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Processo n.º 122/2014 Recurso jurisdicional em matéria penal
Recorrentes: A e, subordinadamente, B e C.
Recorridos: Os mesmos.
Assunto: Resposta não escrita do tribunal colectivo a matéria de direito e puramente conclusiva. Dever de cuidado. Princípio dispositivo. Pedido de indemnização civil no processo penal. Morte. Lucros cessantes. Direito do morto aos vencimentos futuros.
Data do Acórdão: 28 de Janeiro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
  I – É considerar como não escrita a resposta dada pelo tribunal colectivo à questão: “O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, ao praticar o aludido acto” por se tratar de matéria de direito em parte e puramente conclusiva noutra parte.
  II - Se, apesar da violação do dever de cuidado, existe a produção do resultado, mas não há uma relação de causa e efeito entre a violação do dever e o resultado, não existe ilícito negligente de resultado.
III - Quando é deduzido pedido de indemnização civil no respectivo processo penal, ao juiz está vedado condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, por se aplicar a regra do artigo 564.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
IV – Com a morte, a vítima de lesão não adquire direito aos vencimentos que viria presumivelmente a auferir na sua vida activa, a título de lucros cessantes, pois a morte faz extinguir a personalidade jurídica.
V – Nenhuma norma ou princípio jurídico atribui a terceiros os vencimentos que a vítima viria presumivelmente a auferir na sua vida activa.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
B e C (doravante designados por demandantes), pais da vítima D, deduziram pedido cível de indemnização, em processo penal, contra E, A e Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), (doravante designados por, respectivamente, 1.º, 2.º e 3.º demandados), pedindo a sua condenação solidária no pagamento de :
- O montante de MOP$119.953,00 a título de despesas com o funeral, aos autores.
- O montante de MOP$7.021.602,00 a título de lucros cessantes por perda de trabalho por parte de vítima, aos autores.
- O montante de MOP$1.000.000,00 a título de perda da vida da vítima, aos autores.
- O montante de MOP$300.000,00 a título de danos não patrimoniais por dores sofridas pela vítima, aos autores.
- O montante de MOP$200.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos por B com a morte da vítima, ao autor B.
- O montante de MOP$300,000.00 a título de danos não patrimoniais sofridos por C com a morte da vítima, à autora C.
Por Acórdão do Tribunal Judicial de Base, de 6 de Julho de 2014, foi decidido, além do mais, que agora não releva:
a) Absolver na totalidade E do pedido;
b) Condenar, solidariamente, os 2.º e 3.º demandados, a pagarem aos demandantes:
- A quantia de MOP$800.000,00 (oitocentas mil patacas), a título do dano morte (perda do direito à vida) da vítima D;
- A quantia de MOP$100.000,00 (cem mil patacas), a título de indemnização por danos não patrimoniais, pelas dores sofridas pela vítima antes da morte;
- A quantia de MOP$100.000,00 (cem mil patacas), a cada um dos demandantes, a título de indemnização por danos não patrimoniais, pelos danos próprios, resultantes da morte da vítima;
- A quantia de MOP$119.953,00 (cento e dezanove mil novecentas e cinquenta e três patacas), a título de indemnização por danos patrimoniais relativos às despesas de funeral, médicas e hospitalares da vítima;
- A quantia de MOP$2.280.000,00 (dois milhões duzentas e oitenta mil patacas), a título de indemnização por danos patrimoniais a título de alimentos que seriam devidos aos demandantes pela vítima,
Em todos os casos, com juros legais desde a data da sentença.
Interpuseram recurso para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) os 2.º e 3.º demandados, A e RAEM e, subordinadamente, os demandantes.
O TSI, por Acórdão de 11 de Setembro de 2014, decidiu:
a) Que o 1.º demandado agiu negligentemente, pelo que sobre o 2.º demandado recai obrigação de indemnizar a título de comitente;
b) Que a 3.ª demandada não agiu com culpa nem sobre ela recai qualquer presunção de culpa, pelo que a absolveu do pedido;
c) Absolver o 2.º demandado da condenação por indemnização por danos patrimoniais a título de alimentos, por não se terem provado factos que a impusessem;
d) Manter a decisão de condenar o 2.º demandado a pagar aos demandantes a quantia de MOP$800.000,00 pela perda do direito à vida da falecida;
e) Fixar a quantia de MOP$200.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, pelas dores sofridas pela vítima antes da morte;
f) Fixar a quantia de MOP$200.000,00, a cada um dos demandantes, a título de indemnização por danos não patrimoniais pelos danos próprios, resultantes da morte da vítima.
Recorrem, agora, para este Tribunal de Última Instância (TUI) o 2.º demandado A e, subordinadamente, os demandantes B e C.
O 2.º demandado A suscita as seguintes questões:
- Os 1.º e 2.º demandados não praticaram qualquer facto ilícito e culposo, pelo que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil;
- Assim, o 2.º demandado não responde a título de comitente.
