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Processo n.º 125/2014. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: A e B.
Recorridos: A, B e C.
Assunto: Junção de documentos. Valor extraprocessual das provas. Artigos 468.º e 446.º do Código de Processo Civil. Factos instrumentais. Base instrutória.
Data do Acórdão: 18 de Março de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai. Ampliação.
SUMÁRIO
I - O juízo do juiz quanto à necessidade da junção de documentos no decurso do processo, nos termos do artigo 468.º do Código de Processo Civil, deve ser perfunctório até porque, muitas vezes, o tribunal não está, ainda, na posse de todos os elementos que lhe permitam dizer categoricamente se os documentos são ou não necessários.
II – Para efeitos do disposto no artigo 446.º do Código de Processo Civil, não se exige identidade das partes dos dois processos. Não importa que, no novo processo, a prova (por depoimentos ou perícias) seja utilizada por pessoa diferente daquela que a fez produzir ou que a aproveitou no processo em que ela se encontra O artigo não se opõe a isso; só exige que a prova seja invocada contra pessoa que foi parte no processo respectivo e que tenha aí sido produzido com audiência contraditória.
III – Os poderes do Tribunal de Segunda Instância, previstos no artigo 629.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, podem ser utilizados oficiosamente.
IV - O critério para a inclusão de factos instrumentais na base instrutória é sobretudo de conveniência prática.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
B, doravante designado como autor, intentou acção declarativa contra A e C, doravante designados, respectivamente por 1.ª ré e 2.º réu, pedindo que se:
  A) Julgue nula e de nenhum efeito as compras e vendas celebradas entre os RR., que tiveram por objecto as fracções autónomas “C1”, “AC/V”, “BC/V”, “CC/V”, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. 22 do Livro XXXX e as fracções autónomas “A18” e “B18”, do prédio descrito na mencionada Conservatória sob o nº XXXXX, a fls. 23 do Livro XXXX, tituladas pela escritura pública exarada em 10 de Dezembro de 2004 a fls. 4 do livro de notas para escrituras diversas nº XX-X do Cartório da Notária Privada D, mandando-se cancelar na Conservatória do Registo Predial de Macau o registo de aquisição a favor do 2º R., fundado nas mencionadas e simuladas compras e vendas, no que concerne somente às fracções autónomas acima identificadas, registo que foi efectuado mediante a inscrição nº XXXXX do Livro X;
  B) Declare que a 1ª R., por facto voluntário seu que lhe é exclusivamente imputável, não cumpriu as obrigações que havia assumido para com o A., através dos contratos-promessa que celebrou com este e a que se reportam os documentos 9 a 12 e 16 a 24 juntos à p.i.;
  C) Profira sentença constitutiva que produza os efeitos da declaração negocial da 1ª R. em falta, declarando-se vendidas ao A. e transmitindo-se para a sua titularidade as fracções autónomas denominadas por “C1”, “AC/V”, “BC/V”, “CC/V”, “A18” e “B18” todas acima melhor identificadas na alínea A) do pedido, pelos preços já pagos respectivamente de HKD$709.645,00; HKD$788.160,00; HKD$484.720,00; HKD$733.949,70 HKD$829.500,00 e HKD$804.300,00;
  D) Declare a resolução dos contratos-promessa celebrados entre a 1ª Ré e o A. relativamente às fracções autónomas designadas por “A17”, “B16”, “B17”, “C17”, “D17”, “C18” e “D18”, todas do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX (fracções essas que o 2º R. transmitiu a terceiros), por incumprimento definitivo e culposo da 1ª R. e, consequentemente, condenar-se esta a pagar ao A. a quantia global de HKD$11.761.000,00, equivalente para efeitos fiscais a MOP$12.102.069,00, acrescida de juros à taxa legal, desde a data do seu incumprimento, isto é, 10 de Dezembro de 2004, até efectivo e integral pagamento, quantia que corresponde ao dobro do sinal pago ou considerado entregue pelo A.;
  Subsidiariamente, para o caso de os pedidos constantes das alíneas A), B) e C) não procederem, nomeadamente por não se lograr fazer prova da simulação e, consequente, nulidade das compras e vendas das fracções identificadas na alínea A), pediu:
