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Processo n.º 9/2015. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrente: A.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Recurso em processo penal para o Tribunal de Última Instância. Droga. Estupefaciente. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Erro notório na apreciação da prova. Contradição insanável da fundamentação. Medida da pena.
Data do Acórdão: 4 de Março de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos artigos 339.º e 340.º do Código de Processo Penal.
II - Existe erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto uma conclusão inaceitável, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou quando se violam as regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores.
III - A contradição insanável da fundamentação é um vício intrínseco da decisão, que consiste na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto, bem como entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada. A contradição tem de se apresentar insanável ou irredutível, que não possa ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todo e às regras da experiência comum.
IV - Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima



ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 12 de Setembro de 2014, condenou o arguido A, pela prática em autoria material, na forma consumada de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão.
  O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 18 de Dezembro de 2014, julgou improcedente o recurso interposto pelo arguido.
Ainda inconformado, recorre o arguido para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- O acórdão recorrido enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada porque não fez constar factos relativos ao consumo de estupefacientes pelo recorrente, nem qual a quantidade destinada ao consumo pessoal e qual a quantidade destinada ao fornecimento a outrem;
- O acórdão recorrido enferma do vício de contradição insanável da fundamentação porque diz que o recorrente destinava os estupefacientes na totalidade à venda a terceiros, mas não há qualquer facto provado que justifique isto;
- O acórdão recorrido enferma do vício de erro notório na apreciação da prova porque o teste à urina apresentou resultado positivo à cocaína e o Tribunal considerou que ele destinava os estupefacientes à venda a terceiros. Além disso nenhum dos três telemóveis apresentava registo de chamadas. O exame laboratorial não indicou se a cocaína era cloridrato ou éster metílico de benzoilecgo-nina;
- A pena aplicada é excessiva, devendo ser aplicada uma pena inferior a 3 anos de prisão e suspensa na sua execução.
  O Ex.mo Procurador-Adjunto, na resposta à motivação, pronuncia-se pela manifesta improcedência do recurso.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
1.
  O arguido A é residente de Hong Kong, e no período compreendido entre 1 de Junho e 27 de Setembro de 2013, tem-se deslocado por 29 vezes na totalidade, entre Hong Kong e Macau, e a maior parte destas deslocações foram realizadas no mesmo dia.
2.
  Em 27 de Setembro de 2013, pelas 09h21, o arguido saiu de Macau através do Terminal Marítimo do Porto Exterior, e comprou em Hong Kong, junto dum homem de identidade desconhecida, “cocaína” a preço de HKD$7.000,00. Pelas 22h45 do mesmo dia, o arguido entrou em Macau através do Terminal Marítimo do Porto Exterior, trazendo com ele a supracitada “cocaína”.
3.
  O CPSP recebeu informações e em 29 de Setembro de 2013, pelas 20h15, interceptou o arguido nas proximidades do Centro Internacional de Macau na Rua do Terminal Marítimo, encontrando na posse dele 1 saco de pó em forma de pedaço, de cor creme, HKD$32.000,00 em numerário, 2 telemóveis e 2 chaves.
4.
  Posteriormente, os guardas do CPSP deslocaram-se à residência do arguido situada na [Endereço (1)], para efectuar a investigação, encontrando em cima da mesa na sala de estar 5 sacos de pó em forma de pedaço, de cor creme, 1 balança electrónica, 1 cartão, 3 sacos plásticos transparentes, 1 tesoura e 1 telemóvel.
5.