Os demandantes B e C suscitam as seguintes questões:
- O acórdão recorrido violou o disposto no artigo 558.º do Código Civil, ao decidir que os demandantes não têm direito aos salários que a falecida auferiria durante a sua vida;
- O Tribunal de 1.ª Instância, ao condenar os demandados no pagamento de alimentos, não violou o princípio do pedido, já que alimentos ou salários são a mesma coisa, assuntos de dinheiro;
- O valor da perda do direito à vida deveria ser superior a MOP$800.000,00;
- O valor da indemnização por danos não patrimoniais, pelas dores sofridas pela vítima antes da morte, deve ser de MOP$300.000,00;
- O valor da indemnização por danos não patrimoniais, pelos danos próprios, resultantes da morte da vítima, a atribuir à demandante C deve ser de MOP$300.000,00, devendo ser reconhecido o seu sofrimento durante o período de gravidez para dar à luz a falecida;
- O acórdão recorrido, ao manter que os juros sejam contados a partir do trânsito em julgado da sentença, violou a jurisprudência obrigatória.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
- A Piscina do Carmo, que se situa na Taipa, é administrada pelo Instituto do Desporto da R.A.E.M.
- Em 2005, o Instituto do Desporto adjudicou, mediante contrato, os serviços de salvamento da Piscina do Carmo a A.
- Para cumprir as obrigações contratuais, A contratou vários nadadores-salvadores, incluindo o arguido E.
- Em Macau não há normas que regulem a habilitação profissional de nadadores-salvadores, nem existe instituição profissional que examine a habilitação profissional de nadadores-salvadores, pelo que o Instituto do Desporto fixou os seguintes requisitos: os nadadores-salvadores que se encontram em exercício de funções deverão possuir 18 anos de idade, o BIRM válido ou o Título de identificação de trabalhador legal, o atestado sanitário emitido pelo médico oficialmente registado junto do governo e o certificado de nadador-salvador.
- Tal contrato de serviços terminou em 23 de Abril de 2006.
- Pelo atraso emergente do processo de abertura de concurso, o I.D., conforme as mesmas cláusulas do contrato em apreço, continuou a adjudicar, mensalmente, os serviços de salvamento da Piscina do Carmo a A até aparecer o novo adjudicatário para o substituir.
- Em 26 de Junho de 2006, depois das 15H00, D, filha do assistente B, estava a nadar na piscina exterior da Piscina do Carmo.
- Na dada altura, na aludida piscina havia cerca de 20 nadadores.
- O arguido, E, era o único nadador-salvador que foi colocado por A na piscina exterior para prestar serviços de salvamento.
- Naquele dia, por volta das 16H16 às 16H18, D nadava da zona menos profunda para a zona mais profunda da piscina e vice-versa.
- Naquele dia, por volta das 16H19, D nadava até ao meio da piscina, numa zona com 1,5m de profundidade, onde parava e se encontrava constantemente a flutuar e afundar, e, enfim, começou a afogar-se.
- Na beira da piscina se disponibilizava a cadeira alta ao arguido, E, para poder visualizar, claramente, de cima para baixo, todos os nadadores.
- A cadeira alta estava colocada num local que atinge o tecto duma instalação, pelo que o arguido, E, não se sentou naquela cadeira mas na cadeira baixa e dobrada de plástico que estava ao lado da primeira, só lhe permitindo, portanto, uma visão horizontal.
- Até 16 horas, 23 minutos e 46 segundos, ou seja, aproximadamente 5 minutos após o afogamento de D, um nadador saiu da casa de banho e, ao aproximar-se da beira da piscina em que estava D, descobriu que ela se afogou, por consequência, chamou em voz alta o arguido, E, que se encontrava sentado numa cadeira baixa e dobrada de plástico. O arguido só tomou conhecimento do assunto naquele momento.
- Com o auxílio prestado pelo nadador, o arguido, E, e um outro nadador-salvador, F, levaram juntos D para a beira da piscina.
- O arguido, E, segurou D, enquanto F foi pedir ajuda a um outro nadador-salvador, G, e A.
- Após ter tomado conhecimento do assunto, A telefonou, em primeiro lugar, à Polícia. Em seguida, A e G prestaram socorro a D, fazendo a respiração boca-a-boca, massagem cardíaca e introdução de dedos na garganta da vítima.
- Na altura, os socorristas do Corpo de Bombeiros chegaram ao local em causa e prestaram socorro, mas não resultou. Após a vítima ser encaminhada a hospital, em 29 de Junho de 2006, às 16H05, foi confirmado óbito da mesma.
- Em 25 de Abril de 1998, a “Hong Kong Life Saving Society” emitiu ao arguido, E, o certificado na categoria de medalha de bronze n.º XXXXXXX, porém, esse certificado é válido por 36 meses, ou seja, com validade até 24 de Abril de 2001.
- Em 1 de Setembro de 2005, o arguido, E, obteve um certificado na categoria de medalha de bronze, emitido pelo Clube de Salvamento de Vidas, por qual se certifica que o mesmo está habilitado a desempenhar as funções de nadador-salvador profissional.
- O arguido nasceu em XX de X de 19XX, com 61 anos de idade no momento da ocorrência do facto.
Mais se provou:
- A vítima já estava aproximadamente duas horas dentro da água, ao afogar-se.
- O arguido é um guarda de segurança, aufere um salário mensal de MOP4.600,00 e tem a esposa a seu cargo.
- Conforme o certificado de registo criminal, o arguido é delinquente primário.
- Além de ter provado os respectivos factos da pronúncia, provaram-se ainda os seguintes factos relevantes da parte civil:
- O pedido de indemnização civil de fls. 831 a 855:
- A 3ª demandada não exigiu ao 2º demandado que apresentasse novamente os respectivos documentos comprovativos, nomeadamente o atestado sanitário e o certificado de nadador-salvador válido exigidos para o desempenho das actividades de nadador-salvador.
