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Processo n.º 2/2015. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: AA, AB, AC, AD e AE.
Recorrida: AF.
Assunto: Procedimentos cautelares. Existência do direito. Alegação dos factos. Prova de factos não alegados. Artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Arrendamento. Inversão do título da posse.
Data do Acórdão: 4 de Março de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – A circunstância de nos procedimentos cautelares não se exigir mais do que a prova sumária da existência do direito do requerente, não dispensa a alegação de factos de que decorre o direito.
  II – O juiz não pode dar como provados factos não alegados, transformando conceitos de direito (de forma pública, pacífica) em factos provados (com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém), sem ter dado cumprimento ao disposto no artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
III – O mero acto do arrendatário, consistindo em deixar de pagar a renda ao senhorio, não significa que o mesmo inverteu o título da posse e deixou de se considerar arrendatário para passar a considerar-se dono do local arrendado.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
AF requereu a restituição provisória da posse do rés-do-chão do prédio com o n.º 65 da [Endereço (1)], em Macau, alegando ter a posse da propriedade do domínio útil dos prédios com os n. os 65, 65-A e 67 da [Endereço (1)] e com os n.os 13, 15 e 17 do [Endereço (2)], contra AA, AB, AC, AD e AE, tendo o Tribunal Judicial de Base decretado a providência pedida.
Após oposição dos requeridos AA, AC e AD, foi mantida a restituição provisória da posse.
Interposto recurso pelos requeridos AA, AB, AC, AD e AE, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 25 de Setembro de 2014, negou provimento ao mesmo.
Recorrem agora para este Tribunal de Última Instância (TUI) os requeridos AA, AB, AC, AD e AE, suscitando seguintes questões:
- O simples facto de a Recorrida ter deixado de pagar rendas não é suficiente para despoletar o funcionamento do instituto da inversão do título da posse, nos termos da alínea e) do artigo 1187.º e do artigo 1190.º, ambos do Código Civil.
- Para que a Recorrida adquirisse a posse do Imóvel dos Autos nos termos do artigo 1190.º do Código Civil, teria que ter praticado um acto de oposição categórica perante os possuidores, o que não sucedeu (nem a mesma alegou ou provou).

II - Os Factos
A sentença de 12 de Dezembro de 2013, do Tribunal Judicial de Base, deu como provado o seguinte:
  1.º
  O rés-do-chão do n.º 65 da [Endereço (1)], em Macau, esteve até há alguns meses ocupado por uma loja, sendo sua senhoria a aqui requerente e seu inquilino o Sr. AG.
  2.º
  O referido n.º 65, bem como o demais bloco urbano correspondente aos n.os 65-A e 67 da [Endereço (1)] e aos n.os 13, 15 e 17 do [Endereço (2)], tem sido utilizado e ocupado pela requerente, e, antes dela, pelos seus antepassados, todos tendo actuado com a convicção de serem os seus legítimos proprietários, desde há já mais de 74 anos, encontrando-se aí instalado o HOTEL, de que a autora é dona e titular, não fazendo actualmente parte do hotel o rés-do-chão do nº 65 arrendado a AG.
  3.º
  Tal utilização e ocupação relativamente ao indicado bloco urbano ao longo destes anos têm consistido, nomeadamente, nos seguintes actos: hospedar pessoas a troco de dinheiro, obter o devido reconhecimento perante as entidades administrativas, suportar despesas de funcionamento, pagar tributos (impostos, taxas, contribuições, etc), contribuir para o Fundo criado para o bairro conhecido, à altura, como AA, assegurar a realização de obras, pagar salários, promover a defesa dos prédios e proceder à cedência do gozo de uma parte mediante contrapartida pecuniária.
  4.º
  A requerente intentou uma acção em 5 NOV 2012, que corre os seus termos sob o n.º CV3-12-0087-CAO junto do 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, em sede da qual pediu, entre o mais, o reconhecimento judicial da aquisição, por usucapião, de 85,276% do domínio útil do prédio urbano nº 65º e o reconhecimento da mera posse em relação ao domínio útil do mesmo prédio.
