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Processo n.º 123/2014. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrentes: A, B, C e D.
Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças.
Assunto: Fixação de residência em Macau. Antecedentes criminais. Poderes discricionários. Artigos 9.º, n.º 2, alínea 1), da Lei n.º 4/2003. Reabilitação de direito. Violação do princípio da proporcionalidade. Erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Data da Sessão: 28 de Janeiro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Os n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.
II – A reabilitação de direito não tem natureza vinculativa para a Administração na decisão quanto à autorização de residência, tomada ao abrigo do disposto no art. 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, que permite a Administração indeferir o pedido de autorização de residência do interessado, tendo em consideração os seus antecedentes criminais.
III – Não cabe ao Tribunal dizer se renovaria ou não a autorização de residência temporária dos recorrentes, se lhe competisse decidir. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima



ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, B, C e D (doravante designados por recorrentes), interpuseram recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 22 de Maio de 2013, que indeferiu pedido de renovação da autorização de residência temporária dos mesmos em Macau, com fundamento em prática de crimes em Hong Kong, pela 1.ª recorrente.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 24 de Julho de 2014, negou provimento ao recurso.
Inconformados, interpõem A, B, C e D recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando duas questões:
- Já ocorreu reabilitação dos crimes cometidos, que não podem ser invocados para indeferir residência em Macau;
- O acto recorrido violou o princípio da proporcionalidade e houve erro notório e uso desrazoável do poder discricionário.
O Ex.mo Procurador-Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.


II - Os Factos
Estão provados os seguintes factos:
a) O Secretário para a Economia e Finanças indeferiu pedido de renovação da autorização de residência temporária dos recorrentes em Macau, por despacho de 22 de Maio de 2013, com base no seguinte parecer:
  
  “Parecer n.º XXXX/Fixação de residência/2008/02R
  Requerente - A
  Pedido de fixação de residência por investimento em bens imóveis - Renovação
   Aplicável: Regulamento Administrativo n.º 3/2005
  Assunto: Apreciação do pedido de fixação de residência por investimento
  À Comissão Executiva:
1. Seguem-se os dados de identificação dos interessados:
Nn.º
Nome
Relação
Documento /número
Prazo de validade do documento
Prazo de validade da autorização de residência temporária até
1
A
Requerente
BIRHK n.º XXXXXXXX(X)
16/09/2019
14/12/2012
  
  
  
Documento de Identificação para Vistos de Hong Kong
10/04/2019
  
2
B
Cônjuge
Passaporte chinês n.º XXXXXXXXX
18/01/2017
14/12/2012
3
C
Descendente
Passaporte chinês n.º XXXXXXXXX
7/7/2021
14/12/2012
4
D
Descendente
BIRPHK n.º XXXXXXX(X)