  E) A declaração de resolução de todos os contratos-promessa que tiveram por objecto as seguintes treze fracções autónomas: “C1”, “AC/V”, “BC/V”, “CC/V”, “A17”, “A18”, “B16”, “B17”, “B18”, “C17”, “C18”, “D17”, e “D18”, celebrados entre a 1ª R. e A., por incumprimento definitivo e culposo daquela e, consequentemente, a condenação da 1ª R. no pagamento ao A., a título de indemnização correspondente ao dobro do sinal, a quantia global de HKD$20.461.549,40 (vinte milhões quatrocentos e sessenta e um mil quinhentos e quarenta e nove dólares de Hong Kong e quarenta avos), equivalente para efeitos fiscais a MOP$21.054.934,33 (vinte e um milhões cinquenta e quatro mil novecentas e trinta e quatro patacas e trinta e três avos), acrescida de juros à taxa legal, desde a data do incumprimento, isto é, 10 de Dezembro de 2004;
  Ainda subsidiariamente, para o caso de se entender que os contratos-promessa celebrados entre a 1ª R. e o A. não revestem essa natureza e que, portanto, o incumprimento definitivo e culposo daquela, das obrigações que havia assumido perante o A. não pode ter como consequência a obrigação de indemnização pelo dobro do sinal, pediu:
  F) A condenação da 1ª R. no pagamento ao A. de uma indemnização no valor de HKD$10.230.774,70 (dez milhões duzentos e trinta mil setecentos e setenta e quatro dólares de Hong Kong e setenta avos), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data de celebração dos contratos-promessa, até efectivo e integral pagamento, indemnização essa que corresponde ao valor dos adiantamentos feitos pelo A. à E e que deveriam ter sido efectuados pela 1ª R., deduzida das quantias relativas às três fracções autónomas cujos direitos aquele cedeu a terceiros com a anuência da 1ª R.,
No decurso do processo o autor requereu a junção de vários documentos, entre eles, os designados por A e 1 e 2, o que foi indeferido.
O autor recorreu desta decisão, doravante designado recurso interlocutório.
A final, a sentença julgou totalmente improcedente a acção.
Recorreu o autor da sentença.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 12 de Junho de 2014, julgou procedente o recurso interlocutório e ordenou a junção aos autos dos mencionados documentos e, quanto ao recurso da sentença, determinou a ampliação da matéria de facto (artigos 90.º a 93.º da petição inicial) e reavaliação da prova, anulando, consequentemente, a sentença, ficando prejudicado o recurso desta.
Recorrem agora para este Tribunal de Última Instância (TUI) a 1.ª ré, A, tanto quanto à decisão que ordenou a junção aos autos dos mencionados documentos, como também quanto à que determinou a ampliação da matéria de facto e o autor, subordinadamente, quanto à decisão de ampliação da matéria de facto.
A 1.ª ré, A, suscitou as seguintes questões e/ou argumentos:
- Os documentos não têm interesse para a decisão da causa, porque as partes do processo a que os mesmos se referem não são as mesmas da presente acção;
- A junção de tais documentos não é possível nos termos do artigo 446.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;
- Os artigos 90.º a 93.º da petição inicial não são essenciais para a decisão da causa;
- A ampliação da matéria de facto não é possível, por não ter sido requerida, sendo nulo o acórdão nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 571.º do Código de Processo Civil.
O autor suscitou as seguintes questões e/ou argumentos:
- Antes de proceder à ampliação da matéria de facto, o acórdão recorrido deveria ter-se pronunciado sobre o recurso da matéria de facto;
- Os artigos 90.º a 93.º da petição inicial são meramente instrumentais dos quesitos 1.º a 12.º da base instrutória e, portanto, não essenciais para a decisão da causa.

II - Os Factos
O acórdão do TSI considerou provado o seguinte:
Do recurso interlocutório
- A fls. 1059 (11/02/2009) o autor B requereu a junção do documento A (relatório apresentado nos autos de acção ordinária nº 79/95, a que se refere a alínea N) da matéria assente).
- A fls. 1171 (23/02/2009) voltou o mesmo autor a requerer a admissão aos autos dos documentos nºs 1 e 2 (nº1: reclamação contra a resposta dos senhores peritos ao exame pericial às contas das sociedades A, F e E; nº2: relatórios com as respostas dos peritos aos esclarecimentos solicitados pelas partes).
- A fls. 1202 vº. foi proferido o seguinte despacho:
«Requerimento do autor (de 11/2/2009, fls. 1059 e ss): Uma vez que os documentos A) e B) se traduzem em resultados duma diligência probatória e da apreciação de provas referentes a um outro processo cujas partes não são as mesmas nos dois processos, pelo que relevância não têm com os presentes autos, não admito a sua junção e condeno o mesmo no pagamento da multa de 1,5 UC, ao abrigo do art. 468º edo Código de Processo Civil».