  Submetidos a exame laboratorial, revelou-se que o referido saco de pó em forma de padeço de cor creme, encontrado na posse do arguido e com o peso líquido de 0,596g, continha “cocaína”, substância abrangida pela tabela I-B anexa à Lei n.º 17/2009, e após a análise quantitativa, a percentagem de “cocaína” foi verificada em 76,47%, com o peso de 0,456g; os 5 sacos de pó em forma de pedaço de cor creme, encontrados na residência do arguido e com o peso líquido de 1,912g, continham “cocaína”, e após a análise quantitativa, a percentagem de “cocaína” foi verificada em 71,42%, com o peso de 1,366g; e a balança electrónica, o cartão, os sacos plásticos transparentes e a tesoura acima referidos tinham vestígios de “cocaína”.
6.
  O peso líquido da “cocaína” encontrada na posse e na residência do arguido já é maior que a quantidade de referência de uso de 5 dias, e depois de transportar as drogas “cocaína” para Macau, o arguido dividiu-as na sua residência em sacos pequenos, e vendeu-as com finalidade lucrativa. A balança electrónica, o cartão, os sacos plásticos transparentes e a tesoura encontrados na residência do arguido foram instrumentos utilizados pelo arguido para dividir as drogas.
7.
  Os telemóveis encontrados na posse e na residência do arguido foram instrumentos de comunicação utilizados pelo arguido para o tráfico das drogas, e as quantias em numerário encontradas na posse do arguido foram obtidas pelo arguido no tráfico das drogas.
8.
  O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária ao comprar dolosamente as drogas “cocaína” em Hong Kong e transportá-las para Macau, bem como dividi-las e escondê-las na sua posse e residência, com o objectivo de vendê-las com finalidade lucrativa.
9.
  O arguido tinha conhecimento da natureza das drogas, e sabia bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
  Mais se provou:
O arguido alega que está desempregado.
O arguido tem como habilitações literárias o 3º ano do ensino secundário, e não tem ninguém a seu cargo.
De acordo com o CRC, o arguido é delinquente primário.
-
Factos não provados:
  São seguintes os factos relevantes que não estão em conformidade com os factos provados:
  No período compreendido entre 1 de Junho e 27 de Setembro de 2013, o arguido A tem-se deslocado por 29 vezes na totalidade, entre Hong Kong e Macau, para transportar as drogas “cocaína” de Hong Kong para Macau e vendê-las com finalidade lucrativa.
  O peso líquido da “cocaína” encontrada na posse e na residência do arguido já é maior que 16,72 vezes a quantidade de referência de uso de 5 dias.
-
Convicção do Tribunal:
  A convicção do Tribunal fundamenta-se na apreciação crítica e comparativa de todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento valorados na sua globalidade, nomeadamente, a declaração prestada pelo arguido, os depoimentos da testemunha guarda n.º XXXXXX do CPSP B , da mãe do arguido C e da irmã mais velha do arguido D, bem como todas as provas documentais constantes dos autos, incluindo os relatórios do Laboratório de Polícia Científica e os objectos apreendidos.
  O arguido confessou apenas que as drogas e os instrumentos encontrados na posse e na residência dele eram destinados ao seu consumo pessoal, negando o fornecimento das drogas a outrem com finalidade lucrativa.
  Tendo em consideração a detenção do arguido, os meios utilizados na prática do crime, a quantidade das drogas e os objectos encontrados na posse e na residência dele, designadamente a balança electrónica, o cartão, os sacos plásticos transparentes e a tesoura, bem como a forma de guarda e de embalagem das drogas, e segundo as regras da experiência, o arguido, ao ser detido, estava, sem dúvida, a praticar actividades de tráfico de estupefacientes, tal como referido na acusação.
  Porém, é de mencionar que os respectivos relatórios dos exames laboratoriais só mostraram que as drogas pertenciam a “cocaína”, mas não verificaram se era “cocaína (cloridrato)” ou “cocaína (éster metílico de benzoilecgo-nina)” abrangidas pela tabela anexa à Lei n.º 17/2009, por isso, deve o arguido ser condenado pela prática dum crime de detenção ilícita de cocaína (cloridrato) para tráfico.
  
