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Processo n.º 10/2015. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: A e B.
Recorrida: C.
Assunto: Recurso. Interesse processual.
Data do Acórdão: 11 de Março de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
Se a sentença declara nulidade/anula negócio jurídico com fundamento em dois vícios do negócio, um sancionado com a nulidade e outro com a anulabilidade e o réu recorre apenas do vício que é sancionado com a nulidade, há interesse processual no recurso por a nulidade ter um regime mais radical.

O Relator,

Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
C intentou acção declarativa com processo ordinário contra A e B, pedindo a declaração de nulidade ou a anulação da alienação da sua quota (de 100%) na D aos dois réus, com fundamento em que a 1.ª ré, que actuou em nome da autora, era sua sócia e o 2.º réu irmão da 1.ª ré, em violação do disposto nos artigos 208.º e 202.º do Código Comercial. Alegou, ainda, simulação.
A acção não foi contestada, mas foi julgada improcedente por o Ex.mo Juiz ter entendido que os factos assentes não eram suficientes para atingir os objectos jurídicos pretendidos pela acção.
Em recurso interposto pela autora C, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 18 de Setembro de 2014, revogou a sentença, declarando a nulidade do negócio, com fundamento em simulação e em negócio do representante consigo mesmo, em violação do disposto no artigo 254.º, n.º 1, do Código Civil.
O acórdão recorrido, face à decisão do recurso, considerou prejudicadas as outras duas questões suscitadas pela recorrente, atinentes à incapacidade da autora para a prática do acto e ao abuso de direito, embora tenha acabando por fazer considerações sobre estes dois vícios do negócio, apontando para a sua procedência, considerações essas manifestamente exorbitantes.
Recorrem os réus A e B para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do acórdão recorrido, invocando apenas uma questão:
- Na petição inicial não se alegaram factos suficientes que integrassem o vício da simulação, pelo que não se provaram factos que pudessem conduzir à declaração da nulidade do negócio, com fundamento em simulação.

II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
a)
Na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº de Registo XXXXX XX está inscrita a constituição da sociedade “C” com o capital social de MOP$20.000.000,00 da qual a partir de 12.07.2006 são sócios E com uma quota de MOP$19.800.000,00 e A com uma quota de MOP$200.000,00, cabendo a administração da sociedade a E e a A, tendo esta cessado funções 14.06.2010 – cf. fls. 14 a 18 -;
b)
A autora é sócia única da companhia registada em Hong Kong com o nome de “D”;
c)
A Companhia “D” registou-se em Hong Kong sob o n.º XXXXXX com o capital registado no valor de HK$5.000.000,00, situa-se em Hong Kong, [Endereço (1)] e foi estabelecida em 1 de Setembro de 2004.
d)
Até a 19 de Maio de 2010, a autora é a única sócia da companhia referida no item anterior.
e)
A “D” é a única sócia da “F”, companhia esta registada em Shanghai, China.
f)
A F é proprietária de um piso de edifício situado no Distrito Pu Dong da Cidade Shanghai, China, o qual vale mais de RMB$100.000.000,00.
g)
Em 19.05.2010 a 1ª Ré A em representação da Autora transferiu 5% da participação que a Autora tinha na “D” para si própria.
h)
Em 19.05.2010 a 1ª Ré A em representação da Autora transferiu 95% da participação que a Autora tinha na “D” para o 2º Réu B.
i)
Como contrapartida das transferências referidas nas alíneas anteriores a 1ª Ré em 15 de Junho de 2010 transferiu em duas tranches o valor total de HKD$5.000.000,00 para a conta bancária da autora com o n.º XXX-XXXXXX-XXX aberta na Filial de Macau do [Banco (1)].
j)
A Autora informou a 1ª Ré A por intermédio de G empregado da F de que aquela tinha cessado as funções de Directora da Autora em 14.06.2010.
l)
Em 18.06.2010 a 1ª Ré A transferiu para a sua conta pessoal todo o dinheiro existente na conta bancária da autora aberta na Filial de Macau do [Banco (1)] no valor de MOP$5.100.000,00, onde se inclui os HKD$5.000.000,00 referidos em i).