- Na mesma data, noutro segmento do mesmo despacho, o Sr. Juiz indeferiu o requerimento sobre a junção dos documentos 1 e 2 nos seguintes termos:
«Documento apresentado pelo Autor com o requerimento de 23/2/2009 (fls. 1177 e seguintes); Tal como acima referido, por se tratar de documentos relacionados com um outro processo cujas partes não são as mesmas, o resultado das provas produzidas nesse outro processo não tem qualquer utilidade para os presentes, pelo que com fundamento na falta de relevância, não admito a sua junção, e ordeno que sejam os mesmos restituídos ao Autor, condenando o mesmo no pagamento da multa de 1,5 UC, ao abrigo do art. 468º do Código de Processo Civil de Macau».
*
Do recurso da sentença
A sentença deu por provada a seguinte matéria de facto:
«A 1ª R. é uma sociedade anónima de responsabilidade limitada que tem por objecto o fomento predial. (A)
Por escritura pública de 16 de Dezembro de 1980, o Governo Macau concedeu por arrendamento à 1ª R., um terreno situado junto à [Endereço (1)], Ilha da Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX, a fls. 116 do Livro X-XX, encontrando-se o direito ao arrendamento inscrito a favor da dita R. sob o n.º XXXXX do Livro XXXX. (B)
O terreno destinava-se a desenvolver um empreendimento denominado “Jardins de X”, dividido por Fases I, II, III, IV e V, em que a Fase I é composta por 4 Blocos (designados A1, A2, A3 e A4), e as Fases II, III, IV e V são compostas por 3 Torres (designadas B1, B2 e B3), um conjunto de 10 vivendas (designadas M1), um conjunto de 14 moradias geminadas (designadas M2), um conjunto de 12 moradias em banda (designadas M3) e ainda um clube, um hotel e uma escola. (C)
O A. é sócio e gerente da sociedade comercial denominada por “F Companhia de Investimento e Desenvolvimento, Limitada”, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXXX (XX), com o capital social de MOP$40.000.000,00, onde detém uma quota no valor nominal de MOP$12.000.000,00, ou seja, 30% do capital social. (D)
O A. é sócio maioritário e dominante. (detém 90% do capital social), e também gerente da sociedade comercial denominada por “Empresa de Construção e Fomento Predial E, Limited”, registada na Conservaria dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXXX (XX), com o capital social de MOP$500.000,00, onde detém uma quota no valor nominal de MOP$450.000,00. (E)
Em 1 de Novembro de 1989, a 1ª R. e a “F Companhia de Investimento e Desenvolvimento, Limitada” assinaram um contrato, que se junta como doc. n.º 4 da petição inicial e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, pelo qual acordaram em associar-se com vista ao desenvolvimento das fases II, III, IV e V do mencionado complexo que ficou designado por “Jardins de X”. (F)
Por contrato celebrado em 1 de Julho de 1991 entre a sociedade comercial denominada “G Industries Limited” e a F, que se junta como. doc. n.º 6 da petição inicial e cujo teor se dá aqui por reproduzido, a G cedeu à F os seus direitos de construção, administração e venda dos quatro blocos que compunham a Fase I do complexo imobiliário denominado “Jardins de X” e que lhe tinha sido concedidos pela 1ª R. (G)
Os blocos A1 e A2, bem como algumas das infra-estruturas inerentes, foram construídos pela G, ao abrigo do contrato que esta havia celebrado com a 1ª R. (H)
Do complexo estavam concluídos, em 1995, os blocos A1, A2 e A3, as torres B1, B2 e B3, dez vivendas (M1), a escola e as infra-estruturas inerentes. (H1)
Para realizar a construção do restante da urbanização a F contratou uma sociedade comercial denominada “Empresa de Construção e Fomento Predial E Limitada”, sociedade essa que se encontra registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 69 do Livro XX, conforme se comprova pelo doc. n.º 8 da petição inicial. (I)
O A. e a 1ª R. celebraram em 22 de Fevereiro de 1995, dezasseis acordos, nos termos dos quais, a 1ª R. declarou prometer vender ao A. que, por sua vez, declarou prometer comprar livre de quaisquer ónus ou encargos e devolutas as seguintes fracções autónomas:
- Fracções autónomas designadas por “C1”, “AC/V”, “BC/V” e “CC/V”, todas do prédio si to na [Endereço (2)] com os nºs 70 a 94 e na [Endereço (1)], n.º 134, na Ilha da Taipa, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n. º XXXXX, a fls. 22 do Livro X-XXX, denominado por Bloco A3, identificado como Edifício “XX Toi”, do complexo habitacional “Jardins de X”;
- Fracções autónomas designadas por “A15”, “B15”, “A16”, “B16”, “A17”, “B17”, “C17”, “D17”, “A18”, “B18”, “C18” e “D18”, todas do prédio sito na [Endereço (2)] com os nºs 130 a 160-E, na Ilha da Taipa, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX, a fls. 23 do Livro X-XXX, denominado por Torre B3, identificado como Edifício “XX Toi”, do complexo habitacional “Jardins de X”. (J)