  5.º
  Tal acção, que foi registada na Conservatória do Registo Predial sob a inscrição n.º XXXXXX à descrição n.º XXXX, foi intentada contra 42 Réus, de entre os quais a aqui 1.ª requerida, Sociedade comercial AA, e o aqui 3.º requerido, Sr. AC.
  6.º
  O domínio útil referente ao Prédio Urbano n.º 65, sito na [Endereço (1)], que confronta do N. com a [Endereço (3)], do S com o prédio n.º 63, de L com a referida Rua e de O com o n.º 1 da [Endereço (3)], está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX do livro XXX e inscrito na matriz predial sob o artigo 1826, tendo o respectivo terreno sido concedido por aforamento.
  7.º
  O prédio urbano n.º 65 está fisicamente dividido em 2 prédios urbanos, tendo cada um, respectivamente, a denominação policial n.º 65 e n.º 65A.
  8.º
  O Arrendamento do rés-do-chão do nº 65 da [Endereço (1)] foi inicialmente celebrado na década de 50 entre o avô materno do Sr. AG – residente em Macau, na [Endereço (1)], n.º 65-A, R/c e/ou - e o pai da requerente, Sr. AH, a fim de aquele aí explorar um Café de nome XXX.
  9.º
  Após a morte do avô materno do Sr. AG, a renda passou a ser paga directamente ao HOTEL pela mãe do mesmo Sr. AG e, após o óbito desta, o pagamento continuou a ser feito directamente pelo referido Sr. AG.
  10.º
  Desde dia indeterminado, mas por volta de Agosto de 2013, até ao presente, o Sr. AG, ou a pessoa a quem este subarrendou a loja do rés-do-chão do nº 65 da [Endereço (1)], que não abrem ao público a loja ali existente.
  29.º
  O Sr. AG retirou alguns dos seus haveres da loja do rés-do-chão do nº 65 da [Endereço (1)].
  30.º
  O Sr. AG, não devolveu ou entregou o referido rés-do-chão do n.º 65 à requerente.
  32.º
  O Sr. AG fechou a porta da loja e colocou-lhe um cadeado exterior, não entregando à requerente qualquer cópia de ambas as chaves para, desta forma, impedir o seu acesso.
  33.º
  A par do mero acesso ao rés-do-chão do n.º 65, ficou também a requerente impedida de obter quaisquer rendimentos ou frutos civis do mesmo bem, designadamente através do seu arrendamento.
  34.º
  Perante tal situação, visando agir em defesa do n.º 65, por si reputado como sua legítima propriedade, e agindo com o animus de defesa da respectiva posse, a requerente colocou em 27 de Setembro de 2013 um outro cadeado na porta do n.º 65.
  35.º
  Em simultâneo, a requerente colocou também do lado interior da grade da porta do n.º 65 um papel com o seu contacto e a respectiva data e atou ainda ao cadeado da porta um aviso escrito em língua chinesa com o seguinte teor: “Propriedade privada. Proibido o acesso. Os infractores serão responsabilizados” .
  36.º
  Em 28 de Setembro de 2013, pelas 17:42, o 5.º requerido, Sr. AE, dirigiu-se ao n.º 65 e, aí chegado, riscou o aviso escrito pela requerente.
  37.º
  Posteriormente, em 19 de Outubro de 2013, pelas 16:00, o 5.º requerido e um terceiro homem não identificado, que a requerente crê ser o dono ou um funcionário de uma loja de artigos electrónicos da [Endereço (1)] - dirigiram-se ao n.º 65.
  38.º
  Aí chegados, o 5.º requerido, Sr. AE, cortou o cadeado que em 27 de Setembro de 2013 a requerente havia colocado na porta do n.º 65.
  39.º
  Seguidamente, o 5.º requerido e o terceiro indivíduo não identificado colocaram dois cadeados com correntes na porta do n.º 65, impedindo e vedando o acesso ao n.º 65.
  40.º
  Em 4 de Novembro de 2013, pelas 20:02, o 4.º requerido, Sr. AD, e três indivíduos não identificados – seguidamente designados por indivíduos A, B e C - deslocaram-se ao n.º 65, tendo o 4.º requerido aberto com as chaves que trazia consigo os cadeados instalados na respectiva porta.