- Em 26 de Junho de 2006, após 15H00, a vítima, D, e sua sobrinha, de 9 anos de idade, H, foram transportadas pelo fiancé da vítima, I, para a Piscina do Carmo, afecta à 3ª demandada.
- A vítima, D, e sua sobrinha H pagaram as tarifas à 3ª demandada e entraram na Piscina do Carmo.
- O 1º demandado tinha 60 anos de idade (na data da ocorrência do facto).
- O 1º demandado tem um emprego a tempo inteiro e desempenha as funções de nadador-salvador como trabalho a tempo parcial.
- A 3ª demandada não exigiu ao 2º demandado que obrigasse os seus nadadores-salvadores a sentar na cadeira alta colocada na beira da piscina.
- O 2º demandado não obrigou o 1º demandado a sentar na cadeira alta colocada na beira da piscina, aquando do exercício das funções.
- A aludida cadeira alta estava colocada num local que atinge o tecto duma instalação, pelo que nela não se sentou o 1º demandado.
- Embora a cadeira alta fosse movível, o 1º demandado não a moveu com vista a evitar a exposição da mesma ao sol.
- O 1º demandado optou por sentar na cadeira baixa e dobrada de plástico que estava ao lado da cadeira alta, visto que essa cadeira era mais confortável por não atingir o tecto da instalação nem estar em exposição ao sol.
- O 1º demandado não reparou que a vítima, D, começava a afogar-se.
- Após a autópsia, confirmou-se que a vítima, D, morreu sufocada por afogamento.
- Os demandantes gastaram MOP119.953,00, a título de despesas de funeral.
- Na ocorrência do facto, a vítima já é licenciada em literatura pela Universidade Nacional de Chengchi em Taiwan e possui certificado de curso de pós-graduação da Universidade de Macau.
- A vítima nasceu em XX de X de 19XX e morreu antes de completar 27 anos de vida.
- Na ocorrência do facto, a vítima trabalhava como professora da secção do ensino secundário, na Escola Católica em Macau, acumulando as funções do Jornal dos Estudantes da secção do ensino secundário.
- No desempenho do cargo de professora da secção do ensino secundário, na Escola Católica em Macau, a vítima auferia um salário mensal de MOP12.665,00.
- Em acumulação das funções do Jornal dos Estudantes da secção do ensino secundário, a vítima auferia uma remuneração mensal de MOP633,25.
- (Portanto, no período compreendido entre 1 de Setembro de 2005 e 6 de Junho de 2006, a vítima recebeu da Escola Católica uma quantia global de MOP132.982,50).
- A par disso, como a vítima era professora, recebia mensalmente da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude um subsídio de MOP2.100,00.
- (Isto é, a vítima tinha um rendimento mensal de MOP15.398,25 até à sua morte).
- Contestação apresentada pelo demandado civil, E, perante o pedido de indemnização civil:
- Em 26 de Junho de 2006, o arguido, no exercício das funções de nadador-salvador na Piscina do Carmo, tinha habilitação reconhecida pelo I.D., para desempenhar actividades de nadador-salvador.
- A cadeira alta em apreço estava colocada em baixo duma cobertura de cimento que se situava em frente da entrada da piscina exterior, e no lado direito daquela cadeira havia um pilar de pedra como suporte da referida cobertura.
- Na verdade, a dita cadeira alta estava justamente em baixo duma viga da cobertura, por isso, a altura entre a cadeira e a cobertura não era suficiente para caber um adulto com altura geral sentado, tal como o arguido.
- A fiscalização na piscina é uma medida necessária do trabalho de salvamento.
- D não esbracejou nem gritou por socorro na água.
- Do afogamento até à confirmação da morte da vítima, D, ela encontrava-se sempre em estado de coma, não se verificando, portanto, nenhuma lesão no corpo dela.
- Contestação apresentada pelo demandado civil, A, perante o pedido de indemnização civil:
- Não houve nada a referir.
- Contestação apresentada pela demandada civil, R.A.E.M., perante o pedido de indemnização civil:
- Não houve nada a referir.
Factos não provados:
Pronúncia:
13.
Estar sentado na cadeira baixa e dobrada de plástico não permite uma visão a todos os nadadores.
15.
O arguido, E, não observou a situação de D.
23.
O arguido, E, não se sentou na cadeira alta mas na cadeira baixa e dobrada, fazendo com que não conseguisse observar a situação dos nadadores.
24.
O arguido agiu, de forma livre, voluntária e consciente, ao praticar o acto em causa.
25.
O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, ao praticar o aludido acto (negligência subjectiva).
26.
O arguido sabia perfeitamente que a referida conduta era proibida e punida por leis.
- Pedido de indemnização civil e respectivas contestações:
- Os restantes factos relevantes que não correspondem aos supramencionados factos provados, abrangendo os factos concludentes ou jurídicos.


III – O Direito
1. As questões a resolver
A primeira questão a resolver é a de saber se os factos praticados pelo 1.º demandado são ilícitos e culposos e se lhe deve ser imputada a responsabilidade pela morte da vítima.
A segunda questão a apreciar é a de apurar se o 2.º demandado responde a título de comitente.
Seguidamente, há que decidir se o Tribunal de 1.ª Instância, ao condenar os demandados no pagamento de alimentos, não violou o princípio do pedido e se o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 558.º do Código Civil, ao decidir que os demandantes não têm direito aos salários que a falecida auferiria durante a sua vida.