Pelos preços respectivamente de:
- fracção autónoma designada por “C1”: HKD$709.645,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 9;
- fracção autónoma designada por “AC/V”: HKD$788.160,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 10;
- fracção autónoma designada por “BC/V”: HKD$484.720,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 11;
- fracção autónoma designada por “CC/V”: HKD$733.949,70, conforme se comprova pelo doc. n.º 12;
- fracção autónoma designada por “A15”: HKD$799.500,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 13;
- fracção autónoma designada por “B15”: HKD$774.300,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 14;
- fracção autónoma designada por “A16”: HKD$809.500;00, conforme se comprova pelo doc. n.º 15;
- fracção autónoma designada por “B16”: HKD$784.300,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 16;
- fracção autónoma designada por “A17”: HKD$819.500,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 17;
- fracção autónoma designada por “B17”: HKD$794.300,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 18;
- fracção autónoma designada por “C17”: HKD$853.000,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 19;
- fracção autónoma designada por “D17”: HKD$878.200;00, conforme se comprova pelo doc. n.º 20;
- fracção autónoma designada por “A18”: HKD$829.500,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 21;
- fracção autónoma designada por “B18”: HKD$804.300,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 22;
- fracção autónoma designada por “C18”: HKD$863.000,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 23; e
- fracção autónoma designada por “D18”: HKD$888.200,00, conforme se comprova pelo doc. n.º 24. , (K)
Os imóveis supra identificados encontravam-se, sem excepção, à data da celebração dos respectivos contratos promessa, inscritos na Conservatória do Registo Predial a favor da 1ª R., sob a inscrição na XXXXX, tendo sido nessa qualidade de proprietária e titular registada das fracções autónomas que a A celebrou os aludidos contratos-promessa. (K1)
O A. celebrou com H e a sua mulher I, J e sua mulher K e L três contratos pelos quais cedeu a essas pessoas todos os direitos resultantes dos acordos celebrados com a 1ª R. e que tiveram por objecto respectivamente as fracções autónomas “A15”, “B15” e “A16” do Bloco III supra identificadas. (L).
Em 10 de Dezembro de 2004, a 1ª R. celebrou com C, ora 2º R., uma escritura pública de compra e venda, lavrada a fls. 4 do Livro XX-X do Cartório da Notária Privada D, através da qual declarou vender a este que, por seu turno, declarou comprar pelo preço global já pago de MOP$8.441.020,00 as fracções autónomas designadas por “C1”, “AC/V”, “BC/V” , “CC/V”, “B16”, “A17”, “B17”, “C17”, “D17”, “A18”, “B18”, “C18” e “D18”, todas supra melhor identificadas . (M)
O 2º R. procedeu ao registo dessa aquisição no próprio dia da outorga da escritura pública mencionada em M) dos factos assentes, conforme apresentação nº 227 de 10 de Dezembro de 2004. (M1)
Foi incidida sobre as supra 13 fracções uma providência cautelar, a qual foi declarada sem efeito, cessando as proibições que a mesma impunha, por despacho proferido no âmbito do processo 79/95/A, do então 4º Juízo em 17 de Novembro de 2004, notificado às partes no dia 18 do mesmo mês, e que, portanto, transitou em julgado no dia 6 de Dezembro de 2004. (N)
Provado o que consta das alíneas J) e K) da matéria de facto assente (1º)
A 1ª R., no dia posterior ao trânsito em julgado da referida decisão que fez cessar as medidas decretadas na providência cautelar mencionada na alínea N) da matéria de facto assente, estava já reunir em conselho de administração, deliberando a venda destas treze fracções autónomas e designando um seu representante na celebração da escritura pública, precisamente o comprador das mesmas: o 2º R. (22 º)
A 1ª R., representada pelo 2º R., declarou vender todos estes imóveis por um valor que é exactamente igual ao seu valor matricial. (23º)
Para desenvolver o supra mencionado empreendimento imobiliário de “Jardins de X”, durante os anos 1991 a 1993, a 1ª R. obteve facilidades bancárias no montante global de HKD$49.500.000,00 junto do [Banco (1)]. (24º)
No ano de 1995, as facilidades bancárias mencionadas no quesito anterior não foram liquidadas. (25º)
Até à presente data, o A. nunca pagou quaisquer quantias relativas ao preço dos contratos-promessa de compra e venda das fracções autónomas em causa. (29º)
A presente acção judicial e o seu registo na conservatória do Registo Predial sob a inscrição n.º XXXXX do livro F impediu o 2º R. a alienar, livre de ónus e de encargos, os direitos resultantes da concessão por arrendamento das referidas fracções autónomas “C1”, “CC/V” “AC/V” “BC/V” “A18” e “B18” a favor de terceiros. (30º).»