  41.º
  Seguidamente, tanto o 4.º requerido como os indivíduos B e C entraram para dentro do n.º 65, entrando posteriormente o indivíduo A, todos permanecendo no interior do n.º 65 por cerca de 10 minutos.
  42.º
  À saída, a porta foi fechada com os mesmos cadeados e correntes, permanecendo impedido e vedado o acesso ao n.º 65.
  43.º
  Em 5 de Novembro de 2013, pelas 19:04, o 5.º requerido, Sr. AE, parou a sua bicicleta em frente ao n.º 65 e dirigiu-se à respectiva porta a fim de a fechar completamente.
  44.º
  Em 6 de Novembro de 2013, pelas 16:11, os indivíduos A e B e ainda um terceiro indivíduo não identificado – que se designará doravante por indivíduo D - deslocaram-se ao n.º 65, tendo aberto com as chaves que traziam consigo os cadeados instalados na respectiva porta e entrado no espaço.
  45.º
  Tendo a requerente acedido ao interior do local, pediu a identificação dos três indivíduos – que traziam e empunhavam 2 lanternas - e perante a recusa destes em o fazer, solicitou a dois agentes da P.S.P. que passavam pela [Endereço (1)] que procedessem à identificação dos mesmos na esquadra.
  46.º
  Os mencionados agentes concordaram e solicitaram aos mesmos indivíduos que fossem ao 1.º Comissariado Policial da P.S.P., sito na Calçada do Gamboa, para aí serem identificados.
  47.º
  Aí chegados, os indivíduos A e D bem como o C - este entretanto aí chegado -, foram identificados pela P.S.P., identificações e contactos vertidos para um Relatório, datado de 6.11.2013, a que foi atribuído o n.º XXXX/2013/C1.
  48.º
  Em 7 de Novembro de 2013, pelas 17:46, os indivíduos A e D bem como duas outras pessoas não identificadas – que se designarão por indivíduo E e indivíduo F -, deslocaram-se ao n.º 65, tendo aberto com as chaves que traziam consigo os cadeados instalados na respectiva porta e entrado no espaço.
  49.º
  Estando lá dentro, os indivíduos A, D, E e F ligaram a luz e, recusando-se sempre a identificar-se, disseram à requerente, que estavam a proceder a “renovações” dentro do n.º 65.
  50.º
  Os mesmos os indivíduos A, D, E e F permaneceram dentro do n.º 65 até cerca das 18:19, momento em que saíram todos e fecharam a porta com os mesmos cadeados e correntes, permanecendo impedido e vedado o acesso ao n.º 65.
  51.º
  Em 12 de Novembro de 2013, pelas 15:00, a requerente constatou que duas pessoas não identificadas – que se designarão por indivíduo G e indivíduo H -, estavam dentro do n.º 65.
  52.º
  A requerente constatou que os indicados indivíduos G e H estavam a desenvolver trabalhos e obras de construção civil, designadamente picando e descamando as paredes e o chão, removendo o tecto falso, mexendo na estrutura das vigas de madeira do tecto, de tudo resultando grande volume de entulho, detritos, madeiras e lixo variado, tudo transportado por um camião, pelas 16:27.
  53.º
  Entretanto, chegaram e entraram também no n.º 65 o indivíduo A bem como uma outra pessoa não identificada – que se designará por indivíduo I.
  54.º
  Instados a responder a mando de quem estavam a desenvolver os referidos trabalhos e obras, recusaram-se a indicar quem fosse tal mandante.
  55.º
  Relativamente a tais trabalhos e obras de construção civil dentro do n.º 65, a aqui requerente promoveu logo em 12 de Novembro de 2013, através dos seus advogados, o seu embargo extrajudicial tendo já requerido, entretanto, a respectiva ratificação judicial, tudo nos termos e ao abrigo do artigo 356.º e seguintes do C.P.C., tendo igualmente participado para os devidos efeitos tal situação junto do Instituto Cultural bem como da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes.
