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Processo n.º 111/2014. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrentes: A e B.
Recorridos: A, B, C, D e E
Assunto: Acidente de viação. Contravenção não causal. Negligência. Cônjuge do lesado. Danos não patrimoniais.
Data do Acórdão: 7 de Janeiro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
   I – A prática de contravenção não causal de acidente de viação por parte de condutor de veículo interveniente não faz presumir a negligência na ocorrência do acidente.
   II - O cônjuge do lesado em acidente de viação não tem direito a ser indemnizado pelo causador do acidente por danos não patrimoniais próprios.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima



ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A (doravante designada por 1.ª demandante) deduziu pedido cível de indemnização, em processo penal, contra B, C, D e E (doravante designados por, respectivamente, 1.º, 2.º, 3.º e 4.º demandados), pedindo:
a) A título de indemnização por danos não patrimoniais o montante de MOP$2,000,000.00 (dois milhões de patacas);
b) A título de indemnização por danos patrimoniais o montante de MOP$99,468.80 (noventa e nove mil, quatrocentas e sessenta e oito patacas e oitenta avos);
c) Por danos futuros e previsíveis, um montante cujo cálculo deveria ser relegado para execução de sentença.
O marido da 1.ª demandante A, F, (doravante designado por 2.º demandante) pediu contra os mesmos demandados a sua condenação no pagamento de danos não patrimoniais no montante de MOP$250.000,00.
O cônjuge e filhos da vítima fatal do acidente G, respectivamente, H, I e J (doravante designados por 3.os demandantes), pediram contra os mesmos demandados a sua condenação no pagamento, além do mais que agora não releva, de MOP$900.000,00 pela perda do direito à vida da falecida e MOP$300.000,00 por danos não patrimoniais para cada um dos três.
Por Acórdão do Tribunal Judicial de Base, de 20 de Maio de 2011, foi decidido, além do mais que agora não releva:
a) Julgar improcedente o pedido da 1.ª demandante para ser compensada pelos invocados danos futuros;
b) Atribuir à 1.ª demandante a título de danos não patrimoniais o montante de MOP$800,000.00 (oitocentas mil patacas);
c) Atribuir à 1.ª demandante a título de danos patrimoniais o montante de MOP$27,020.00 (vinte e sete mil e vinte patacas);
d) Atribuir ao 1.º demandado 80% da responsabilidade pelo acidente automóvel e à vítima fatal (G) do acidente 20% da responsabilidade;
e) Condenar o 1.º demandado e a 4.ª demandada a pagar à 1.ª demandante a quantia de MOP$661,616.00 (seiscentas e sessenta e uma mil, seiscentas e dezasseis patacas), limitando-se a responsabilidade da 4.a demandada, seguradora automóvel do veículo conduzido pelo 1.º demandado, ao valor coberto pela apólice automóvel de MOP$1,000,000.00 (um milhão de patacas), montante que serve para cobrir pro rata a compensação devida aos diversos demandantes cíveis;
f) Condenar o 1.º demandado e a 4.ª demandada a pagar aos 3.os demandantes a quantia de MOP$900.000,00 pela perda do direito à vida da falecida e MOP$300.000,00 por danos não patrimoniais para cada um dos três;
g) Absolver os 2.º e 3.º demandados do pedido de indemnização;
h) Rejeitar o pedido de indemnização do 2.º demandante por falta de legitimidade.
Interposto recurso pela 1.ª demandante A, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 12 de Junho de 2014, decidiu:
a) Atribuir em exclusivo a responsabilidade pelo acidente automóvel ao 1.° demandado e arguido B;
b) Manter a decisão de não condenar os responsáveis pelos danos futuros e previsíveis pedidos pela 1.ª demandante A;
c) Aumentar a indemnização devida por danos patrimoniais à 1.ª demandante para o montante de MOP$29,420.00 (vinte e nove mil, quatrocentas e vinte patacas);
d) Não conhecer de momento do pedido indemnizatório por danos não patrimoniais da 1.ª demandante, tendo em conta que o processo carece de elementos suficientes para avaliar devidamente tal pedido, tendo sido ordenado o reenvio do processo para o Tribunal Judicial de Base, nos termos do artigo 418.º do Código de Processo Penal;
e) Manter a decisão de condenar o 1.º demandado e a 4.ª demandada a pagar aos 3.os demandantes a quantia de MOP$900.000,00 pela perda do direito à vida da falecida e MOP$300.000,00 por danos não patrimoniais para cada um dos três;
f) Revogar a decisão que rejeitou o pedido do 2.º demandante por falta de legitimidade, atribuindo-lhe a indemnização de MOP$250.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Recorrem, agora, para este Tribunal de Última Instância (TUI) a demandante 1.ª A e o 1.º demandado B.