Há ainda que decidir se o valor da perda do direito à vida da falecida deveria ser superior a MOP$800.000,00, se o valor da indemnização por danos não patrimoniais, pelas dores sofridas pela vítima antes da morte, deve ser de MOP$300.000,00 e se o valor da indemnização por danos não patrimoniais, pelos danos próprios, resultantes da morte da vítima, a atribuir à demandante C deve ser de MOP$300.000,00.
Finalmente, decidir-se-á se o acórdão recorrido, ao manter que os juros devidos sejam contados a partir do trânsito em julgado da sentença, violou jurisprudência obrigatória.

2. Casos julgados
Antes de conhecermos das questões suscitadas, estabeleçamos o que já encontra adquirido, por falta de impugnação das decisões tomados nos autos, pela sentença de 1.ª Instância e pelo acórdão recorrido, isto é, o que já se encontra coberto pelo caso julgado material.
Não foi impugnada a absolvição total do pedido do 1.º demandado, decidida pela sentença de 1.ª Instância, nos recursos para o TSI.
Não vem impugnada a absolvição total do pedido da 3.ª demandada, decidida pelo acórdão recorrido.
Estas decisões ficaram, pois, já decididas com força de caso julgado, sem prejuízo de se poder entender (ou não), tal como fez o acórdão recorrido, que o 1.º demandado, o nadador-salvador, agiu negligentemente, designadamente, para efeitos de se apurar a responsabilidade do 2.º demandado, o concessionário da piscina, patrão do 1.º demandado.
Por outro lado, nos três recursos para o TSI nenhuma das partes impugnou a parte da sentença da 1.ª Instância em que esta se pronunciou sobre os juros devidos. Especificamente, os demandantes não suscitaram esta questão no recurso que então interpuseram.
Assim, e bem, o acórdão recorrido não abordou a questão, pois a mesma não era de conhecimento oficioso.
Vêm, agora, os demandantes suscitar esta questão no recurso para este TUI.
Tarde o fazem. Ela foi definitivamente decidida, por não terem impugnado a sentença de 1.ª Instância que, assim, transitou em julgado, nessa parte.
A última questão mencionada em 1. não será, pois, apreciada.

3. Facto ilícito e culposo.
Como se disse, a primeira questão a resolver é a de saber se os factos praticados pelos 1.º e 2.º demandados são ilícitos e culposos e se lhes deve ser imputada a responsabilidade pela morte da vítima.
O acórdão recorrido concluiu que o 1.º demandado, o nadador-salvador actuou com culpa.
Vejamos, se assim é.
Antes de mais, que se tenha considerado não provado que “O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, ao praticar o aludido acto”, não releva nada porque se tratava de matéria de direito, em parte e puramente conclusiva, noutra parte; é de considerar, portanto, como não escrita a resposta dada pelo tribunal colectivo (artigo 549.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente).
É indubitável que foi praticado um acto ilícito, que foi o atentado contra a vida da vítima, o direito de personalidade mais importante (artigo 70.º do Código Civil), suprimindo-o.
Ora, entre outros factos, provou-se:
- O arguido, E, era o único nadador-salvador que foi colocado por A na piscina exterior para prestar serviços de salvamento.
- A vítima estava a nadar em tal piscina, da zona menos profunda para a zona mais profunda da piscina e vice-versa.
- Na dada altura, na aludida piscina havia cerca de 20 nadadores.
- Naquele dia, por volta das 16H19, D nadava até ao meio da piscina, numa zona com 1,5m de profundidade, onde parava e se encontrava constantemente a flutuar e afundar, e, enfim, começou a afogar-se.
- D não esbracejou nem gritou por socorro na água.
- Na beira da piscina se disponibilizava a cadeira alta ao arguido, E, para poder visualizar, claramente, de cima para baixo, todos os nadadores.
- A cadeira alta estava colocada num local que atinge o tecto duma instalação, pelo que o arguido, E, não se sentou naquela cadeira mas na cadeira baixa e dobrada de plástico que estava ao lado da primeira, só lhe permitindo, portanto, uma visão horizontal.
- A aludida cadeira alta estava colocada num local que atinge o tecto duma instalação, pelo que nela não se sentou o 1º demandado.
- Embora a cadeira alta fosse movível, o 1º demandado não a moveu com vista a evitar a exposição da mesma ao sol.
- O 1º demandado optou por sentar na cadeira baixa e dobrada de plástico que estava ao lado da cadeira alta, visto que essa cadeira era mais confortável por não atingir o tecto da instalação nem estar em exposição ao sol.
- Às 16 horas, 23 minutos e 46 segundos, ou seja, aproximadamente 5 minutos após o afogamento de D, um nadador saiu da casa de banho e, ao aproximar-se da beira da piscina em que estava D, descobriu que ela se afogou, por consequência, chamou em voz alta o arguido, E, que se encontrava sentado numa cadeira baixa e dobrada de plástico. O arguido só tomou conhecimento do assunto naquele momento.
Avancemos, então.
Dispõe o artigo 14.º do Código Penal que:
“Artigo 14.º
(Negligência)
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização de um facto que preenche um tipo de crime”.
A propósito das duas modalidades de culpa, consciente e inconsciente, escreve ANTUNES VARELA1:
“No âmbito da mera culpa cabem, em primeiro lugar, os casos (excluídos do conceito do dolo) em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar2.
Este é o recorte psicológico dos casos que integram a culpa consciente.