  56.º
  Em 13 de Novembro de 2013, desde cerca das 08:47 até cerca das 18:18, acederam e entraram no n.º 65 pelo menos 10 (dez) pessoas.
  57.º
  De tal grupo de pessoas, é possível identificar, pelas 16:56 e pelas 17:29, o 5.º requerido, o indivíduo A, o indivíduo D e o indivíduo E, sendo que quanto aos demais 7, todos não identificados, se designarão por indivíduos J, L, M, N, O, P e Q.
  58.º
  A actividade desenvolvida dentro do n.º 65 em 13 de Novembro de 2013 consistiu na continuação dos trabalhos e obras anteriormente aí iniciados, tendo sido possível à requerente aperceber-se que, entre o mais, as paredes interiores foram raspadas e descamadas e que a montra em vidro da entrada foi removida.
  59.º
  Em 14 de Novembro de 2013, também desde cerca das 08:48 até cerca das 18:10, entraram e permaneceram no n.º 65 os indivíduos J e L, sendo que pelas 10:30 um camião parou junto ao n.º 65 e descarregou sacas de cimento para o seu interior e, mais tarde, um outro camião transportou entulho, madeiras, vidro e detritos, tudo proveniente das obras feitas no interior do n.º 65.
  60.º
  Na data em que deu entrada a presente providência, as situações acima descritas relativamente ao n.º 65 da [Endereço (1)] – abertura, acesso, entrada e fecho da porta e grades com chaves, cadeados e correntes próprios, permanência no seu interior e realização de obras e trabalhos, feitas sem autorização e com a oposição tanto da requerente – perduram e continuam em ininterrupta execução.
  61.º
  Para a requerente, é a 1.ª requerida, Sociedade comercial AA, a mandante constante e permanente, nunca assumida, de todas as situações acima descritas em relação ao n.º 65 da [Endereço (1)].
  67.º
  Os 2.º, 3.º e 4.º requeridos são administradores da 1ª requerida.
  73.º
  Em 25 de Maio de 2012 o 4.º requerido, Sr. AD, bem como o indivíduo A e outro indivíduo não identificado deslocaram-se ao HOTEL e, apresentando-se como vindo da parte da 1.ª requerida, Sociedade comercial AA, exigiram num tom de voz exaltado e de uma forma agressiva ao staff do Hotel que a requerente entrasse em contacto com a aqui 1.ª requerida a propósito do direito ao espaço onde o mesmo Hotel está instalado.
  74.º
  Esse mesmo dia 25 de Maio de 2013 foi exactamente o dia em que o 4.º requerido, Sr. AD, adquiriu uma quota na 1.ª requerida, no valor de MOP$10.000,00, procedeu a um aumento de capital e subscreveu integralmente tal aumento, logo de imediato passando, assim, a agir em defesa dos interesses da mesma 1.ª requerida.
  75.º
  Foram também a 1.ª requerida, Sociedade comercial AA, e o 3.º requerido, Sr. AC, juntamente com AI, que intentaram em finais de 2012 contra a aqui requerente a acção de despejo n.º CV1-12-0197-CPE, arrogando-se na qualidade de locadores da ora requerente, desde Maio de 1999, do espaço onde está instalado o Hote, ou seja, dos prédios urbanos n.ºs 67 e 65 da [Endereço (1)] e 13, 15 e 17 do [Endereço (2)].
  76.º
  Contestou a ré, aqui requerente, que, face às certidões do registo predial juntas pelos próprios autores nessa acção, só a partir de 5 JUN 2012 o Sr. AC (administrador da Sociedade comercial AA que se dirigiu à esquadra em 6 NOV 2013) ficou inscrito no registo predial como titular de 1/120 dos prédios urbanos n.os 67 e 65 e que a 3.ª autora e aqui 1.ª requerida Sociedade comercial AA não está nem nunca esteve inscrita no registo predial como titular de qualquer um dos prédios urbanos n.os 67, 65, 13, 15 ou 17.