A 1.ª demandante A suscita as seguintes questões:
- Por manifesto lapso da decisão fez-se constar que o 1.º arguido e demandado B deve arcar com 10% da responsabilidade, mas de toda a fundamentação e decisão resulta que o que se pretendia era assacar-lhe 100% da responsabilidade pelo acidente, pelo que deve ser rectificado o lapso;
- Da matéria provada resulta que o 2.º demandado C também deu causa ao acidente, pelo que há erro notório na apreciação da prova na sua absolvição cível, devendo ser solidariamente condenado com o 1.º demandado;
- Consequentemente, devem também ser solidariamente condenados a 3.ª demandada D, enquanto comitente e proprietária do veículo conduzido pelo 2.º demandado e a 4.ª demandada E , a sua seguradora.
O 1.º demandado B suscita as seguintes questões:
- À vítima fatal (G) deve ser imputada 30% da responsabilidade do acidente;
- Não deve ser fixado um valor superior a MOP$600.000,00 pela perda do direito à vida da vítima G;
- São excessivas as indemnizações por danos não patrimoniais fixadas aos três familiares da vítima G;
- O marido da lesada Anão tem direito a ser ressarcido por danos não patrimoniais face aos danos sofridos pela lesada e, tendo-o, deve ser reduzido para MOP$150.000,00 o montante fixado.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
- Aos 7 de Setembro de 2009, pelas 18H18, G, empregada da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, conduziu um motociclo com matrícula n.º ME-XX-XX na Ponte da Amizade, pela direcção Taipa-Macau, na altura, o motociclo transportava ainda o seu colega, a outra ofendida A.
- A Ponte da Amizade, na direcção Taipa-Macau, tem duas faixas de rodagem, divididas, na determinada altura, por apenas uma linha vertical tracejada.
- O motociclo de G circulava na faixa da direita, perto da linha central vertical tracejada, enquanto que o arguido B conduziu um automóvel ligeiro com matrícula n.º MF-XX-XX seguindo-o e circulando pela mesma direcção, o qual transportava ainda os passageiros K, L e M.
- O arguido B viu claramente onde estava o motociclo conduzido pela G, ou seja à frente da esquerda do veículo por ele conduzido.
- Quando chegou nas proximidades do posto de iluminação n.º XXXXXX da Ponte da Amizade, sem certificar se existia espaço suficiente entre o seu automóvel e o motociclo de G para garantir que não causaria uma colisão, o arguido B iniciou a ultrapassagem de trás da direita do motociclo.
- Na manobra de ultrapassagem, como o espaço entre o veículo do arguido B e o motociclo de G era estreito, o espelho retrovisor esquerdo do veículo do arguido embateu no guiador direito do motociclo de G, fazendo com que o motociclo de G perda controlo e se agite, embata no lado esquerdo do veículo do arguido e derive para a faixa da esquerda, no fim o motociclo, a condutora G e a passageira Aacabaram por cair na faixa da esquerda.
- Na altura, chegou de trás o camião pesado de mercadorias com matrícula n.º MH-XX-XX que tinha circulado sempre na faixa da esquerda, pela mesma direcção dos dois veículos referidos.
- O veículo de mercadorias pertence à D, era conduzido na altura pelo motorista, arguido C, e transportava uns tubos de imagem de televisores. Após o exame do peso, verifica-se que o peso total do camião e mercadorias é de 16300kg, superando o limite máximo legal por 300kg (1.88%) (vide o registo de exame constante das fls. 72 a 74 dos autos de inquérito).
- Quando o arguido C constatou que o motociclo de G perdeu controlo e, agitando-se, caiu na faixa da esquerda, já não conseguiu parar o veículo, a final, o veículo de mercadorias por ele conduzido atropelou na faixa da esquerda G e Aque tinham quedado no chão. Posteriormente, após a investigação in loco efectuada pela polícia, verificou-se que havia um traço de raspa vertical de cerca de 8.4 metros no pavimento da faixa da esquerda, à frente do qual havia um traço de travagem e sangue de cerca de 6.6 metros.
