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Tribunal Administrativo da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso Contencioso Fiscal n.º 1121/14-CF



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Processo n.º: 1121/14-CF
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  A, ora Recorrente, melhor identificada nos autos, vem interpor o presente recurso contencioso de anulação do acto de liquidação oficiosa do imposto de turismo relativo ao período de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2009, proferido pelo Subdirector dos Serviços de Finanças, ora entidade recorrida, de 18 de Junho de 2014, através do qual se procedeu à cobrança da quantia de MOP2.145.334,00, acrescidos de juros compensatórios, pedindo a sua anulação, invocando para tal os vícios de falta de fundamentação, da violação da lei e dos princípios da boa fé, da legalidade e da tipicidade.
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Regularmente citado, veio contestar a entidade recorrida, defendendo pelo indeferimento liminar do presente recurso por irrecorribilidade do acto recorrido e pela legalidade da decisão em causa, propugnando pela improcedência do presente recurso.
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  A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer inicial no sentido de rejeitar o presente recurso por procedência da excepção da irrecorribilidade do acto recorrido (cfr. fls. 84 a 85v dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
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  Notificada para se pronunciar sobre a invocada excepção de irrecorribilidade do acto recorrido, a recorrente manifestou a opinião de disconcordância à procedência da respectiva excepção (cfr. fls. 89 a 90 dos autos).
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Vamos, desde já, pronunciar sobre a questão da irrecorribilidade do acto recorrido, questão esta cuja procedência venha a prejudicar ao conhecimento do mérito da causa.
  Dos autos e do P.A. anexo resultam provados os seguintes factos:
  1.º - A recorrente é titular do estabelecimento designado por [HOTEL (1)], ao qual foi atribuído o cadastro n.º XXXXXX.
  2.º - Em 18/06/2014, a entidade recorrida proferiu o despacho de concordância sobre o conteúdo da informação n.º XXXX/NVT/DOI/RFM/2014 datado de 16/06/2014, o qual foi decidido proceder-se à liquidação oficiosa do imposto de turismo referente ao exercício da recorrente durante os anos de 2009 a 2012, com acréscimo de juros compensatórios, uma vez que verificaram-se irregularidades nas fracturas apresentadas pela recorrente (cfr. fls. 268 a 273 do P.A.).
  3.º - Na mesma data, a entidade recorrida emitiu a guia n.º 2014-XX-XXXXXX-X(X) à recorrente, no montante de MOP3.157.809,00, referente ao imposto do turismo devido sobre o período de Janeiro a Dezembro de 2009, pelo volume das vendas ou serviços prestados no valor de 42.906.665,65 (cfr. fls. 258 do P.A.).
  4.º - Através da Notificação M/6 n.º 2014/XX/XXXXXX/X datado de 19/06/2014, a entidade recorrida notificou a recorrente da liquidação oficiosa referente ao imposto de turismo sobre o período de tributação entre Janeiro a Dezembro de 2009, na quantia de MOP2.145.334,00 (cfr. fls. 374 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
  5.º - Na referida notificação, vem ainda a menção de que do referido acto de liquidação cabe reclamação para a Directora da Direcção dos Serviços de Finanças (D.S.F.) no prazo de 15 dias, ao abrigo do art.º 2.º, n.º 2 da Lei n.º 12/2003 (idem).
  6.º - Em 08/07/2014, a recorrente apresentou junto da Directora da D.S.F. a reclamação sobre a decisão da liquidação oficiosa (cfr. fls. 342 a 353 do P.A.).
  7.º - Em 18/07/2014, a Directora da D.S.F. proferiu o despacho de indeferimento da reclamação apresentada pela recorrente, com fundamentos lançados na informação n.º XXXX/NVT/DOI/RFM/2014 de 16/07/2014 (cfr. fls. 360 a 362 do P.A.).
  8.º - Através do ofício n.º XXXX/NVT/DOI/RFM/2014 datado de 23/07/2014, a D.S.F. notificou a recorrente do referido indeferimento da reclamação, com a menção de que desta decisão cabe recurso hierárquico necessário para o Ex.º Senhor Chefe do Executivo, no prazo de 30 dias, ao abrigo do art.º 3.º, n.º 2 da Lei n.º 12/2003 (cfr. fls. 359 e verso do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
  9.º - Em 28/07/2014, a recorrente procedeu ao pagamento do referido imposto do turismo com declaração de reserva total (cfr. fls. 258, 262 e 366 do P.A.).