14/12/2012
  2. A requerente foi autorizada a fixar residência temporária em Macau, pela primeira vez, em 14 de Dezembro de 2009.
  3. Para efeitos de renovação, a requerente apresentou o seguinte documento de bem imóvel, no sentido de provar que ela detém ainda o investimento em bens imóveis conforme exigido na lei:
  (1) N.º da descrição na Conservatória do Registo Predial: XXXXX-II
  [Endereço (1)]
  Valor: MOP$1.052.130,00
  Data de registo: 11 de Abril de 2007 (141)
Aquando do pedido inicial, a requerente tinha como fundamentos do pedido os factos de possuir diploma de ensino secundário-complementar e de ter criado empresa em Macau. Através dos documentos apresentados, ficou provado que a requerente detinha ainda a empresa que tinha criado, estando em conformidade com as disposições legais relativas à fixação de residência por investimento (cfr. fls. 76 a 77).
4. Nos termos do art.º 3.º, n.º 1, al. 2) do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, a requerente apresentou um certificado de depósito a prazo emitido por instituição de crédito de Macau, de forma a comprovar que tinha fundos de valor não inferior a quinhentas mil patacas depositados em Macau.
   Certificado de depósito a prazo da requerente:
   Instituição de crédito emissora: [Banco (1)]
   N.º: XX-XX-XX-XXXXXX
   Valor: HKD$500.000,00, equivalente a MOP$515.000,00
   Natureza: Livre de qualquer ónus
   Período do depósito: Desde 20 de Maio de 2008 até 21 de Maio de 2013 (No vencimento do depósito, o capital será renovado e os juros serão creditados na conta)
   Data de emissão: 4 de Julho de 2012
  No presente pedido de renovação, a requerente A apresentou o seu BIRHK (n.º XXXXXXX(X)) e o documento comprovativo de permanência, que, em substituição do documento de autorização de entrada na Guiné-Bissau, servem para provar a sua identidade. Este Instituto entregou os documentos ao CPSP para efeitos de verificação. E o CPSP, à luz do despacho n.º 120-I/GM/97 proferido pelo antigo Governador de Macau, emitiu parecer sobre os documentos de viagem da interessada e comunicou a este Instituto que a interessada reunia o requisito da identidade para requerer a fixação de residência por investimento.
  5. Não obstante, do CRC de Hong Kong (cfr. fls. 32 a 33) apresentado pela requerente no presente pedido de renovação, resulta que a mesma tem os seguintes antecedentes criminais:
  1). Excesso de permanência, pelo qual foi condenada, em 18 de Setembro de 1995, na multa de HKD$750,00.
  2). Fornecimento intencional de informações falsas, pelo qual foi condenada, em 6 de Dezembro de 1995, na multa de HKD$2.000,00.
  3). Utilização de documento de viagem ilegalmente obtido com o propósito de imigração, pela qual foi condenada, em 24 de Fevereiro de 2000, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, e na multa de HKD$2.000,00.
  6. A requerente apresentou declaração em 15 de Janeiro de 2013, prestando esclarecimentos sobre os registos criminais. Em síntese, ela deu à luz o filho Dem 1995 em Hong Kong, tendo, assim, violado as disposições legais sobre a permanência em Hong Kong. Nessa altura, para que o filho obtivesse o direito de residência em Hong Kong, forneceu informações falsas ao governo de Hong Kong. Mas depois, entregou-se, vindo a ser condenada pelo tribunal na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, e na multa de HKD$2.000,00. Praticou os actos errados para um melhor futuro do filho, dos quais, aliás, já está profundamente arrependida, esperando que possa continuar a residir em Macau (cfr. fls. 75).
  7. A fim de acompanhar o caso, em 22 de Janeiro de 2013, através do ofício n.º XXXX/GJFR/2013, este Instituto notificou a requerente para interpor parecer, por escrito, acerca dos seus registos criminais supracitados no prazo de 10 dias (cfr. fls. 81). A requerente, em 12 de Março de 2013, apresentou declaração a este Instituto, vindo a esclarecer os aludidos registos criminais (cfr. fls. 69 a 71).
  8. Conforme o disposto no art.º 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003 da RAEM, para efeitos de concessão da autorização de residência, deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos: Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei. Enquanto o art.º 4.º, n.º 2, al. 2) do mesmo diploma legal se reporta à situação de “terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior”.
  9. Conforme se revela pelo CRC de Hong Kong da requerente, ela tem vários registos criminais, não é delinquente primária, já que violou reiteradamente as leis. A requerente explicou que foi para o seu filho poder obter o direito de residência em Hong Kong que forneceu informações falsas ao governo de Hong Kong e violou as disposições legais, mas tal não constitui um motivo razoável. Importa salientar também que, é de certa gravidade a conduta ilícita da requerente, pela qual ainda foi condenada na pena de prisão. Portanto, acerca do seu pedido de renovação ora em apreço, é realmente difícil emitir-se parecer favorável.
  10. Nos termos acima expostos, tendo em consideração que a requerente tem vários antecedentes criminais em Hong Kong, além de que pela respectiva infracção penal de certa gravidade, foi a mesma condenada na pena de prisão, ao abrigo do disposto no art.º 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, aplicável ex vi o art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, propõe-se que seja indeferido o pedido de renovação da autorização de residência temporária da requerente e do seu agregado familiar”.
b) Tendo a 1ª recorrente e o seu agregado familiar obtido a autorização de residência temporária em 14 de Dezembro de 2009, o 2º recorrente cessou a exploração da fábrica de fechos-éclair no Interior da China e o 3º recorrente também desistiu do seu estudo no Interior da China para a família inteira, incluindo o 4º recorrente, mudando-se toda a família para Macau, aqui fixando residência, aqui desenvolvendo os seus negócios, pagando os impostos, estudando e trabalhando.
c) A 1ª recorrente abriu contas de depósito em diferentes bancos de Macau
d) Durante a sua permanência em Macau, a 1ª recorrente dedicou-se activamente ao trabalho voluntário social.
e) Depois de vir para Macau, a 1ª recorrente participou nos programas dirigidos à saúde do adulto e da mulher
f) Sofre de doença do foro ginecológico.
g) O 2º recorrente assume o papel de pilar económico da família, começou a trabalhar como croupier no casino desde Abril de 2012, sendo a sua empregadora a [Companhia (1)].
h) O 2º recorrente também abriu contas de depósito no [Banco (1)].
i) Quando a família veio fixar residência para Macau, o 2º recorrente vendeu todos os imóveis que a família possuía no Interior da China, incluindo uma fábrica de fechos-éclair que foi explorando. O património da família também foi transmitido para Macau, a fim de comprar a actual residência de família, situada na [Endereço (1)].
j) O 3º recorrente frequentou a Escola (Secção secundária).
k) Tendo passado 3 anos na escola de ensino secundário-complementar, o 3º recorrente terminou o curso neste ano , sendo estudioso e diligente, com o desejo de progredir. Dá-se bem com os seus colegas, gostando muito da sua vida de estudo em Macau. Também participou em diversas actividades fora do horário lectivo e em provas fora da escola.
l) Ademais, fora do horário lectivo, o 3º recorrente tem-se dedicado activamente a actividades para jovens e ao trabalho voluntário, tendo sido premiado pela Youth Association como excelente membro.
m) O 3º recorrente está a frequentar as Aulas Complementares de Verão proporcionadas pela uma Universidade em Macau. Se concluir as Aulas com aproveitamento, ingressará formalmente nesta Universidade no semestre lectivo que vem.
n) O 4º recorrente estuda em Hong Kong e regressa a Macau nas férias para se reunir com a família.