- Sendo atropeladas, G estava deitada à frente da roda traseira direita do veículo de mercadorias conduzido pelo arguido C, o corpo foi partido em duas partes; A estava deitada à direita atrás do veículo de mercadorias conduzido pelo arguido C, ficava inconsciente; o motociclo de G ficava à frente do veículo de mercadorias e sofreu vários danos, já não pode ser manobrado e não se pode inspeccionar a sua travagem (vide o relatório de perícia de veículo, emitido pela Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego, constante das fls. 142 a 145 dos autos de inquérito).
- A ambulância chegou à cena em breve, o socorrista verificou imediatamente pelas 18H27 no mesmo dia o falecimento de G.
- Após o acidente, A foi levada ao Centro Hospitalar Conde de São Januário e foi hospitalizada desde o dia para tratamento. Durante o período de internamento, foi submetida à amputação das pernas e a várias operações cirúrgicas, após a diagnose, a colisão com o camião foi causa directa da perda das pernas de A e das escoriações nos tecidos moles no seu corpo.
- Após a autópsia, verificou-se que G morreu da separação do corpo resultante duma força externa contundente extrema (veículo pesado de mercadorias atropelou o seu abdómen), o acidente de viação provocou directamente o falecimento dela (vide o relatório de autópsia constante das fls. 147 a 148 dos autos de inquérito).
- Até 29 de Março de 2010, A estava ainda hospitalizada no Centro Hospitalar Conde de São Januário. No dia 12 de Abril de 2010, o médico-legal entendeu que, caso não haja qualquer complicação, o período de recuperação é de 270 dias. O acidente de viação originou a perda das suas pernas, constituindo uma ofensa grave à sua integridade física, precisou de aceitar tratamento de próteses de membros artificiais (vide o parecer de medicina legal constante da fls. 219 dos autos).
- No dia do acidente, o tempo estava bom, o pavimento era seco e o trânsito era fluente na Ponte da Amizade antes da ocorrência do acidente.
- Quando circulava na Ponte da Amizade, o arguido B efectuou a manobra de ultrapassagem sem certificar que não iria causar risco de viação, violando o dever de condução prudente.
- O arguido C é motorista profissional, o peso total do seu veículo e mercadorias transportadas superou o limite legal.
- A conduta dos arguidos B e C provocou directamente o acontecimento do acidente, o falecimento da ofendida G, a lesão de A e os danos do motociclo de G.
- Os dois arguidos eram livre e consciente ao praticar a conduta referida, o arguido B sabia que a sua conduta era ilegal.
- Além disso, mais se provou na audiência de julgamento:
1. Conforme o CRC, os dois arguidos B e C são primários.
2. Após a investigação in loco efectuada pela polícia, verificou-se que o traço de raspa vertical de cerca de 8.4 metros no pavimento da faixa da esquerda foi o vestígio de fricção entre o motociclo com matrícula n.º ME-XX-XX e o pavimento.
Factos provados no requerimento civil:
- Além dos factos que estejam em conformidade com os factos provados na acusação, dão-se provados os factos seguintes no requerimento civil:
1. Pedido de indemnização dos requerentes H, I e J:
(1) Não está em conformidade com o registo o tamanho dos pneus do veículo pesado com matrícula n.º ME-XX-XX, conduzido pelo requerido C, foi de 11R22.5 ao ocorrer o caso mas devia ser de 10.00-20.
(2) Após o acidente, a custa de reparação do motociclo com matrícula n.º ME-XX-XX, conduzido pela ofendida G, é de MOP$4,220.00.
(3) De 17 de Abril de 1991 até o acontecimento do caso, a ofendida G foi servente da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, auferia o salário mensal de MOP$9,070.00 na altura da ocorrência do caso.
2. Pedido de indemnização dos requerentes A e F:
(1) O acidente faz com que a requerente A esteja submetida à amputação da perna esquerda acima do joelho e amputação da perna direita via quadril.
(2) A requerente A foi hospitalizada de 7 de Setembro de 2009 até 8 de Abril de 2010, e depois, em 22 de Outubro de 2010 recorreu de novo ao hospital e teve alta; aos 2 de Agosto de 2010, foi submetida ao tratamento na Clínica de Psicologia do Centro Hospitalar Conde de São Januário.
