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Proc. nº 678/2013

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, aliás, XXX, aliás, XXX, veio, a fls. 1754, imputar nulidades ao acórdão de fls. 1711-1749, duas por omissão de pronúncia, e duas por contradição nos fundamentos.
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A parte contrária, B, pronunciou-se desfavoravelmente ao deferimento da arguição.
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II - Apreciando
1– 1ª Omissão de Pronúncia (ponto II, da reclamação)
Segundo a reclamante, o TSI não considerou o art. 46º dos Estatutos da B. Para si, este preceito funciona como uma autêntica “deliberação social, a deliberação máxima na hierarquia das deliberações”. Ora, o tribunal não se pronunciou sobre a divisão dos lucros “pela via do pacto social”, sobre “aquilo que os sócios podem fazer por deliberação social”.
Acrescentou que o TSI também interpretou mal a pretensão da reconvinte: que não era a de que o tribunal se substituísse à sociedade na decisão sobre os lucros, mas que interpretasse o art. 46º e decidisse que nele está inscrita a vontade soberana sobre o modo de distribuição dos lucros.
Com o devido respeito, não tem razão.
O tribunal estudou o art. 46º citado, dissecou-o e extraiu a força que dele emana. Nós dissemos:
«É neste ponto que a reconvinte esgrime a sua desavença litigiosa. Achando ela que deveriam ter sido distribuídos inicialmente 80%, ao ter sido feita a distribuição de 20%, entende que a sociedade lhe deve o proporcional às suas acções na parte restante de 60%. Este raciocínio não parece falhar na lógica e na aritmética. Será que não peca por outra via?» (ponto 5.7).
E continuamos:
«…o sócio não tem direito ao lucro da sociedade, porque só ela é soberana sobre o se e sobre o quanto a destinar aos membros do grémio. O direito (concreto) ao quinhão (concreto) só a pessoa colectiva o pode definir, através do órgão próprio, no quadro da sua soberania social. É isso o que o art. 46º do Estatutos confirma ao textura que “o rendimento líquido do exercício social, conforme o balanço aprovado, será distribuído de acordo com a deliberação da Assembleia Geral…”.
Ora, as referidas deliberações foram-se sucedendo ao longo dos anos e nenhum dos accionistas contra elas moveu, que saibamos, qualquer impugnação judicial (acção anulatória), nem sequer emitiu o protesto previsto no art. 146º do Cod. Comercial de 1888. Se a recorrente ou outro accionista tivesse julgado que aquela deliberação ofendia a referida norma estatutária, então poderia lavrar protesto e socorrer-se da via anulatória. Ninguém fez isso, porém. Em vez disso, a reconvinte, enquanto membro do Presidente do Conselho Fiscal da B sempre concordou com a deliberação em que participou e sempre propôs um voto de louvor pela “notável actividade” exercida no decurso do exercício findo.
Portanto, se ela fez alguma impugnação anulatória com esse fundamento, cremos que só a sentença definitiva (transitada) pode dar cobertura à sua pretensão. Se o não fez, não nos parece que a presente via processual possa garantir-lhe exactamente a mesma solução.» (ponto 5.9).
E prosseguimos:
«É claro que desta maneira não avistamos qualquer invalidade das deliberações; elas não atentaram contra a estipulação normativa que emerge do art. 46º dos Estatutos, simplesmente ficaram aquém do que eles permitiam» (ponto 5.13).
E finalmente:
«E, porque incompletas, a intenção é pedir ao tribunal que obrigue a sociedade a distribuir os lucros pela forma alegadamente prevista nos estatutos.
Só que, como se disse, este tribunal não o pode fazer assim. O tribunal não se pode substituir à sociedade decidindo por ela, e em vez dela, a repartição dos lucros, como se estivéssemos num pedido constitutivo reconvencional que tivesse por fim exigir a prestação pressupondo a violação de um direito concreto» (ponto 5.13; fls. 68 do aresto).
