção de permanecer definitivamente em Macau, parece haver uma intenção de conferir à Administração uma margem de livre apreciação, por estar em causa um juízo de prognose, para o qual os tribunais não têm vocação, por não configurar mera interpretação jurídica.
  O ora recorrido, separado de facto, tem o centro da sua vida doméstica em Macau porque, além de residir habitualmente em Macau, tem aqui o centro da sua vida profissional e paga os seus impostos em Macau.
  Assim, só fundamentando a Administração, com base em factos concretos, que o ora recorrido não teria intenção de permanecer definitivamente em Macau, fundamentalmente, mas não exclusivamente, com suporte nos elementos mencionados no artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 8/1999, poderia ter sido indeferido o requerimento (sempre sujeito à sindicância do Tribunal quando se configure erro manifesto ou manifesta desrazoabilidade na utilização da margem de livre apreciação), o que não foi o caso.
  
  8. Conclusão
  Pelo que fica dito, o acto recorrido violou o disposto nos artigos 8.º, n.º 2, alínea 2) e 1.º, alínea 9) da Lei n.º 8/1999 e 24.º, alínea 5) da Lei Básica ao negar o estatuto de residente permanente ao ora recorrido por este estar separado de facto e o cônjuge e filha menor não residirem em Macau.
  Afigura-se-nos, assim, que o acórdão recorrido fez correcta aplicação da lei, não merecendo censura.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 UC.
Macau, 7 de Janeiro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Mai Man Ieng
     1 XIAO WEIYUN, Uma Abordagem sobre a Lei Básica, Pequim, Editora da Universidade de Pequim, 2003, p. 213.
     2 LUO WEIJIAN, Introdução à Lei Básica da RAEM, Fundação Macau, 2000, p. 106.
     3 JOÃO DE CASTRO MENDES, Teoria Geral do Direito Civil, Volume I, Lisboa, AAFDL, 1978, p. 198.
     4 Cfr. ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, ob. cit. , (Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo, Lisboa, Ática, 1962), p. 216 e segs., MARCELLO CAETANO, ob. e vol. cits., (Manual de Direito Administrativo, I, 10.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, reimpressão, 1980), p. 215, MARIA LUÍSA DUARTE, A Discricionariedade Administrativa e os Conceitos Jurídicos Indeterminados, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 370, p. 42 e BERNARDO DINIZ DE AYALA, ob. cit., (O (Défice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Decisão Administrativa, Lisboa, Lex, 1995), p. 108.
     5 ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, «Conceitos Indeterminados» no Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, 1994, p. 23.
     6 Citado por F. AZEVEDO MOREIRA, Conceitos Indeterminados: Sua Sindicabilidade Contenciosa Em Direito Administrativo, Revista de Direito Público, Ano I, n.º 1, Novembro de 1985, p. 34.
     7 J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 114.
     8 ROGÉRIO SOARES, Administração Pública e Controlo Judicial, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Coimbra, ano 127.º, p. 230.
     9 ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, ob. cit., p. 217.
     10 M. ESTEVES DE OLIVEIRA, ob. cit., (Direito Administrativo, vol. I, 1980, Livraria Almedina, Lisboa), p. 246.
     11 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit. (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, Livraria Almedina, 1987), p. 332.
     12 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 122.
     13 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 131 e 136.
     14 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 119.
     15 J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 136.
     16 Neste sentido, DAVID DUARTE, ob. cit. (Procedimentalização, Participação e Fundamentação: Para uma Concretização do Princípio da Imparcialidade Administrativa como Parâmetro Decisório), Livraria Almedina, Coimbra, 1996, p. 368 e J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 499.
     17 WALTER SCHMIDT, citado por J. M. SÉRVULO CORREIA, ob. cit., 136.
     18 MARIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo: Temas Nucleares, Coimbra, Almedina, 2012, p. 215 e 216.
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Processo n.º 21/2014