(3) A requerente Asofre uma miséria.
(4) Antes do acidente, a requerente A era saudável, com dois filhos e uma família feliz, tinha uma vida activa e bastante preenchida com o trabalho, os afazeres domésticos, visitava sempre os familiares em Zhong Shan e Hong Kong e tinha viajado para Xangai e Qing Dao.
(5) Após o acidente, a requerente A depende da ajuda de outrem para se movimentar.
(6) O requerente F é marido da requerente A, após o acidente, como as pernas de A foram amputadas, tem de tomar cuidado dela e sofre miséria.
(7) De 12 de Maio de 1990 até a ocorrência do caso, a requerente A foi auxiliar da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, sendo responsável pelo esclarecimento e remessa de documentos, não se pode dedicar ao trabalho original desde o caso; auferia índice 150 no momento do caso, equivalente ultimamente ao valor de MOP$9,940.00.
(8) A requerente A tomou de arrendamento [Endereço (1)], com renda de MOP$513.00. Auferiu anteriormente o subsídio mensal de habitação dos funcionários públicos no montante de MOP$1,000.00.
(9) Após o acidente, a requerente A precisou de órteses para se adaptar às necessidades de movimento, comprou uma cadeira para duche pelo preço de MOP$2,700.00, uma cadeira de rodas pelo preço de MOP$1,380.00, duas bolas ginásticas para treinar o equilíbrio físico respectivamente pelo preço de MOP$120.00 e pelo preço de MOP$320.00.
(10) Após o acidente, a requerente comprou do mestre de medicina tradicional chinesa N medicina chinesa pelo preço de MOP$3,200.00.
(11) De 8 de Outubro de 2009 até hoje, a requerente A contratou uma empregada doméstica, com salário de MOP$2,500.00. até Julho de 2010, gastou uma quantia total de MOP$22,500.00 para contratar empregada doméstica.
(12) Mudou-se de casa após o acidente, a requerente A comprou um fogão pelo preço de MOP$1,780.00, uma máquina de lavar roupa pelo preço de MOP$2,260.00, um exaustor de cozinha pelo preço de MOP$1,300.00, três ar condicionados pelo preço de MOP$4,500.00, gastou uma quantia de MOP$500.00 para instalação do exaustor de cozinha e aquecedor de água, uma quantia de MOP$15,350.00 para instalação de interruptores e duas placas inclinadas de alumínio (sic.) (designados no requerimento por três grupos de iluminações) --- vide a factura constante da fls. 366 dos autos, uma quantia de MOP$7,960.00 para comprar cama de pressão de óleo e roupa de cama (designadas no requerimento por uma armazém do quarto --- vide a factura constante da fls. 367 dos autos) e uma quantia de MOP$31,240.00 para obra de instalação de janelas de alumínio.
Factos não provados:
Após a audiência de julgamento, o Tribunal dá não provados os factos seguintes constantes da acusação:
- O arguido C tinha visto claramente que, na faixa da direita à frente dele, a distância horizontal entre o veículo do arguido B e o motociclo de G era muito estreita e o primeiro pretendia ultrapassar o último. O veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido C estava a pelo menos 10 metros de distância com os dois veículos referidos quando ele observou a situação referida.
- Embora tenha constatado o risco de colisão dos dois veículos na faixa da direita, o arguido C não reduziu a velocidade conforme a situação especial referida, o peso do camião e a sua largura, de forma a evitar o eventual perigo resultante da colisão real dos dois veículos referidos.
- O arguido C não regulou a velocidade de acordo com as condições da via, o peso do veículo e a sua largura, não conseguindo por isso parar o camião no espaço visível à sua frente, incorrendo em violação do dever de condução prudente.
- O arguido C sabia que a sua conduta era ilegal.

III – O Direito
1. As questões a resolver
A primeira questão a resolver é a de saber a quem deve ser imputada a responsabilidade pelo acidente de viação dos autos.
Se o 2.º demandado também for julgado responsável pelo acidente, importa resolver se também respondem civilmente a proprietária do veículo e a seguradora.
A terceira questão é a de saber se o marido da lesada Anão tem direito a ser ressarcido por danos não patrimoniais próprios e, tendo-o, se deve ser reduzido para MOP$150.000,00 o montante fixado.
Por fim, há que decidir se são ou não ajustados os valores de indemnização pela perda do direito à vida da vítima G e se são excessivas as indemnizações por danos não patrimoniais fixadas aos três familiares da vítima G.