Ao lado destes, há as numerosíssimas situações da vida corrente, em que o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida.
  …
Fala-se nestes casos em culpa inconsciente”.
E acrescenta o mesmo autor3:
“Assentando a mera culpa, em qualquer das suas variantes, na omissão de um dever de diligência (o dever de não confiar leviana ou precipitadamente na não verificação do facto ou o dever de o ter previsto e ter tomado as providências necessárias para o evitar), as principais questões que ela levanta consistem em saber quais são as coordenadas que definem esta diligência e qual é o verdadeiro conteúdo ou substância desse dever.
Trata-se, em primeiro lugar, de saber qual é o padrão por que se afere a conduta do lesante ou, por outras palavras, qual é a bitola com que se mede o grau de diligência que dele é exigível: será a diligência que o agente costuma aplicar nos seus actos (diligentia quam suis rebus adhibere solet), de que ele se revela habitualmente capaz, ou é antes a diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente, avisado e cuidadoso?
No primeiro caso, mede-se a culpa em concreto, pelo figurino real do próprio lesante; no segundo, determina-se a culpa em abstracto, pelo modelo de um homem-tipo, pelo padrão de um sujeito ideal, a que os romanos davam a designação prosaica de bonus pater familiar, e que é, no fundo, o tipo de homem-médio ou normal que as leis têm em vista ao fixarem os direitos e deveres das pessoas em sociedade”.
  Conclui ANTUNES VARELA que o Código Civil português consagrou expressamente a tese da culpa em abstracto, no artigo 487.º, n.º 2, correspondente ao artigo 480.º, n.º 2, do Código Civil de Macau, onde se estatui:
“A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.
Ensina J. FIGUEIREDO DIAS4 que “quando se fala da violação do dever de cuidado devido como elemento do tipo de ilícito negligente quer-se designar, dito com maior exactidão, a violação de exigências de comportamento em geral obrigatórias cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar realizações não dolosas de um tipo subjectivo de ilícito”.
  Por outro lado, a violação do dever de cuidado juridicamente imposto, que é a pedra de toque do ilícito negligente, tem de conduzir à produção do resultado típico, nos crimes negligentes de resultado, como é o caso do homicídio.
  Se, apesar da violação do dever de cuidado, não há resultado, então não existe ilícito negligente de resultado.
  E se, apesar da violação do dever de cuidado, existe a produção do resultado, mas não há uma relação de causa e efeito entre a violação do dever e o resultado, não existe ilícito negligente.
Como explica J. FIGUEIREDO DIAS5 “Não basta a comprovação de que o agente, com a sua acção, produziu ou potenciou um risco não permitido para o bem jurídico ameaçado; é preciso ainda determinar se foi esse risco que se materializou ou concretizou no resultado típico”. E exemplifica: «Se, v.g., um condutor “fura” a luz vermelha do semáforo num cruzamento em condições de plena visibilidade e quando as vias estão desertas, não preenche o tipo de ilícito das ofensas à integridade física se por força de óleo imperceptivelmente derramado na estrada perde o controlo do veículo e fere dois transeuntes que conversam placidamente no passeio»6.
Sabe-se que, por conveniência do 1.º demandado, para não apanhar sol, não se sentava numa cadeira alta que permitia ver toda a piscina. Sentou-se, antes numa cadeira baixa, ao nível da piscina e, portanto, com uma visibilidade mais reduzida.
Pois bem, a questão da colocação da cadeira em que se sentava o nadador-salvador e a posição que este tomava na vigilância dos banhistas, embora represente violação do dever de cuidado, não é por si, decisiva, até porque não se demonstra que tenha sido este risco a causa adequada da omissão do nadador-salvador. Isto é, não se demonstra que, mesmo que este estivesse sentado na cadeira mais alta, panorâmica, conseguisse observar a vítima a afogar-se e, assim, agir para evitar tal resultado.
No entanto, estivesse onde estivesse, o nadador-salvador tinha de ter uma atenção tal ao movimento dos banhistas na piscina, que lhe permitisse detectar situações anómalas que durassem - como esta durou - 5 minutos.
Na verdade, embora a vítima não tenha esbracejado nem gritado por socorro na água, quando se afogava, o certo é que o afogamento durou 5 minutos, sem que o nadador-salvador, o 1.º demandado, tenha visto nada de anormal. Foi outra pessoa que chamou a atenção dele para a situação da afogada. Não reparou que a vítima, D, estava a afogar-se.
Não reparou, mas devia ter reparado. Era para isso que lá estava. Se outrem, que estava fora da piscina e que não era pago para observar a piscina, viu a afogada, porque não a viu o nadador-salvador?
  É sabido que quando se dá um afogamento, a vítima flutua alguns minutos enquanto tem ar nos pulmões, só afundando algum tempo depois, para voltar a flutuar passados alguns dias.
Afigura-se-nos que a conduta do 1.º demandado integra a segunda variante de culpa, a da alínea b) do artigo 14.º do Código Penal, a atinente à negligência inconsciente, por violação do dever de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz.
Relativamente à responsabilidade do 2.º demandado ela decorre de ser o patrão do causador da morte da vítima, nos termos do artigo 493.º do Código Civil:
“Artigo 493.º
(Responsabilidade do comitente)
1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.
2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.
3. O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 490.º”.
Em conclusão, não merece censura o acórdão recorrido ao responsabilizar o 2.º demandado pela reparação dos danos resultantes da morte da vítima.