  
III – O Direito
1. As questões a resolver
As questões a apreciar são as mencionadas atrás, suscitadas pelas partes.

2. O indeferimento da junção de documentos
Comecemos por conhecer do recurso da 1.ª ré, recurso independente, já que o recurso do autor é subordinado (artigo 587.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Em primeiro lugar, pela parte em que impugna a decisão que ordenou a junção aos autos dos mencionados documentos A e 1 e 2.
A fls. 1059, já muito perto da realização da audiência de discussão e julgamento, veio o autor requerer a junção do documento que designou por A, além de outros, dizendo fazê-lo para prova dos quesitos 1.º a 10.º, 12.º, 13.º, 15.º e 16.º e para contraprova dos quesitos 26.º, 27.º e 29.º, todos da base instrutória.
Na ocasião, alegou o seguinte:
Doc. A: relatório apresentado nos Autos de Acção Ordinária n.º 79/95 (a que a alínea N) dos factos assentes faz menção) por um dos peritos nomeados pelo Tribunal na referida acção para proceder ao exame da escrituração comercial das partes então envolvidas em litígio (a ora 1ª Ré A e a F) relativa ao empreendimento imobiliário "Jardins de X", no qual o perito em questão concluiu que os 13 contratos-promessa em apreço nos autos "foram celebrados directamente entre a A e o Sr. B, sócio maioritário e gerente da E, como forma de compensar esta sociedade por custos de construção nesse montante ( ... ) motivo porque a A declarou expressamente nos mesmos contratos que o preço aí fixado estava integralmente pago" (realçado nosso, protestando-se juntar certidão do original).
Alguns dias depois, a fls. 1171, juntou o autor o que designou por documentos 1 e 2.
Estes dois últimos referem-se, igualmente, a peças da Acção Ordinária n.º 79/95, mais concretamente, reclamações contra as respostas dos peritos, deduzida pela autora dessa acção F e ulterior esclarecimento dos mesmos peritos.
Nessa acção ordinária n.º 79/95, proposta por F contra a 1.ª ré da presente acção, A, esteve em causa o apuramento do quantitativo das receitas e despesas que resultaram de um negócio entre as partes dessa acção, relativo ao desenvolvimento do empreendimento imobiliário Jardins de X.
Na presente acção o autor, sócio da F, veio deduzir vários pedidos contra a A, fundamentando-se em dívidas desta ré para com ele no desenvolvimento do empreendimento imobiliário Jardins de X.
Há, pois, manifestas ligações económicas e factuais entre as duas acções judiciais, embora as partes não sejam exactamente as mesmas, com excepção da A, que é ré nas duas acções.
O Ex.mo Juiz indeferiu a junção dos documentos com o argumento de que respeitavam a outra acção, em que as partes não eram as mesmas.
Como mostrou o acórdão recorrido, nada impede a junção num processo judicial de peças de outro processo judicial, sejam quais forem as partes dos processos envolvidos.
O fundamento foi, pois, errado e pouco prudente. Na verdade a junção de documentos, em princípio, não prejudica o andamento do processo. No momento próprio, o tribunal valorá-los-á como entender. Já o indeferimento da sua junção pode conduzir à anulação de julgamento da matéria de facto e sentença e fazer perder anos às partes e ao tribunal.