  10.º - Em 06/08/2014, a recorrente intentou junto deste Tribunal o recurso contencioso de anulação do acto de liquidação oficiosa da entidade recorrida praticada em 18/06/2014 (cfr. fls. 2 dos autos).
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  Sustentou a entidade recorrida a irrecorribilidade do acto sindicado por ser um acto praticado com competência prevista no n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 12/2003 que foi lhe delegada pela Senhora Directora através do despacho n.º 2/DIR/2011, sendo este acto sujeito à impugnação administrativa necessária e não sendo acto definitivo e executório por força dos n.º 2 e 3 do mesmo artigo.
  A recorrente entendeu que o acto recorrido é recorrível contenciosamente pela tutela jurisdicional efectiva consagrada no art.º 36.º da Lei n.º 19/96/M, na medida de lesão que o mesmo causa aos seus interesses.
  Fica provado nos presentes autos que na notificação enviada à recorrente sobre a decisão da liquidação oficiosa referente ao imposto de turismo do período de tributação entre Janeiro a Dezembro de 2009 (n.º 2014/XX/XXXXXX/X), foi a recorrente notificada para deduzir reclamação junto da Directora da D.S.F. no prazo de 15 dias, ao abrigo do art.º 2.º, n.º 2 da Lei n.º 12/2003.
  Consta ainda nesta notificação a menção do uso da competência delegada pela Directora da D.S.F. para a entidade recorrida mediante o despacho n.º 2/DIR/2011.
  De notar que se trata, in casu, uma decisão de liquidação do imposto de turismo, cujo regime jurídico definido pela Lei n.º 19/96/M, de 19 de Agosto, e nele tem o seguinte:
“Artigo 8.º
(Liquidação oficiosa)
1. O chefe da Repartição de Finanças procede à liquidação oficiosa do imposto, com base em elementos ao dispor dos serviços, nomeadamente registo contabilísticos e outra documentação, capacidade instalada, taxas de ocupação, localização das instalações e preços praticados, nos seguintes casos:
a) Falta total ou parcial de liquidação do imposto por parte do sujeito passivo, omissões ou erros de que haja resultado prejuízo para o Território;
b) Falta de apresentação da declaração periódica a que se refere o n.º 2 do artigo anterior, dentro do respectivo prazo legal;
c) Falta de rectificação nos termos do n.º 4 do artigo anterior.
2. Feita a liquidação oficiosa do imposto, é o sujeito passivo notificado através do impresso modelo M/6, enviado sob registo postal, para que proceda à entrega do montante do imposto em falta e do acrescido, no prazo de 30 dias.
3. A liquidação efectuada nos termos do n.º 1 fica sem efeito caso o sujeito passivo apresente a declaração em falta ou a rectificação da declaração apresentada, dentro do prazo referido no número anterior.
Artigo 32.º
(Meios ao dispor dos particulares)
1. Os particulares têm sempre o direito de solicitar a suspensão, revogação ou modificação das decisões ou actos praticados ao abrigo deste Regulamento.
2. O direito previsto no número anterior pode ser exercido mediante:
a) Reclamação para o autor do acto;
b) Recurso hierárquico necessário para o director da DSF, nos termos gerais;
c) Recurso hierárquico facultativo, para o Governador, da decisão sobre a reclamação prevista no artigo 34.º
Artigo 33.º
(Reclamação)
Todas as reclamações devem ser:
a) Apresentadas no prazo de 15 dias;
b) Decididas no prazo de 30 dias a contar da sua apresentação.
Artigo 34.º
(Reclamação da liquidação)
1. O acto do chefe da Repartição de Finanças que fixa o montante do imposto liquidado pode ser objecto de reclamação, a apresentar no prazo de 15 dias a contar da data da notificação da liquidação a que se refere o n.º 2 do artigo 12.º
2. Em caso de procedência total ou parcial da reclamação, há lugar a nova liquidação do imposto.
3. A reclamação prevista no n.º 1 não tem efeito suspensivo.
Artigo 36.º
(Objecto)
É garantido recurso contencioso contra:
a) As decisões sobre os recursos hierárquicos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 32.º;
b) As decisões ou actos que imponham ou agravem deveres, encargos, ónus ou sanções;
c) As demais decisões ou actos que lesem os direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.”