Como nota final nesta questão, seja-nos permitido manifestar uma certa perplexidade por os interessados não terem alegado e provado (ou tentado provar) factos consubstanciadores de culpa da lesada na produção dos danos (concorrente com culpa do lesante), que pode reduzir ou mesmo excluir a indemnização, nos termos do artigo 564.º do Código Civil.
Na verdade, há nos autos indícios de culpa da vítima nos factos que conduziram à sua própria morte.
Em abstracto, salvo doença ou facto provocado por outrem, que nos autos não se vislumbram, o afogamento em piscina, de pessoa saudável, com 26 anos de idade, numa zona com 1,5 m de profundidade, provavelmente, é também (ou apenas) devido a incúria da própria.
Em concreto, não se sabe, porque os interessados não alegaram tais factos, qual a altura da vítima, se esta sabia nadar ou não e se na piscina constavam indicações visíveis sobre as várias profundidades desta. Sabendo a vítima nadar ou não, independentemente da sua altura, se na piscina constavam tais indicações (dúvida), como a vítima sabia ler (era professora), é provável que esta tivesse agido imprudentemente. Mas não podemos ir além disto, na falta de alegação e prova dos factos pertinentes.

4. Princípio dispositivo no pedido cível em processo penal. Alimentos.
Há que apurar se o Tribunal de 1.ª Instância, ao condenar os demandados no pagamento de alimentos, violou o princípio dispositivo, na modalidade de subprincípio do pedido.
Efectivamente, violou, bem andando o acórdão recorrido ao decidir que os demandantes pediram uma coisa e a sentença de 1.ª Instância deu outra.
Os demandantes pediram o pagamento dos salários e outros abonos complementares que a vítima receberia, durante 38 anos (MOP$7.021.602,00), alegando que ela poderia trabalhar até aos 65 anos.
Ora, a sentença de 1.ª Instância, em vez daquela atribuição entendeu condenar os demandados a pagar aos pais da vítima determinado montante a título de alimentos, em vez dos salários pedidos.
Pretendem, agora, os demandantes que alimentos ou salários são a mesma coisa, assuntos de dinheiro, pelo que o acórdão recorrido violou a lei.
Ora, o pagamento de salário é a retribuição de trabalho, que é devida ao trabalhador, pretendendo os demandantes receber tais salários que a vítima auferiria durante a sua vida activa se fosse viva.
Alimentos constituem tudo o que é indispensável à satisfação das necessidades da vida do alimentado, nomeadamente ao seu sustento, habitação, vestuário, saúde e lazer, sendo devidos por certas pessoas a favor de outras ligadas por laços do matrimónio, parentesco, afinidade ou outros, sendo a sua medida a proporção entre a necessidade do que recebe e possibilidade do que presta (artigos 1844.º, 1845.º, 1850 e 488.º, n.º 3, do Código Civil).
Por conseguinte, não há nenhuma relação entre uma e outra prestação.
Em processo penal, o juiz pode arbitrar oficiosamente uma reparação pelos danos sofridos pela vítima, mas apenas quando não foi deduzido nenhum pedido de indemnização civil no respectivo processo penal ou em acção cível separada (artigo 74.º, n.º1, do Código de Processo Penal).
Quando, como foi o caso, foi deduzido pedido de indemnização civil no respectivo processo penal, ao juiz está vedado condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, por se aplicar a regra do artigo 564.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Mas ainda que assim se não entendesse, e fosse possível conceder alimentos aos demandantes, a suportar pelo responsável pelo acidente, ainda assim não poderia o Tribunal atribuí-los na falta de factos alegados e provados.
Nos termos do artigo 488.º, n.º 3, do Código Civil, têm direito a alimentos os que podiam exigi-los ao lesado ou a quem este os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
Ora, não só não se provou que a vítima prestasse alimentos aos pais, como não se demonstra que estes necessitassem de alimentos da filha.
Em conclusão, os demandantes não têm direito a receber indemnização a título de substituição de alimentos.

5. Salários da falecida
Por outro lado, os herdeiros de pessoa falecida, concretamente os seus pais, não têm direito aos salários que a falecida poderia auferir se continuasse viva. Têm, naturalmente, direito aos salários já vencidos, mas ainda não pagos, mas não aos salários que não existem nem vêm a existir, já que o falecido, não prestando trabalho, não tem direito a receber salários.
Sobre esta questão já nos pronunciámos no Acórdão de 16 de Abril de 2004, no Processo n.º 7/2004,onde dissemos:
«Como se sabe, no dano patrimonial, pode distinguir-se o dano emergente e o lucro cessante ou lucro frustrado. O primeiro, refere ANTUNES VARELA, 7 “compreende o prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão. O segundo abrange os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão”.
Em caso de morte do lesado, se esta ocorre no próprio momento da agressão, a vítima não sofre qualquer dano emergente, porque só pode ser sujeito de direitos quem está vivo, pois a personalidade jurídica cessa com a morte (art. 65.º, n.º 1 do Código Civil). Se houve lesão de bens que lhe pertenciam em vida (roupa que vestia, automóvel que conduzia e que lhe pertencia, etc.), e a lesão é anterior à morte o direito ao seu ressarcimento transmite-se aos seus sucessores. Se a lesão é posterior à morte, os sucessores adquirem os bens por via sucessória e têm direito ao ressarcimento, já na qualidade de proprietários dos bens.