2. Responsabilidade pelo acidente
O acórdão recorrido julgou que o 1.º demandado era o exclusivo responsável pelo acidente dos autos mas, por mero lapso de escrita, fez constar no dispositivo que tal responsabilidade era de 10%, quando, manifestamente, queria dizer ser de 100%, pelo que se rectifica tal lapso.
Trata-se de saber a quem deve ser imputada a responsabilidade pelo acidente de viação dos autos. Decidiu o acórdão recorrido que o condutor do veículo que seguia atrás do motociclo conduzido pela vítima mortal, foi o único responsável pelo acidente, em virtude de, ao ultrapassar o motociclo, ter embatido com o seu veículo no guiador do motociclo, fazendo com a que a condutora perdesse o controlo deste, tombando este motociclo no solo e arrastando também para o solo tanto a condutora como a passageira.
A condutora do motociclo conduzia pela meia faixa direita da via e, portanto, em contravenção das regras estradais que impõem se circule pela esquerda, salvo para ultrapassar ou para mudar de direcção (artigos 18.º, n.º 2, da Lei do Trânsito Rodoviário e 8.º, n.º 1 do regulamento da Ponte Nobre de Carvalho, Ponte da Amizade e Viadutos de Acesso), contravenção infelizmente comum nos condutores de Macau.
Mas a contravenção não foi a causa do acidente e, por isso, é totalmente irrelevante para efeitos de apurar a culpa na produção do acidente. Não se pode, pois, imputar culpa no acidente à condutora do motociclo.
Por outro lado, o condutor do veículo pesado que seguia atrás do veículo ligeiro, mas na metade esquerda da faixa de rodagem e que acabou por atropelar as duas pessoas que vinham no motociclo e que tombaram do lado direito para o lado esquerdo da faixa de rodagem, nenhuma culpa teve na produção do acidente. Não podia adivinhar que alguém se iria estatelar na meia faixa em que seguia, mesmo que o motociclo seguisse na mesma meia faixa que a sua, o que não acontecia. Tanto o motociclo como o condutor que nele embateu seguiam na meia faixa ao lado do veículo pesado. O condutor deste veículo nada podia fazer para evitar o acidente.
É certo que nos factos provados se diz que o 2.º demandado provocou o acidente. Trata-se de matéria conclusiva, mas manifestamente dispensável se o tribunal de 1.ª instância tivesse o cuidado de não repetir matéria da acusação totalmente conclusiva e sem nenhum interesse para a decisão da matéria criminal e cível. Na verdade, o que resulta dos factos e não das conclusões é que não foi o 2.º demandado que provocou o acidente. Sim, exclusivamente, o 1.º demandado.
Em conclusão, não merece censura a decisão recorrida nesta parte.

3. Responsabilidade pelo risco
A segunda questão (se também respondem civilmente a proprietária do veículo e a seguradora) estava dependente de o 2.º demandado também ser julgado responsável pelo acidente. Como não foi, a questão está prejudicada. Ao contrário do que alegou a 2.ª demandante, o acórdão recorrido fez boa aplicação do disposto no artigo 498.º do Código Civil: a responsabilidade pelo risco do funcionamento de um veículo só se justifica se o acidente não tiver sido causado por outro veículo. Como acidente foi causado pelo 1.º demandado não tem qualquer justificação que se impute responsabilidade pelo risco ao outro veículo.
É o que também resulta do artigo 499.º do Código Civil: na colisão de veículos ambos respondem pelo risco mas apenas se nenhum dos condutores tiver culpa no acidente1.
Improcede a imputação de responsabilidade pelo risco à proprietária do veículo pesado e à sua seguradora.

4. Titularidade do direito à indemnização. O terceiro reflexamente prejudicado.
A questão, aparentemente mais complexa, é a de saber se o marido da lesada Atem direito a ser ressarcido por danos não patrimoniais por danos próprios resultantes dos danos sofridos pela lesada.
O Tribunal de 1.ª Instância decidiu que não, o acórdão recorrido decidiu afirmativamente, invocando a normal geral do n.º 1 do artigo 489.º do Código Civil.
A questão é um pouco mais complexa do que a forma como foi colocada pelo acórdão recorrido e consiste em saber quem é o titular do direito à indemnização por facto ilícito culposo.