  De acordo com o citado dipositivo, designadamente, os art.º 8.º, 32.º, n.º 2, alíneas a) e b) e art.º 36.º, antes de ser contenciosamente recorrível, cabe sempre dos acto e das decisões praticados ao abrigo do Regulamento do Imposto de Turismo recurso hierárquico necessário para o Director da D.S.F., sem prejuízo da dedução da reclamação para o próprio autor do acto.
  Caso a liquidação do imposto for feita pelo Chefe da Repartição das Finanças (cfr. art.º 32.º, n.º 2, alínea c), 34.º e 36.º, alínea a) da Lei n.º 19/96/M), então a reclamação deduzida sobre esta decisão de liquidação não tem “efeito suspensivo” e da decisão da reclamação cabe “recurso hierárquico facultativo” para o Governador (i.e., o Chefe do Executivo). Isto demonstra a particularidade respeitante à decisão de liquidação feita pelo Chefe da Repartição das Finanças, de um lado, divergente da regra geral do recurso hierárquico necessário interposto junto do Director, é necessária a dedução da reclamação para o autor do acto. De outro lado, a decisão da reclamação não é contenciosamente recorrível, sendo apenas a decisão do recurso hierárquico facultativo interposto junto do Chefe do Executivo ser objecto de recurso contencioso. Afigura-se que existe uma incoerência e incompatibilidade entre estas normas e o regime geral de impugnação administrativa bem como o estipulado no art.º 5.º da Lei n.º 15/96/M, de 12 de Agosto, por ser sempre acto não sujeito à impugnação administrativa necessária contenciosamente recorrível, ao invés de que se admite aqui objecto de recurso contencioso uma decisão do recurso hierárquico facultativo.
  Independentemente da estatuição prevista na segunda parte da alínea a) do art.º 36.º, o preceituado nos n.º 2 e 3 do mesmo artigo, que, a nosso ver, dá correspondência ao previsto no n.º 1 do art.º 1 da Lei n.º 15/96/M, abrangente de todos aqueles actos ou decisões que imponham ou agravem deveres, encargos, ónus ou sanções, e que lesem os direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, e deve ser interpretada de modo restritivo para se limitar aos actos impugnáveis não sujeitos a recurso hierárquico necessário e contenciosamente recorríveis nos termos gerais.
  No caso vertente, invocou a entidade recorrida que praticou o acto sindicado no uso da competência delegada pela Directora da D.S.F., que lhe foi atribuída pelo art.º 2.º da Lei n.º 12/2003, mostra-se necessário analisar o alcance do referido diploma, de modo que o Regulamento do Imposto de Turismo ficasse englobado nesta norma com alteração introduzida à atribuição das competências da Administração Fiscal e ao respectivo regime de impugnação administrativa.
  É verdade que foi abordada a questão do alcance do art.º 2.º da Lei n.º 12/2003 nos vários acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, designadamente, dos processo n.º 272/2013, de 28/11/2013, 20/2013, de 16/01/2014 e 51/2013, de 13/02/2014, respectivamente, donde se concluíram que a norma tem aplicação e se refere apenas ao Regulamento do Imposto Profissional e Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos. A mesma questão vem-se discutido posteriormente nos dois acórdãos do Tribunal de Última Instância, dos processo n.º 31/20141 e 32/2014, ambos de 23/07/2014, neles se lançaram fundamentos, aqui se dão por integralmente transcrito, para sustentar a posição de aplicação geral da norma a todos os impostos e não apenas aos impostos profissional e complementar de rendimentos bem como ao imposto de selo ali posto em causa, justificando-se o título ou epígrafe da lei ter mero valor interpretativo e não valor prescritivo e a letra da lei não resultar uma interpretação de que a norma apontasse apenas, em particular, ao impostos profissional e complementar de rendimentos, conclusão esta que aqui se acolhe, não obstante de vir contrariar os fundamentos ponderosos expostos nos acórdãos do T.S.I..