Ou seja, o TSI teve oportunidade de explicar o alcance do citado art. 46º e o motivo pelo qual o pedido da reclamante não podia proceder. O tribunal aceita que tivessem sobrado 60% dos resultados por distribuir, sem atribuição específica. Porém, explicou por que razão os não podia considerar necessariamente afectos aos sócios no âmbito dos presentes autos, não só por causa do nº2 do art. 46º, como ainda devido ao facto de considerar soberana a vontade do corpo social em deliberação específica para esse fim, nos termos do próprio art. 46º (“o rendimento líquido…será distribuído de acordo com a deliberação da Assembleia Geral…”).
Terá o TSI feito uma errada interpretação do art. 46º? Na nossa opinião, não. Mas, mesmo que tal fosse o caso, ainda assim o problema não seria de nulidade por omissão de pronúncia, mas de erro de julgamento, o que é coisa bem diferente.
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2 – 2ª Omissão de Pronúncia (ponto IV da reclamação)
Diz a reclamante que o acórdão não ponderou que em cada ano foi tomada uma deliberação sobre o destino a dar aos lucros. Portanto, se a sociedade já deliberou sobre os lucros, teria ficado por dizer se ao abrigo da regra supletiva do art. 46º dos Estatutos deveria o tribunal ordenar a distribuição segundo o modo ali previsto.
Ora, esta imputada nulidade, se não é igual à anterior, pelo menos dela decorre ou, com ela, tem uma raiz comum.
Não há nulidade, achamos nós.
O TSI estudou as deliberações entre 1983 e 2004. Disse que as achou incompletas e interpretou o sentido do art. 46º, mas depois explicou a razão por que não podia determinar a distribuição na forma pretendida pela reclamante (ver pág. 53 a 55 e 58 a 61do aresto).
O TSI, recorde-se, não deixou de se pronunciar sobre a diferença entre “direito abstracto aos lucros” e “direito concreto aos lucros”. E concluímos que o direito concreto carece de uma prévia deliberação social:
«…o direito à distribuição dos lucros só se constitui através de uma decisão colegial, que é a deliberação. É necessário que essa vontade seja concretizada, densificada, materializada, através de uma deliberação. A materialização do direito abstractamente previsto na lei só é adquirido para a esfera do interessado mediante essa deliberação» (pág. 64 do aresto).
E referimos:
«A nossa opinião é esta: não temos razões para pensar que, implicitamente, a B quis guardar para si aqueles 60% dos lucros, assim como as não temos para admitir que os quisesse afectar a um fundo especial. Se os lucros deveriam ser distribuídos tal como manda o art. 46º de acordo com a deliberação da Assembleia Geral, e se nunca foi posta à consideração dos accionistas presentes a possibilidade de escolha entre uma solução (dividir os 80% excedentes por todos os sócios) e outra (guardar para a sociedade uma parte desse excedente), dificilmente a deliberação tomada de dividir 20% pode ter por significado (implícito) a opção de fazer seus – da sociedade; logo, bem social – os restantes 60%.» (fls. 66 do acórdão).
Isto quis significar que aqueles restantes 60% simplesmente não tiveram destino concreto. Por isso, por mais do que uma vez concluímos que elas, as deliberações, foram sendo incompletas.
Como dizer, pois, que o tribunal não fez a concatenação do art. 46º com as deliberações, se na verdade ao assunto dedicámos a maior parte do tempo?
Talvez quisesse a reclamante “ver” nas referidas deliberações um modo implícito de resolver aquele excedente de lucros. Talvez quisesse a reclamante “ver” no art. 46º citado o vigor que o tribunal não viu. Mas, essa é justamente a diferença entre dois pontos de vista não coincidentes. A reclamante queria que o tribunal decidisse e determinasse já o modo de distribuir aquele excedente de lucros; nós dissemos: tem que haver uma deliberação prévia da sociedade.
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3 - 1ª Contradição (ponto III da reclamação)
Na opinião da reclamante, entre a omissão apontada em 1. supra e algumas afirmações do aresto detectam-se contradições.
Antes de mais nada, difícil é para nós conceber uma contradição entre uma declaração e um silêncio, entre a expressão de uma afirmação e uma omissão declarativa. Parecer-nos-ia mais razoável uma contradição entre duas declarações.