III – O Direito
1. Delimitação do objecto do recurso
Embora a causa de pedir da petição assentasse apenas em violação do disposto nos artigos 208.º e 202.º do Código Comercial e em simulação do negócio, no recurso para o TSI, a autora, com novo advogado, veio invocar, ainda, como fundamentos do recurso e como vícios do negócio, além da simulação, negócio do representante consigo mesmo, em violação do disposto no artigo 254.º, n.º 1, do Código Civil, incapacidade da sociedade para a prática do acto e abuso de direito.
O acórdão recorrido concluiu que existiu negócio do representante consigo mesmo, em violação do disposto no artigo 254.º, n.º 1, do Código Civil, conducente à anulação do negócio. Decidiu, igualmente, verificado o vício da simulação, declarando a nulidade do negócio e considerou prejudicado o conhecimento dos vícios relativos incapacidade da sociedade para a prática do acto e abuso de direito, embora, como se disse, não se tenha abstido de produzir considerações sobre os mesmos.
Os recorrentes apenas impugnam a conclusão de que o negócio estava eivado de simulação, não dedicando uma única palavra à parte da decisão que considerou ter havido negócio do representante consigo mesmo, em violação do disposto no artigo 254.º, n.º 1, do Código Civil.
Decorre do exposto que se apreciará apenas a questão da simulação.
E, não obstante a não impugnação da decisão sobre o vício do negócio do representante consigo mesmo, conhecer-se-á da questão suscitada apenas porque a sanção do vício correspondente à simulação (nulidade) é mais radical que o correspondente ao negócio do representante consigo mesmo, sancionado com a anulabilidade, matéria não impugnada e sobre que já se formou caso julgado material, no sentido da anulação do negócio. A não ser assim, haveria falta de interesse processual.

2. Simulação
Dispõe o artigo 232.º do Código Civil:
“Artigo 232.º
(Simulação)
1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2. O negócio simulado é nulo”.

A simulação supõe, assim, a alegação e prova de factos que integrem:
- Existência de uma declaração negocial;
- Um acordo entre declarante e declaratário, com intuito de enganar terceiros;
- Existência de divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante.
Prova-se a existência de uma declaração negocial, que consiste no negócio pelo qual, em 19.05.2010, a 1ª Ré A, em representação da Autora, transferiu 5% da participação que a Autora tinha na “D” para si própria e 95% da participação que a Autora tinha na “D”, para o 2º Réu B [Factos provados g) e h)] .
Mas não se prova que tenha havido qualquer divergência entre a declaração negocial e a vontade real dos declarantes, os 1.º e 2.º réus, a primeira em representação da autora e também como cessionária dos 5% de participação na D.
Na verdade, nada nos factos provados aponta para que as transacções da totalidade do capital da D não tenham sido queridas pelos intervenientes no negócio.
É certo que, mais tarde, a 1.ª ré se locupletou com o dinheiro proveniente das transacções e que pertencia à autora. Mas daqui não decorre que o negócio da venda das participações não tenha sido real e querido pelos intervenientes. Antes pelo contrário.
Nem se diga, como faz o acórdão recorrido, que não houve pagamento algum. Houve. Foi transferido para a conta bancária da autora. E só depois a 1.ª ré se locupletou com tal quantia.
Também a circunstância de o preço do negócio ser inferior ao real nada releva quanto à existência de simulação. O que pode é ter havido intenção de beneficiar os cessionários das participações, mas nada dista configura simulação. Antes pelo contrário, foi um negócio bem querido pelos cessionários que, aparentemente, isto é a ser exacto que o valor da cessão é muito inferior ao valor real, os beneficiou largamente. E também pela representante da cedente, que era, ao mesmo tempo, um dos cessionários.
Em conclusão, procede na totalidade o recurso, por não se provarem factos que consubstanciem simulação de negócio.
Subsiste a anulação do negócio, decidida pelo acórdão recorrido, com fundamento em negócio do representante consigo mesmo, dado que os recorrentes não a impugnaram.

IV – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido na parte em questão.
Custas pela recorrida neste TUI, suportando cada uma das partes metade das custas no TSI.
Macau, 11 de Março de 2015.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


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