A doutrina tradicional, tendo como corifeu ANTUNES VARELA, tem entendido que só “tem direito à indemnização o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, não o terceiro que só reflexo ou indirectamente seja prejudicado.
  Assim, se A foi atropelado por B e sofreu ferimentos, será este obrigado a indemnizá-lo do dano que lhe causou. Mas já não será obrigado a indemnizar C, dono do teatro onde A deveria exibir-se no dia do acidente, nem a D, arrendatário do bufete que não funcionou por não haver o espectáculo, nem a E, crítico teatral que perdeu a remuneração ajustada para a sua crítica, visto B não ter violado nenhuma das relações contratuais afectadas na sua consistência prática.
  Se E agrediu F, causando-lhe impossibilidade de trabalho, terá naturalmente que indemnizar o agredido, não só das despesas que tenho feito e dos incómodos que tenha padecido, como do prejuízo resultante da sua inactividade. Mas já não terá que indemnizar a empresa onde F é empregado, pelos prejuízos que lhe cause a falta do concurso do agredido, durante o período de impossibilidade de trabalho2, atento a carácter relativo da relação de trabalho.
  Não há, efectivamente, no nosso sistema, como não existe no direito alemão por exemplo, um direito à integridade do património cuja violação possa assegurar a indemnização eventualmente requerida pelo lesado, nos casos que acabam de ser figurados.
  É aos danos assim causados a terceiros, sem violação de nenhuma relação negocial ou para-negocial e sem infracção de nenhum dever geral de abstenção ou omissão, que na doutrina germânica se tem dado o nome de danos patrimoniais puros – e que não encontram, realmente, por óbvias razões, cobertura directa, nem na responsabilidade aquiliana, nem na responsabilidade contratual3 ”4.
Convém recordar que aquando dos trabalhos preparatórios do Código Civil português de 1966 – que é a fonte principal do Código Civil de Macau, designadamente, também quanto à regulamentação da responsabilidade civil aquiliana – o autor do projecto atinente à responsabilidade civil, VAZ SERRA, propôs expressamente que no caso de dano que não o da morte, os familiares do lesado têm “direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado” (artigo 759.º, n.º 5, do projecto)5.
Mas tal proposta não teve acolhimento no texto final do Código Civil. Neste (artigos 495.º e 496.º, correspondendo, respectivamente, aos artigos 488.º e 489.º do Código Civil de Macau) apenas se prevêem alguns casos concretos de reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por terceiros, a saber:
- No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral, e têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima;
- Em outros casos de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima;
- No caso de lesão de que proveio a morte e em outros casos de lesão corporal têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural;
- Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem;
- No caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do item anterior.
Quer isto significar, seguramente, que só nos apontados casos concretos se admite indemnização por danos patrimoniais ou não patrimoniais a outrem que não o lesado directo pela acção.
A generalidade da doutrina manteve, assim, o entendimento de que, em geral, só o titular do direito violado tem direito à indemnização6, sem prejuízo dos casos concretos previstos na lei em que esta se desvia da mencionada regra.
É certo que, recentemente, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português, com numerosos votos de vencido, uniformizou jurisprudência no sentido de os aludidos artigos da responsabilidade civil deverem “ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge da vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”7.
Também ABRANTES GERALDES8defende esta solução, sobretudo com fundamento na interpretação literal do n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil português, dizendo que a norma não põe outras condições que não seja tratar-se de danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. Mas a ser assim, a defender-se que da letra da lei não decorre que só o lesado directo tem direito a ser indemnizado, não se percebe muito bem como não se advoga a extensão da indemnização plena aos danos patrimoniais e ainda independentemente de estarem em causa lesões corporais.
Não se sufraga esta doutrina.
Por um lado, não vale em Macau o argumento da longevidade do Código Civil, que demandaria, em Portugal, uma interpretação actualista da lei. Na verdade, o Código Civil de Macau tem apenas 15 anos de vigência, ao contrário do português que tem perto de 50 anos.
Por outro lado, se a lei estabeleceu apenas alguns poucos casos em que a titularidade do direito a indemnização se estende a outrem que não ao lesado directo, não parece legítimo que seja o juiz a estender a excepção a novos casos, por mais legítimos que sejam os interesses que estejam na sua base, até porque as normas excepcionais, como é o caso9, não comportam aplicação analógica (artigo 10.º do Código Civil).