Mas, bem, tentemos apreciar esta imputação invalidante.
Eis os segmentos decisórios em causa:
«No caso de não ser atribuída qualquer verba para o Fundo Especial, então, daquela parte sobrante, 5% iriam para a Reserva Legal e os 95% excedentes iriam para todos os sócios» (fls. 59 do aresto)
«Dito de outro modo, se as deliberações apenas deram destino a 40% do lucro, do silêncio sobre a parte excedente não podemos nós inferir (implícita e automaticamente) que ela seria utilizada como coisa sua, como bem social da empresa, como capital próprio intocável pelos sócios» (fls. 70 do aresto).
«Como se pode ver, a B, salvo em 1983, respeitou o quantum a destinar à reserva legal (5%) e aos dividendos pelos sócios detentores de acções preferenciais (15%). Quanto à parte restante (80%) é que se notou um desvio» (fls. 53 do aresto).
Na opinião da reclamante, apesar destas afirmações – as quais para si, segundo parece, deveriam conferir razão à sua tese – o tribunal acabou por contradizer-se com a omissão de pronúncia a propósito do art. 46º acima referido e a sua relação com cada uma das deliberações.
Difícil de perceber esta rebuscada imputação!
Não há contradição nenhuma, se bem compreendemos o alcance da nulidade invocada. O que o tribunal disse é que o excedente, que podia ter sido distribuído como o permite o art. 46º dos Estatutos, não pode ser exactamente determinado pelo tribunal, por entendermos ser soberana a vontade social em deliberação para esse fim. Dissemos, e repetimos, não temos motivos para dizer que aquele excedente foi apropriado pela B, como bem social indistribuível, da mesma maneira que concluímos que ele não pertence necessariamente aos sócios como lucro. E demos a explicação para a afirmação.
Dissemos também que as deliberações apresentaram um “desvio”. Desvio, porém, em relação àquilo que o art. 46º permitia. Ou seja, em vez de se dividirem 80% sobrantes, dividiram-se 20%: sobraram 60%. Ora, isso foi uma mera constatação: a constatação de que as deliberações ficaram aquém do que era permitido ser feito, não em relação àquilo que devesse ser feito.
O tribunal não poderia substituir-se à sociedade para impor uma solução ou outra. Terá, pois, que haver uma prévia deliberação sobre aquela parte não distribuída (e cremos que só na ausência de uma deliberação nesse sentido, após o trânsito do aresto, poderão talvez os sócios desencadear os mecanismos que tiverem à sua disposição para que ela assim proceda, sob pena de o tribunal poder, eventualmente, vir a ser chamado à resolução do diferendo que porventura existir).
Dito isto, não achamos haver qualquer contradição.
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4 – 2ª Contradição (ponto V da reclamação)
Desta vez, a contradição radicaria entre a afirmação produzida no acórdão, segundo a qual a reconvinte deveria ter impugnado as deliberações em que participou se considerasse que elas ofendiam o art. 46º dos Estatutos (fls. 55 do aresto) e a afirmação feita mais adiante, segundo a qual as deliberações não padecem de qualquer invalidade (fls. 66).
Todavia, mais uma vez lhe foge a razão. O tribunal não disse uma coisa e o seu contrário. Quer dizer, não afirmou que as deliberações eram inválidas num primeiro momento, para posteriormente as achar válidas.
O que o TSI afirmou foi que, sem as achar inválidas (ponto 5.13), as considerou incompletas:
«Temos assim que não foi dado destino expresso a 60% de lucros líquidos da sociedade entre o exercício de 1983 e o de 2004. É claro que desta maneira não avistamos qualquer invalidade das deliberações; elas não atentaram contra a estipulação normativa que emerge do art. 46º dos Estatutos, simplesmente ficaram aquém do que eles permitiam» (ponto 5.13 e pág. 66 do aresto);
«…o caso é de incompletude deliberativa1: as deliberações (no que respeita àqueles 60%) foram ao longo dos anos incompletas (não se confunda com “imperfeitas”), por nada terem determinado sobre o seu destino. Incompletas, entenda-se, no sentido de se terem remetido ao silêncio quanto ao caso que nos ocupa, não no sentido da sua imperfeição» (ponto 5.14: pág. 68 do aresto).