  77.º
  Tal acção de despejo n.º CV1-12-0197-CPE encontra-se presentemente suspensa por decisão de Setembro de 2013, ex vi do n.º 1 do art. 223.º do C.P.C., isto em virtude da questão prejudicial invocada pela aí ré e aqui requerente de só ser retomado o seu curso quando sobrevier a decisão final com trânsito em julgado a proferir nos autos onde se discute a aquisição por usucapião (n.º CV3-12-0087-CAO).
  78.º
  Em 4 de Novembro de 2013, o 4.º requerido, Sr. AD e o mesmo indivíduo A (bem como os indivíduos B e C) acederam ao interior do n.º 65.
  79.º
  Também em 6 de Novembro de 2013 - dia em que entrou no n.º 65 o indivíduo A (bem como os indivíduos B e D) e todos os 3 foram ao 1.º Comissariado Policial da P.S.P. - acorreram à dita esquadra, logo de imediato e de forma espontânea, o 3.º requerido, Sr. AC, o 4.º requerido, Sr. AD – ambos administradores da 1.ª requerida, Sociedade comercial AA – bem como ainda o Sr. AJ, sendo este um pretenso cobrador da mesma Sociedade comercial AA.
  83.º
  A requerente e os seus antepassados têm utilizado a loja do nº 65º da [Endereço (1)] ininterruptamente, com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de não lesarem direitos alheios desde há décadas.
  
  Factos provados na decisão de 12 de Março de 2014, após o cumprimento do contraditório:
  1. A acção de despejo que foi movida contra a Requerente por, entre outros, os ora Requeridos AC e AA — Sociedade Limitada foi intentada em 28 de Setembro e distribuída em 4 de Outubro de 2012, ao passo que a acção de usucapião sob o n.º CV3-12-0087-CAO foi intentada pela Requerente em 5 de Novembro de 2012.
  2. A Requerente, até ao ano 2007, sempre pagou uma quantia mensal à Associação AA, relativamente ao n.º 67 da [Endereço (1)].
  3. Em 2001, os corpos gerentes da Associação AA constituíram a sociedade comercial AA — Sociedade Limitada (a “AA”), ora Requerida.
  4. A AA pagou a Contribuição Predial do prédio n.º 65º da [Endereço (1)]relativamente aos anos de 2006, 2010, 2011 e 2012, respectivamente em 23/07/2007, 27/07/2011, 30/07/2012 e 25/06/2013.
  5. No dia 13 de Julho de 2007, a Requerente dirigiu a carta a fls. 1060 a 1062 dos autos (cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) aos representantes da “AA”, e em anexo à mesma carta, foram juntos os documentos a fls. 1621 a 1628 dos autos.
  6. Nessa carta, a Requerente intitula-se de “二房東” e solicita que a AA promova obras de recuperação nos n.os 13, 15 e 17 do [Endereço (2)], afectados por um incêndio em 15 de Julho de 2006.
  7. Em anexo a mesma carta, a própria Requerente junta uma comunicação da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, datada de 1 de Março de 2007, que reconhece à Requerente a qualidade de arrendatária dos n.os 13, 15 e 17 do [Endereço (2)].
  8. Em 2007, a Requerente deixou de pagar as quantias mensais que pagavam a “AA”.
  9. A Requerente efectuou o último pagamento em 27 de Abril de 2007.
  10. No decurso do ano de 2012, AG e “AA” acordaram a celebração dum contrato de arrendamento do aludido imóvel — cfr. contrato de arrendamento de 7 de Junho de 2012.
  11. Assim, desde 7 de Junho de 2012 que AG paga à AA as rendas devidas pela utilização do Imóvel dos Autos.
  12. Em 04 de Novembro de 2013, conforme solicitação de AG, foi celebrado um acordo para a revogação de tal arrendamento.
  13. AG entregou o imóvel n.º 65º da [Endereço (1)]à “AA”.
  14. Foi AG quem entregou à AA as chaves dos cadeados que aquele tinha colocado grade exterior da loja sita no n.º 65º [Endereço (1)].
  15. Pelo menos desde Junho de 2012 a Requerente não recebe qualquer renda referente ao imóvel n.º 65º da [Endereço (1)].
  16. Relativamente ao Facto Provado n.º 40º da Sentença de 12/12/2013, quando o Requerido AD entrou no Imóvel dos Autos, no dia 04 de Novembro de 2013, fê-lo munido das chaves que haviam sido entregues por AG.