  
III - O Direito
1. As questões a resolver
As questões a apreciar são as atinentes aos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação, erro notório na apreciação da prova, bem como às questões de direito que se referem à medida da pena.
Como comentário inicial, oferece-nos dizer que o recorrente cita acórdãos deste TUI, favoráveis às teses do arguido, e procura invocá-los a seu favor. O problema é que, como veremos, os factos provados nos autos não encaixam na doutrina dos acórdãos.

  2. Erro notório na apreciação da prova
Verifica-se o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, quando se retira de um facto uma conclusão inaceitável, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou quando se violam as regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores.
Nesta sede, alega o recorrente que o acórdão recorrido enferma do vício de erro notório na apreciação da prova porque o teste à urina apresentou resultado positivo à cocaína e o Tribunal considerou que ele destinava os estupefacientes à venda a terceiros. Além disso nenhum dos três telemóveis apresentava registo de chamadas. E ainda que o exame laboratorial não indicou se a cocaína era cloridrato ou éster metílico de benzoilecgo-nina.
Quanto ao primeiro facto, a circunstância de o recorrente ter consumido droga semelhante em algum tempo anterior à detenção, não significa que o produto encontrado na sua posse fosse também destinado ao seu consumo pessoal. Trata-se de apreciação da prova feita pelo Tribunal de 1.ª Instância, que não evidencia erro notório.
Quanto ao facto de nenhum dos três telemóveis em seu poder apresentar registo de chamadas, não se vislumbra em que é que daqui decorre que não destinasse o produto à venda.
Para efeitos da punição por crime de tráfico de menor gravidade, a quantidade de referência de uso diário do cloridrato de cocaína é de 0,2 g, enquanto que a cocaína do éster metílico de benzoilecgo-nina é de 0,03 g, dada a diferença de potência dos dois preparados.
Ora, o recorrente detinha 1,822 g de cocaína, que era bastante superior a cinco vezes a quantidade do mapa da quantidade de referência de uso diário do cloridrato de cocaína, pelo que não tem fundamento a alegação do recorrente, visto que o Tribunal considerou o produto cuja quantidade de referência é mais favorável ao arguido, uma vez que o laboratório não esclareceu qual dos produtos de cocaína estava em causa.
  Improcede o vício suscitado.
  
3. Contradição insanável da fundamentação
O vício da contradição insanável da fundamentação, previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, é um vício intrínseco da decisão, que consiste na contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto, bem como entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada. A contradição tem de se apresentar insanável ou irredutível, que não possa ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todo e às regras da experiência comum.
A tese do recorrente é a de que o acórdão recorrido enferma do vício de contradição insanável da fundamentação porque diz que o recorrente destinava os estupefacientes na totalidade à venda a terceiros, mas não há qualquer facto provado que justifique isto.
Ora, esta alegação não integra qualquer contradição nem qualquer outro vício, designadamente o de erro notório na apreciação da prova.
  
4. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Nos acórdãos de 20 de Março de 2002, no Processo n.º 3/2002, de 9 de Outubro de 2002, no Processo n.º 10/2002, de 24 de Novembro de 2010, no Processo n.º 52/2010, entre muitos, este Tribunal entendeu que ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, “quando a matéria de facto provada, se apresente insuficiente para a decisão de direito adequada, o que se verifica quando o tribunal não apurou matéria de facto necessária para uma boa decisão da causa, matéria essa que lhe cabia investigar, dentro do objecto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e defesa, sem prejuízo do disposto nos arts. 339.º e 340.º do Código de Processo Penal.”
Relativamente a esta alegação, o recorrente pretende que o vício consiste em o tribunal não ter feito constar factos relativos ao consumo de estupefacientes pelo recorrente, nem qual a quantidade destinada ao consumo pessoal e qual a quantidade destinada ao fornecimento a outrem.
O Tribunal não o fez porque não se provaram, sendo que a acusação nada refere a tal respeito. Logo, nada havia a investigar que não tivesse sido investigado.
Quando se fala em investigar quer referir-se que o tribunal tem de apurar se os factos alegados pela acusação ou pela defesa ou que resultem da discussão da causa são verdadeiros ou não.
Improcede o vício suscitado.

5. Medida da pena.
Vem ainda a questão da medida da pena.
Relativamente à pretensão de redução das penas entre os seus limites mínimo e máximo, tem este Tribunal considerado que “Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada” (Acórdãos de 19 de Setembro de 2008 e 23 de Janeiro de 2008, respectivamente, nos Processos n. os 29/2008 e 57/2007).
Atendendo a que a penalidade varia entre 3 e 15 anos de prisão, que a favor do recorrente não milita qualquer circunstância atenuante, para além de não ter sido condenado judicialmente em Macau e as demais circunstâncias provadas, como a da quantidade detida ser relativamente reduzida, não se afigura desproporcionada a pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão pela prática, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009.
Não faz sentido, por outro lado, comparar a pena aplicada ao recorrente com penas aplicadas a outros processos. Cada realidade é diferente, não é suficiente comparar apenas o estupefaciente apreendido nos processos em causa.
O recorrente, por outro lado, não alegou qualquer violação de vinculação legal na matéria.
Improcede a questão suscitada.
O recurso é, assim, improcedente.

IV – Decisão
Face ao expendido, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 5 UC.
Macau, 4 de Março de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai



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