Sobre a possibilidade de a reclamante/reconvinte ter podido impugnar as deliberações, limitámo-nos a dizer:
«…as referidas deliberações foram-se sucedendo ao longo dos anos e nenhum dos accionistas contra elas moveu, que saibamos, qualquer impugnação judicial (acção anulatória), nem sequer emitiu o protesto previsto no art. 146º do Cod. Comercial de 1888. Se a recorrente ou outro accionista tivesse julgado que aquela deliberação ofendia a referida norma estatutária, então poderia lavrar protesto e socorrer-se da via anulatória. Ninguém fez isso, porém. Em vez disso, a reconvinte, enquanto membro do Presidente do Conselho Fiscal da B sempre concordou com a deliberação em que participou e sempre propôs um voto de louvor pela “notável actividade” exercida no decurso do exercício findo.
Portanto, se ela fez alguma impugnação anulatória com esse fundamento, cremos que só a sentença definitiva (transitada) pode dar cobertura à sua pretensão. Se o não fez, não nos parece que a presente via processual possa garantir-lhe exactamente a mesma solução» (ponto 5.8: pág. 55 do aresto).
Se bem se reparar, o tribunal limitou-se a chamar a atenção para o facto de que, se a reclamante tivesse encontrado nas deliberações alguma fonte de invalidade, as podia ter impugnado. E não as impugnou, porém. Ora, dizer isto em nada equivale a dizer que o tribunal as achou inválidas! E, assim, se não as achou inválidas, nenhuma contradição existe com a afirmação que as deu por incompletas. Uma deliberação incompleta acerca da distribuição de uma certa percentagem de lucros obtidos não é o mesmo que dizer que ela é nessa parte inválida. Supomos que toda a gente compreende isso.
E, por fim, quanto à possibilidade de este tribunal obrigar a B a distribui-los, dissemos:
«Ora, o direito que a reconvinte invocou era um direito à sua quota-parte nos lucros. Não os lucros abstractos, mas sim os lucros concretos de todos aqueles exercícios e, esses, só a sociedade pode distribuí-los dentro do seus exclusivos e intangíveis poderes estatutários, como se viu. O tribunal não os pode reconhecer, nem nesta acção, nem a quantificação dos dividendos pode ser relegada para execução de sentença, como era sua pretensão, na medida em que isso sempre atentaria contra a soberania constitutiva dos poderes deliberativos da sociedade nesta matéria. Basta pensar na possibilidade de a Assembleia Geral ter podido decidir sobre a criação ou sobre a dotação de uma importância determinada ou percentagem para o Fundo Especial para logo se perceber que os dividendos só nasceriam (só se constituiriam na esfera dos interessados) após a respectiva deliberação. Quando muito, o tribunal apenas pode obrigar a sociedade a deliberar o destino sobre o excedente de 60%. Todavia, nem sequer isso o podia fazer nos presentes autos, em virtude de tal pedido não ter sido formulado, nem estar conforme a causa de pedir da reconvenção. Só uma acção com esse fim poderá ter eventual sucesso e, mesmo assim, cremos que uma hipótese dessas sempre carecerá de uma interpelação prévia nesse sentido por parte de algum interessado» (ponto 5.14; pág. 68 do aresto).
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5 – Conclusão
Por tudo o que se acaba de dizer, somos a entender não ter sido cometida nenhuma nulidade, nem por omissão de pronúncia (art. 571º, nº1, al. b), do CPC), nem por contradição entre fundamentos e decisão (art. 571º, nº1, al. c), do CPC).
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III – Decidindo
Face ao exposto, acordam em indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça em 5 UC (art. 15º do RCT).
    TSI, 20 de Novembro de 2014
    José Cândido de Pinho
    João A. G. Gil de Oliveira
    Lai Kin Hong
1 De incompletude também fala o Prof. A. Menezes Cordeiro no seu parecer junto aos autos (ver fls. 114).
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678/2013-Nulidades 12