De resto quem defende a tese da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiro, não especificamente previstos na lei, não fornece nenhum critério claro para tal atribuição. A quem atribuí-los? Ao cônjuge? Aos filhos e outros descendentes? Aos pais e outros ascendentes? Ao unido de facto? E em relação a que danos? Qual a medida da sua gravidade?
Afigura-se, assim, que o cônjuge do lesado em acidente de viação não tem direito a ser indemnizado pelo causador do acidente por danos não patrimoniais próprios. Não é, portanto, uma questão de legitimidade processual, mas de direito substantivo, de mérito da causa.
Procede, nesta parte, o recurso.

5. Perda do direito à vida
Há que decidir se são ou não ajustados os valores de indemnização pela perda do direito à vida da vítima G e se são excessivas as indemnizações por danos não patrimoniais fixadas aos três familiares da vítima G.
No primeiro caso foi fixado o montante de Mop$900.000,00. No segundo MOP$300.000,00 por danos não patrimoniais para cada um dos três demandantes, marido e filhos da vítima.
Afiguram-se ajustados tais montante, ponderando os parâmetros legais (artigos 489.º e 487.º do Código Civil), a prática judiciária e os factos provados, designadamente a idade da vítima e os laços com os seus familiares.

IV – Decisão
Face ao expendido,
A) Rectificam o lapso manifesto do dispositivo do acórdão recorrido, por forma a constar do mesmo acórdão que o 1.º demandado B teve 100% da responsabilidade do acidente dos autos;
B) Negam provimento ao recurso interposto pela 1.ª demandante A;
C) Negam provimento ao recurso interposto pelo 1.º demandado B, excepto na parte em que se decide que o marido da lesada A, F, não tem direito a ser ressarcido por danos não patrimoniais próprios.
Neste TUI, custas do recurso interposto pela 1.ª demandante A pela recorrente; custas do recurso interposto pelo 1.º demandado B, em 80% por este e em 20% por F.
No TSI, F e B suportam as custas dos recursos por si interpostos; custas do recurso de Apelo vencido a final.
No Tribunal de 1.ª Instância proceder-se-á à repetição parcial do julgamento nos termos decididos pelo acórdão recorrido.

Macau, 7 de Janeiro de 2015.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 Sobre estas questões, cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Coimbra Editora, Código Civil Anotado, 4.ª edição, I volume, p,. 517 a 519.
     2 Cr. Brox, pág. 88 e seg.; Enneccer US-Lehmann, §239, I, Não há, porém, dano de terceiro, mas dano na própria pessoa, se a mãe sofre um abalo nervoso sério ao ver o filho ser agredido ou atropelado: Larenz, §27, IV, pág. 460, nota 110.
     3 Vide, a propósito desta categoria de danos, Larenz, I, 14.a ed., §27, IV, pág. 459; Gernhuber, Das Schuldverhaltnis, 1989, §7, 1, 2, pág. 127; e, entre nós, Sinde Monteiro, ob. cit., pág. 187 e segs.
     4 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, 10.ª edição, reimpressão, 2003, I volume, p. 621.
     5 Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, n.º 101, p.138.
     6 ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 8.ª edição, 2000, p. 547, LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 3.ª edição, 2003, p. 404 e 405, EDUARDO DOS SANTOS JÚNIOR, Direito das Obrigações, Lisboa, AAFDL, 2010, p. 385 e 386.
     7 Acórdão de 9 de Janeiro de 2014, Diário da República, I série, de 22 de Maio de 2014.
     8 ABRANTES GERALDES, Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiros em caso de lesão corporal, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV volume, p. 263 e segs. e Temas da Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, II volume, p. 31 e segs.
     9 JORGE RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 1990, I Volume, p. 491, nota de rodapé 2, defende tratar-se de disposições excepcionais, mas afirma que elas podem ser objecto de interpretação extensiva a casos que caibam no espírito da lei. Discorda-se. A interpretação extensiva visa alargar a lei a casos queridos pela lei, em que a letra foi demasiado estreita, atraiçoando o espírito. Não é o caso. O legislador teve intenção clara, revelada por não ter acolhido as sugestões de VAZ SERRA e por não admitir com carácter geral a ressarcibilidade de pessoa diferente do lesado, de só pretender indemnizar algumas pessoas que não o lesado nos casos expressamente previstos.
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Processo n.º 111/2014