Mas se entre a lesão e a morte ocorre um período, maior ou menor, é evidente que a vítima pode ter danos emergentes, tais como a danificação da roupa que vestia no momento do acidente, as despesas com os tratamentos médicos e hospitalares, as perdas de ganho por incapacidade física ou psíquica, os custos com a contratação de pessoa que cuidasse da vítima, etc. E também pode ter lucros cessantes, por exemplo, os salários que deixou de auferir entre a data da lesão e a data da morte.
Quando a vítima falece, o direito a ser indemnizada por estes danos emergentes e lucros cessantes transmitem-se por via sucessória, nos termos gerais.
Mas quanto aos lucros cessantes que a vítima obteria após a morte, nunca os pode ter a vítima, faleça no momento da agressão ou em momento posterior. É que para a vítima adquirir os benefícios que deixou de obter por causa do facto ilícito, é necessário estar viva. Morta a vítima, não pode nascer na sua esfera jurídica tal direito, pois deixou de ter personalidade jurídica.
“... só tem danos quem está vivo”, escreve impressivamente J. OLIVEIRA ASCENSÃO8 que, acrescenta, “...o facto morte, extintivo de todas as situações jurídicas da pessoa, não pode funcionar ao mesmo tempo como facto aquisitivo de direitos ... ... À luz dos princípios, é insanável a contradição que consiste em considerar facto aquisitivo de um direito o próprio facto extintivo da capacidade de adquirir do de cujus – a morte”. 9
Como ensina ANTUNES VARELA, 10 citando o Conselheiro ARALA CHAVES, a propósito do dano não patrimonial – mas cuja lógica se aplica, como é bem de ver, ao dano patrimonial – é inadmissível reconhecer o nascimento do direito com o facto jurídico de que deriva, para o pretenso titular, a incapacidade para o adquirir.
Ou seja, em caso de morte, a vítima nunca pode adquirir o direito a ser indemnizada pelos benefícios que deixou de obter com o facto ilícito, após a morte. E, por conseguinte, tal direito, que não existe, não pode ser transmitido aos seus herdeiros.
O que a lei se preocupou em garantir foi que, em caso de morte, o lesante tenha de indemnizar aqueles que podiam exigir alimentos ao falecido. É este direito que consta do n.º 3 do art. 488.º do Código Civil, que corresponde ao n.º 3 do art. 495.º do Código Civil de 1966. É que esta norma, como explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA11 “constitui uma excepção ao princípio segundo o qual só o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal tem direito a indemnização, e não os terceiros que apenas reflexa ou indirectamente seriam prejudicados”. 12
É também por esta via que segue o princípio 15 da Recomendação 75/7, de 14.03.75, do Conselho da Europa, onde se estipula que a morte da vítima dá lugar a um direito ressarcitório do dano patrimonial causado às pessoas para com as quais a vítima assumiu, ou deveria ter assumido, um dever de sustento, ainda que não exclusivo, mesmo que não judicialmente exigível.13»
Mais recentemente, no Acórdão de 7 de Janeiro de 2015, no Processo n.º 111/2014, desenvolvemos esta ideia, mencionada no penúltimo parágrafo que antecede, de que só mediante norma expressa se pode conferir indemnização aos terceiros que apenas reflexa ou indirectamente seriam prejudicados com a lesão.
Estava aí em causa a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiro, não especificamente previstos na lei.
Aí escrevemos:
«A doutrina tradicional, tendo como corifeu ANTUNES VARELA, tem entendido que só “tem direito à indemnização o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, não o terceiro que só reflexo ou indirectamente seja prejudicado.
Assim, se A foi atropelado por B e sofreu ferimentos, será este obrigado a indemnizá-lo do dano que lhe causou. Mas já não será obrigado a indemnizar C, dono do teatro onde A deveria exibir-se no dia do acidente, nem a D, arrendatário do bufete que não funcionou por não haver o espectáculo, nem a E, crítico teatral que perdeu a remuneração ajustada para a sua crítica, visto B não ter violado nenhuma das relações contratuais afectadas na sua consistência prática.
Se E agrediu F, causando-lhe impossibilidade de trabalho, terá naturalmente que indemnizar o agredido, não só das despesas que tenho feito e dos incómodos que tenha padecido, como do prejuízo resultante da sua inactividade. Mas já não terá que indemnizar a empresa onde F é empregado, pelos prejuízos que lhe cause a falta do concurso do agredido, durante o período de impossibilidade de trabalho14, atento a carácter relativo da relação de trabalho.
Não há, efectivamente, no nosso sistema, como não existe no direito alemão por exemplo, um direito à integridade do património cuja violação possa assegurar a indemnização eventualmente requerida pelo lesado, nos casos que acabam de ser figurados.
É aos danos assim causados a terceiros, sem violação de nenhuma relação negocial ou para-negocial e sem infracção de nenhum dever geral de abstenção ou omissão, que na doutrina germânica se tem dado o nome de danos patrimoniais puros – e que não encontram, realmente, por óbvias razões, cobertura directa, nem na responsabilidade aquiliana, nem na responsabilidade contratual15 ”16.
Convém recordar que aquando dos trabalhos preparatórios do Código Civil português de 1966 – que é a fonte principal do Código Civil de Macau, designadamente, também quanto à regulamentação da responsabilidade civil aquiliana – o autor do projecto atinente à responsabilidade civil, VAZ SERRA, propôs expressamente que no caso de dano que não o da morte, os familiares do lesado têm “direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado” (artigo 759.º, n.º 5, do projecto)17.