Desde que o julgamento de facto de uma acção não se impõe como caso julgado noutra acção, ainda que as partes sejam as mesmas, releva muito pouco quanto à pertinência e necessidade da junção de um documento num processo (artigo 468.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), que as partes sejam as mesmas ou não.
É que, quando, como é o caso, a valoração dos documentos pelo juiz se encontra submetida ao princípio da livre apreciação da prova, a circunstância da coincidência menor ou maior entre as partes de duas acções judiciais não releva. O que releva é que os documentos possam ter interesse, para, isoladamente ou em conjunto com outros meios de prova, provarem factos que se discutam na acção a que a junção respeita.
Ora, o juízo quanto à necessidade dos documentos – que não foi feito, aliás, pelo Ex.mo Juiz – deve ser perfunctório até porque, muitas vezes, aquando da junção, o tribunal não está, ainda, na posse de todos os elementos que lhe permitam dizer categoricamente se os documentos são ou não necessários.
No caso dos autos, dada a relação entre os factos das duas acções, peritagens feitas numa das acções podem ajudar o juiz a julgar os factos do processo em que se pretende a junção dos documentos.
Por outro lado, o artigo 446.º do Código de Processo Civil1 não obsta à invocação da perícia da acção ordinária n.º 79/95. A norma não exige identidade das partes. “Não importa que, no novo processo, a prova seja utilizada por pessoa diferente daquela que a fez produzir ou que a aproveitou no processo em que ela se encontra O artigo não se opõe a isso; só exige que a prova seja invocada contra pessoa que foi parte no processo respectivo e que tenha aí sido produzido com audiência contraditória” 2. Ora, a 1.ª ré – contra quem a invocação respeita – foi parte naquela acção ordinária n.º 79/95 e a perícia foi produzida num processo com a sua audiência contraditória. É completamente irrelevante que o ora autor não tenha sido parte naquela acção, sendo que, em qualquer caso, não cabe à 1.ª ré defender a audiência contraditória do autor, visto que este dela prescinde, como mostra o facto de pretender a junção dos documentos. Quanto ao facto de o ora 2.º réu não ter sido parte naquela acção, também não releva, visto que os factos que os documentos visam provar só respeitam à 1.ª ré. O 2.º réu é completamente estranho a essa matéria, das relações entre o autor e a 1.ª ré.
A junção determinada pelo acórdão recorrido não merece censura, visto que o erro influiu no exame ou na decisão da causa (artigo 628.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

3. Ampliação da matéria de facto.
Tanto o autor como a 1.ª ré impugnam o acórdão recorrido na parte em que determinou a ampliação da matéria de facto, com fundamento em que os factos em causa não eram essenciais para a decisão da causa por serem meramente instrumentais.
O acórdão recorrido determinou a ampliação da matéria de facto, por forma a ser feito o julgamento dos factos constantes dos artigos 90.º a 93.º da petição inicial.
Afasta-se já uma das teses da 1.ª ré para obstar à ampliação, de que o TSI não o poderia fazer sem ter sido requerida.
Basta ler o n.º 4 do artigo 629.º para se ver que a tese da 1.ª ré é errada: “… pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta …”.3
Prossigamos.
Também, a maior parte da fundamentação da 1.ª ré quanto à questão em apreço é totalmente irrelevante, visto que pretende que este Tribunal conheça de matéria de facto, o que não pode, como se sabe.
Por outro lado, do recurso subordinado do autor resulta que este não pretende a ampliação da matéria de facto, com o argumento que o TSI poderia conhecer do seu recurso sobre a matéria de facto aos quesitos 1.º a 12.º da base instrutória, que o Tribunal Colectivo considerou não provados, visto que os factos dos artigos 90.º a 93.º da petição inicial são meramente instrumentais dos anteriores.
Só que o autor labora num erro. Desde que o acórdão recorrido revogou os despachos que indeferiram a junção de documentos destinados a provar aqueles quesitos e ordenou a mencionada junção, esta decisão implica a anulação do julgamento da matéria de facto. É ao Tribunal Colectivo que cabe avaliar o valor probatório dos documentos, conjuntamente com os demais meios de prova e julgar novamente a matéria de facto. O Tribunal de Recurso não tem tais poderes, mesmo se foi impugnada a matéria de facto. Cabe-lhe conhecer da impugnação do julgamento de facto e não julgar tal matéria, cujo poder de cognição cabe ao Tribunal de 1.ª Instância.