III – O Direito
1. A questão a resolver
AF requereu a restituição provisória da posse do rés-do-chão do prédio com o n.º 65, da [Endereço (1)], em Macau, alegando ter a posse do direito de propriedade do prédio com os n. os 65, 65-A e 67 da [Endereço (1)] e com os n.os 13, 15 e 17 do [Endereço (2)].
Na oposição à decisão da providência os requeridos AA, AC e AD alegaram que a requerente não tinha qualquer direito sobre o imóvel, sendo mera arrendatária do 1.º andar do n.º 67 da [Endereço (1)].
No recurso interposto para o TSI, os recorrentes (os mencionados requeridos) pretenderam a reapreciação da prova gravada, com vista a demonstrarem que a requerente da providência não tinha a posse do direito de propriedade do prédio com os n. os 65, 65-A e 67 da [Endereço (1)] e com os n.os 13, 15 e 17 do [Endereço (2)].
O acórdão recorrido não apreciou a questão por ter entendido que há factos provados donde decorre que mesmo que a requerente fosse mera arrendatária adquiriu a posse por inversão do título da posse, por ter deixado de pagar a renda em 2007, relativamente ao n.º 67 da [Endereço (1)]. E, assim, com outro fundamento, decidiu que a requerente tinha a posse do imóvel.
No presente recurso, os recorrentes entendem que o facto de a requerente da providência ter deixado de pagar rendas não é suficiente para inverter o título da posse.
Há que ver, previamente, se a requerente alegou no requerimento do procedimento cautelar todos os factos integrantes do direito de que se arroga ser titular.
Seguidamente, se houve inversão do título da posse.

3. Usucapião. Posse pública e pacífica
A requerente pediu a restituição provisória da posse de parte de um imóvel.
No caso, alegou a posse da propriedade do domínio útil e não do direito de propriedade plena de dois imóveis registados (prédios com os n. os 65, 65-A e 67 da [Endereço (1)] e com os n.os 13, 15 e 17 do [Endereço (2)]). Embora na providência a requerente tenha dito ter pedido na acção principal a declaração de aquisição por usucapião do direito de propriedade e do domínio útil dos prédios em questão, isso não é exacto; pediu apenas a usucapião do domínio útil, como resulta da certidão junta.
Como requisito do direito da requerente, esta teria de ter alegado na providência os factos atinentes à usucapião do direito de propriedade do domínio útil do prédio em questão (n.º 65 da [Endereço (1)]), pois só desta titularidade decorreria a sua posse, pressuposto da respectiva restituição provisória.
A aquisição por usucapião do direito de propriedade do domínio útil supõe a alegação de factos que integrem a actuação de facto como um proprietário do prédio, com a convicção de o ser, durante determinado lapso de tempo, sendo a posse pública e pacífica.
Especificamente quanto aos requisitos da posse não violenta e pública, ensinam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA1, referindo-se ao Código português, semelhante ao de Macau, quanto aos requisitos da posse para aquisição do direito de propriedade com fundamento em usucapião, “Enquanto que a falta de registo, do título ou da boa fé apenas conduz ao agravamento dos prazos, a violência ou a tomada de posse ocultamente impede a usucapião. É o que decorre do disposto nos artigos 1222.º e 1225.º do Código Civil”.
Ora, percorre-se o requerimento da providência e não se detecta que a requerente tenha alegado factos que consubstanciem a posse pública e pacífica do direito de propriedade do domínio útil do prédio n.º 65 da [Endereço (1)]. Não a mera posse, mas a posse pública e pacífica. E, portanto, tais factos não se provaram.
É certo que a requerente alegou no artigo 83.º do requerimento:
“83. º
  O comportamento dos requeridos privou e espoliou a requerente totalmente, contra a sua vontade, do exercício e da fruição da posição de possuidora em relação ao n.º 65, que vinha exercendo ininterruptamente de forma pública, pacífica e de boa-fé desde há décadas, por si e já por acessão da posse dos seus antepassados, vedando-lhe não só o direito ao seu uso (ius utendi) como ao recebimento de frutos civis, v.g., mediante o seu arrendamento a um outro inquilino (ius fruendi)”.