Mas tal proposta não teve acolhimento no texto final do Código Civil. Neste (artigos 495.º e 496.º, correspondendo, respectivamente, aos artigos 488.º e 489.º do Código Civil de Macau) apenas se prevêem alguns casos concretos de reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por terceiros, a saber:
- No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral, e têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima;
- Em outros casos de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima;
- No caso de lesão de que proveio a morte e em outros casos de lesão corporal têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural;
- Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem;
- No caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do item anterior.
Quer isto significar, seguramente, que só nos apontados casos concretos se admite indemnização por danos patrimoniais ou não patrimoniais a outrem que não o lesado directo pela acção.
A generalidade da doutrina manteve, assim, o entendimento de que, em geral, só o titular do direito violado tem direito à indemnização18, sem prejuízo dos casos concretos previstos na lei em que esta se desvia da mencionada regra.»
Em conclusão, os demandantes não têm direito aos salários que a falecida auferiria durante a sua vida.

6. Valores dos danos não patrimoniais
Há ainda que decidir se o valor da perda do direito à vida da falecida deveria ser superior a MOP$800.000,00, se o valor da indemnização por danos não patrimoniais, pelas dores sofridas pela vítima antes da morte, deve ser de MOP$300.000,00 e se o valor da indemnização por danos não patrimoniais, pelos danos próprios, resultantes da morte da vítima, a atribuir à demandante C deve ser de MOP$300.000,00.
Quanto ao primeiro valor, atenta a idade da vítima, os critérios legais (artigo 489.º do Código Civil) e casos paralelos, afigura-se-nos mais adequado o valor de MOP$1.000.000,00.
Quanto ao valor da indemnização por danos não patrimoniais, pelas dores sofridas pela vítima antes da morte, na falta de factos provados, atendendo a que afogamento ocorreu em breves momentos, é injustificada a alteração pretendida, mantendo-se o valor de MOP$200.000,00.
No que toca aos danos próprios, resultantes da morte da vítima, a atribuir à demandante C, uma vez que a pretensão de aumento de MOP$200.000,00 para MOP$300.000,00 se fundamenta no seu sofrimento durante o período de gravidez para dar à luz a falecida, a mesma improcede, já que a lei concede reparação por danos não patrimoniais por morte da vítima, mas não pelas dores sofridas durante o período de gravidez para dar à luz a falecida.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso do 2.º demandado A e concedem provimento parcial ao recurso interposto pelos demandantes B e C, condenando o 2.º demandado A a pagar MOP$1.000.000,00 pela perda do direito à vida da falecida, no mais mantendo o acórdão recorrido.
Custas pelos demandantes e pelo 2.º demandado A, na proporção do vencimento.

Macau, 28 de Janeiro de 2015.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


     1 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, Vol. I, 10.ª edição, reimpressão de 2003, p. 573.
     2 O automobilista não afrouxa de velocidade num cruzamento de intensa circulação, insensatamente persuadido de que nenhum outro veículo surgirá no momento em que ele passa. A pessoa joga à rua um objecto, levianamente convencida de que ninguém por ali passará na ocasião.
     3 ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, Vol. I, p. 574
     4 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2.ª edição, Tomo I, reimpressão de 2012, p. 870.
     5 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal…, Tomo I, p. 877.
     6 J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal…, Tomo I, p. 336.
     7 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, 2003, 10.ª ed., Vol. I, p. 599.
     8 J. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Sucessões, Coimbra Editora, 2000, 5.ª edição revista, p. 246.
     9 J. OLIVEIRA ASCENSÃO, obra citada, p. 247 e 248.
     10 ANTUNES VARELA, obra e volume citados, p. 611 e 616.
     11 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, obra e volume citados, p. 498.
     12 Cfr. J. A. ÁLVARO DIAS, obra citada, p. 307 a 321, que, na sua recentíssima tese de doutoramento, publicada em 2001 e dedicada ao dano corporal, aborda a problemática dos lucros cessantes em caso de morte, frequentemente com recurso a doutrina e jurisprudência estrangeiras, sempre em função do direito a alimentos dos familiares do falecido, mas nunca coloca sequer a hipótese de o falecido ter adquirido o direito a ver ressarcidos os benefícios que deixou de obter com a sua morte.
     13 Citada por J. A. ÁLVARO DIAS, obra citada, p. 315, nota 712.
     14 Cr. Brox, pág. 88 e seg.; Enneccerus-Lehmann, §239, I, Não há, porém, dano de terceiro, mas dano na própria pessoa, se a mãe sofre um abalo nervoso sério ao ver o filho ser agredido ou atropelado: Larenz, §27, IV, pág. 460, nota 110.
     15 Vide, a propósito desta categoria de danos, Larenz, I, 14.a ed., §27, IV, pág. 459; Gernhuber, Das Schuldverhaltnis, 1989, §7, 1, 2, pág. 127; e, entre nós, Sinde Monteiro, ob. cit., pág. 187 e segs.
     16 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, 10.ª edição, reimpressão, 2003, I volume, p. 621.
     17 Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, n.º 101, p.138.
     18 ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 8.ª edição, 2000, p. 547, LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 3.ª edição, 2003, p. 404 e 405, EDUARDO DOS SANTOS JÚNIOR, Direito das Obrigações, Lisboa, AAFDL, 2010, p. 385 e 386.
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Processo n.º 122/2014