III – O Direito
1. As questões suscitadas e a apreciar
Trata-se de saber se a reabilitação dos crimes cometidos pela 1.ª recorrente não pode ser invocada para indeferir residência em Macau.
E ainda, se o acto recorrido violou o princípio da proporcionalidade e se houve erro notório ou uso desrazoável do poder discricionário.

2. Reabilitação
A propósito da primeira questão dissemos o seguinte no nosso acórdão de 9 de Julho de 2014, no Processo n.º 29/2014, e que aqui se aplica inteiramente:
«Na tese da recorrente, a Administração utilizou mal os seus poderes discricionários designadamente, porque já está reabilitada. Isto é a condenação judicial deixou de constar do certificado do registo criminal.
Sobre esta questão já nos pronunciámos no Acórdão de 31 de Julho de 2012, no Processo n.º 38/2012, tendo aí referido que a decisão judicial de não transcrição da sentença condenatória no certificado do registo criminal não tem natureza vinculativa para a Administração na decisão quanto à renovação, ou não, da autorização de residência tomada ao abrigo do disposto no art.º 9.º n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, que permite a Administração indeferir o pedido de autorização de residência do interessado, tendo em consideração os seus antecedentes criminais.
E no acórdão de 10 de Junho de 2011, no Processo n.º 13/2011, recordando o decidido pelo TUI no seu acórdão de processo n.º 36/2006, proferido em 13 de Dezembro de 2007, dissemos que “os requisitos para a concessão de autorização de residência previstos no regime de entrada, permanência e autorização de residência, a Lei n.º 4/2003, têm o seu fundamento diferente que o regime de registo criminal. Naquele relevam mais os interesses de ordem pública e segurança da comunidade da RAEM, neste preocupa com a ressocialização de delinquentes condenados criminalmente na Região através da reabilitação. São diferentes os interesses que se visam proteger. Por isso, não é possível aplicar pura e simplesmente as disposições de um regime para o outro.”».

3. Princípio da proporcionalidade. Erro notório ou uso desrazoável do poder discricionário
Quanto à segunda questão.
Os recorrentes viram recusada a renovação da autorização de residência temporária em Macau em virtude de a 1.ª recorrente ter antecedentes criminais.
Foi condenada por três vezes, em Hong Kong, em 1995 por excesso de permanência e por fornecimento intencional de declarações falsas e em 2000 por utilização de documento de viagem ilegalmente obtido com o propósito de imigração.
Claro que a recorrente tem boas explicações - na sua perspectiva – para a prática dos crimes: tudo foi feito em prol da família, para o filho poder frequentar a escola, para o filho se poder deslocar a Hong Kong.
Só que os fins não justificam os meios.
Temos decidido (por exemplo, no acórdão de 15 de Outubro de 2014, no Processo n.º 103/2014), que os n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.
Temos também entendido que só em casos flagrantes de mau uso do poder discricionário devem os tribunais anular actos administrativos praticados no exercício de tais poderes.
Como recentemente referimos do acórdão de 19 de Novembro de 2014, no Processo n.º 112/2014, relativo a fixação de período de interdição de entrada em Macau, “este Tribunal tem, repetidamente, afirmado – por exemplo, no acórdão de 9 de Maio de 2012, no Processo n.º 13/2012 - a intervenção dos tribunais na anulação de actos exercidos no exercício de poderes discricionários, com fundamento em violação de princípios como da proporcionalidade ou da justiça, só deve ter lugar naqueles casos flagrantes, evidentes, de violações intoleráveis destes princípios. Mais referimos, no mesmo Acórdão, que ao tribunal não compete dizer se o período de interdição de entrada fixado ao recorrente foi ou não proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam, se tal período foi o que o Tribunal teria aplicado se a lei lhe cometesse tal atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro”.
Quer dizer, não cabe ao Tribunal decidir se renovaria ou não a autorização de residência temporária dos recorrentes, se lhe competisse decidir. Essa é uma avaliação que a lei pôs a cargo da Administração.
Ao Tribunal apenas cabe avaliar se houve um erro evidente, escandaloso, no exercício de poderes discricionários. E no caso dos autos, não nos parece que tenha havido violação do princípio da proporcionalidade, erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários. A recorrente praticou vários crimes. Fê-lo conscientemente, tendo em vista certos fins. Tem de assumir a responsabilidade pelos seus actos e respectivas consequências.
O acórdão recorrido não merece censura.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 5 UC.
Macau, 28 de Janeiro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho



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Processo n.º 123/2014