  
Ora, a requerente limitou-se a alegar os conceitos de direito respeitantes à posse da loja, nem sequer do prédio que entendia ter adquirido. Mas não alegou factos. Posse pública e pacífica são conceitos de direito.
Por seu lado, na decisão sobre a providência o Ex.mo Juiz fez constar no elenco dos factos provados:
   “83.º
  A requerente e os seus antepassados têm utilizado a loja do nº 65º da [Endereço (1)] ininterruptamente, com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de não lesarem direitos alheios desde há décadas”.
  
  Esta proposição suscita três problemas.
  O primeiro, é o de que o Ex.mo Juiz não podia ter dado provados factos não alegados (artigo 5.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), sem ter dado cumprimento ao disposto no artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. Na verdade, transformou conceitos de direito (de forma pública, pacífica) em factos provados (com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém).
O segundo, é o de que os factos resultantes da transformação dos conceitos de direito referem-se à posse da loja do prédio com o n.º 65, o que não permitiriam nunca a aquisição do prédio com o n.º 65.
Mas, em bom rigor, o Ex.mo Juiz não deu sequer tal facto como provado. Na verdade, após produção da prova, o Ex.mo Juiz considerou provados alguns dos factos do requerimento, mas neles não consta o artigo 83.º (fls. 811 e 812). Considerou-o como não provado (“O demais articulado pela requerente na petição inicial não se provou…”).
Assim, tal facto, constando como provado na sentença, não o está efectivamente, já que, não estando provado por meio de prova plena (se o Ex.mo Juiz considerasse que o estava teria de indicar o meio de prova e não o fez) e não tendo sido julgado provado no julgamento da matéria de facto, não podia constar na sentença, no elenco dos factos provados.
Como afirmámos no Acórdão de 16 de Dezembro de 2014, no Processo n.º 120/2014, no procedimento cautelar não se exige uma prova completa do direito invocado, mas mera probabilidade séria da sua existência. Mas o que se exige certamente é a alegação dos factos de que decorre o direito. Sem esta alegação não é possível concluir se o direito existe.
Assim, para todos os efeitos, a requerente não alegou factos que integrem a posse do direito de propriedade do domínio útil do prédio n.º 65 da [Endereço (1)].
Logo, não tem fundamento para requerer a restituição provisória da posse de parte do imóvel em questão, estando a pretensão votada ao insucesso.

4. Inversão do título da posse
Ainda que assim não fosse.
A tese do acórdão recorrido, de que há factos provados donde decorre que, mesmo que a requerente fosse mera arrendatária, adquiriu a posse por inversão do título da posse, por ter deixado de pagar a renda em 2007, relativamente ao n.º 67 da [Endereço (1)], é totalmente inaceitável.
O mero acto do arrendatário, consistindo em deixar de pagar a renda ao senhorio – e nada mais se provou relevantemente – não significa que o mesmo inverteu o título da posse e deixou de se considerar arrendatário para passar a considerar-se dono do local arrendado.
É que a renda que o AG pagava à requerente refere-se à loja do n.º 65, sendo que a renda que a requerente pagava referia-se ao prédio com o n.º 67.
A arrendatária deixou de pagar rendas, mas não disse ao senhorio, nem a ninguém, que o fazia por considerar o prédio seu. Como explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA 2, “O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito”.
Não houve, pois, qualquer inversão do título da posse.
Também por este fundamento, haveria que revogar o acórdão recorrido.

III – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido, indeferindo-se a restituição provisória da posse do rés-do-chão do prédio com o n.º 65 da [Endereço (1)], em Macau.
Custas pela requerente nas duas instâncias de recurso.
Macau, 4 de Março de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


     1 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume III, 2.ª edição, p. 77.
     2 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código…, Volume III, p. 30.

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Processo n.º 2/2015

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Processo n.º 2/2015