4. Ampliação da matéria de facto. Factos instrumentais.
A única questão jurídica é apenas esta: os factos em causa eram ou não essenciais para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (artigo 430.º do Código de Processo Civil)?
O conteúdo daqueles artigos é o seguinte:
90.º
  O preço devido pelas referidas cessões4 foi integralmente pago ao Autor pelos cessionários, com o conhecimento e anuência da Primeira Ré,
91.º
  que nada recebeu pelo preço das cessões ou sequer reclamou o pagamento de qualquer quantia uma vez que, conforme constava do contrato, se considerava integralmente paga pelo preço da venda de todos estes imóveis, reconhecendo que todos os direitos sobre os mesmos pertenciam por exclusivo ao Autor.
92.º
  A atestá-lo está também o facto de em 20 de Julho de 2001 a Primeira Ré ter, em cumprimento dos contratos de cessão acima referidos, celebrado com os promitentes compradores cessionários as respectivas escrituras públicas que formalizaram de modo definitivo e registral as respectivas transmissões de titularidade das fracções autónomas "A15", "B15" e "A16",
93.º
  declarando nas aludidas escrituras como preço da venda precisamente o mesmo que consta dos contratos-promessa celebrados entre a Primeira Ré e o Autor, preço que a A obviamente não recebeu uma vez que considerava nada lhe ser devido pela transmissão destas fracções, cujos direitos havia transferido para a posse e exclusiva titularidade do Autor, em cumprimento da obrigação a que se vem fazendo alusão.

Antes de mais, parte da matéria dos artigos 92.º e 93.º está fora do julgamento do tribunal, por mencionar matéria que só pode ser provada com junção das pertinentes escrituras públicas.
Quanto ao restante.
Em bom rigor, os factos em questão não eram essenciais para o julgamento, sendo meramente instrumentais da matéria dos quesitos 1.º a 12.º da base instrutória, em que se pretende saber se a 1.ª ré assumiu o pagamento de quantia que o autor terá gasto no desenvolvimento imobiliário em questão e se a forma do pagamento ao autor foi a transmissão a favor deste de 16 fracções autónomas.
Mas, como tem sido dito pela doutrina, o critério para a inclusão de factos instrumentais na base instrutória é sobretudo prático, de conveniência prática, relativo, portanto; não se trata de qualquer critério teórico. Tudo depende do caso concreto.5 Muitas vezes é conveniente que a prova incida sobre factos instrumentais, por permitir uma mais ampla produção de prova e uma mais profunda interiorização, por parte do Tribunal, de questões de facto relevantes.
É o caso. Nesta situação afigura-se-nos pertinente a prova de tais factos, para se perceber melhor a vontade negocial de autor e ré.
Acresce não ser relevante o tempo que se gastará com tal julgamento, visto que o novo julgamento implicará nova produção de prova sobre os quesitos 1.º a 12.º e 29.º da base instrutória, que terá de ser realizado por um novo Colectivo, por já não ser possível reunir o mesmo Tribunal Colectivo, em virtude de a Ex.ma Juíza 2.ª Vogal já não ser juíza dos tribunais de Macau, não podendo participar no julgamento da matéria de facto.
Devem, pois, ser aditados à base instrutória os mencionados factos.
Improcedem os recursos nesta parte.
Em conclusão, mantém-se a anulação do julgamento da matéria de facto quanto aos quesitos 1.º a 12.º e 29.º da base instrutória e da sentença, excepto na parte em que esta transitou em julgado, por não ter sido objecto de recurso, como se menciona no acórdão recorrido.
Como se disse, parte da matéria dos artigos 92.º e 93.º está fora do julgamento do tribunal, por mencionar matéria que só pode ser provada com junção das pertinentes escrituras públicas.

III – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento aos recursos.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 18 de Março de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 Que dispõe “Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 348.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova”.
     2 J. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume III, 3.ª edição, reimpressão de 1981, p. 345. No mesmo sentido, J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2008, p. 449.

     3 O sublinhado é nosso.
     4 Refere-se a matéria do artigo 89.º da petição, que consta da alínea L) dos factos assentes.
     5 ANTÓNO ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Coimbra, Almedina, Volume II, 4.ª edição, 2004, p. 232 a 234.
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Processo n.º 125/2014

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Processo n.º 125/2014