  Parece que a explicação exposta no douto acórdão do T.U.I. dá resposta também ao presente caso, quanto à irrecorribilidade do acto recorrido, tendo esta decisão da entidade recorrida, praticada no âmbito da competência que lhe ser delegada pela Senhora Directora da D.S.F. através do Despacho n.º 2/DIR/2011 (publicado no II Série do Boletim Oficial da R.A.E.M., n.º 3, de 19 de Janeiro de 2011), competência originada pela alteração introduzida pelo art.º 2.º da Lei n.º 12/2003 às normas consagradas no Regulamento do Imposto de Turismo, designadamente, os seus art.º 8.º e 32.º, n.º 2, alíneas b) e c), art.º 34.º e 36.º, alínea a), ainda ser sujeita a reclamação à Directora da D.S.F. e na sequência desta, ao recurso hierárquico necessário para o Exm.º Senhor Chefe do Executivo para ser contenciosamente recorrível, nos termos dos n.º 2 e 3 do art.º 2.º da Lei n.º 12/2003 e art.º 28.º, n.º 1, do Código do Processo Administrativo Contencioso (C.P.A.C.).
  Não obstante de se verificar nos presentes autos a dedução da reclamação da decisão da entidade recorrida junto da Directora da D.S.F., a recorrente escolheu por impugnar a decisão de liquidação do primeiro grau antes de lançar mão ao subsequente meio impugnatório necessário que lhe foi informado na notificação da decisão de indeferimento da reclamação no ofício n.º XXXX/NVT/DOI/RFM/2014 datado de 23/07/2014, outra solução não resta senão rejeitar o presente recurso pela irrecorribilidade do acto recorrido (cfr. art.º 46.º, n.º 2, alínea c) do C.P.A.C.) e absolver a entidade recorrida da instância, nos termos do art.º 230.º, n.º 1, alínea e) do Código do Processo Civil (C.P.C.), ex vi do art.º 1.º do C.P.A.C..
  Por sua vez, quanto ao argumento da tutela jurisdicional efectiva que a recorrente pretende defender, é verdade que o acto anulando importa imposição de deveres à recorrente (cfr. art.º 36.º, n.º 2 e 3 da Lei n.º 19/96/M), todavia, tal como se refere atrás, elemento este não justifica dispensar a sujeição do acto à impugnação administrativa necessária para ser contenciosamente recorrível, nos termos do art.º 28.º, n.º 1 e 3, do C.P.A.C..
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  Por tudo o que fica expendido e justificado, o Tribunal decide proceder a presente excepção da irrecorribilidade do acto recorrido e rejeitar o recurso, absolvendo a entidade recorrida da instância, ao abrigo do art.º 230.º, n.º 1, alínea e) do C.P.C., ex vi do art.º 1.º do C.P.A.C..
  Custas pela recorrente com taxa de justiça de 3 U.C..
  Registe e notifique.
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30 de Janeiro de 2015
Juiz de Direito
Leong Sio Kun
1 Consta deste acórdão do Tribunal de Última Instância o seguinte:
“… … …
Tirando o artigo 4.º que é uma norma de execução prática da lei e o artigo 6.º que se refere à vigência, os artigos 1.º, 3.º e 5.º, alteram o Regulamento do Imposto Profissional, revogam a isenção a um grupo de pessoas e promovem a sua aplicação no tempo.
O artigo 5.º revoga, ainda, três normas do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos. No diploma nada mais se refere a este imposto.
Foquemo-nos no artigo 2.º da Lei.
A tese do acórdão recorrido é o de que o artigo 2.º desta Lei n.º 12/2003 se aplica apenas aos impostos profissional e complementar de rendimentos.
Opinião contrária têm tanto a recorrente, como a entidade recorrida, como o Ex.mo Magistrado do Ministério Público. Para estes, o artigo 2.º da Lei n.º 12/2003 aplica-se à generalidade dos impostos e, portanto, ao imposto do selo.
Vejamos.
O n.º 1 do artigo 2.º determina que as competências para lançamento, liquidação, fixação, notificação e aplicação de penalidades que, nas leis ou regulamentos fiscais, se encontram atribuídas a duas entidades (chefe do Departamento de Auditoria, Inspecção e Justiça Tributária e chefe da Repartição de Finanças de Macau), seja directamente seja por, em virtude das leis orgânicas da Direcção dos Serviços de Finanças, lhes terem sido atribuídas implicitamente, são atribuídas ao director dos Serviços de Finanças.
A letra da lei não podia ser mais clara no sentido desta norma se aplicar a todas as leis e regulamentos fiscais e não apenas às atinentes aos impostos profissional e complementar de rendimentos.
O n.º 2 do mesmo artigo 2.º estatui que o director dos Serviços de Finanças é a entidade competente para apreciar das reclamações de actos administrativos praticados no âmbito das competências referidas no número 1, com excepção das que se refiram à impugnação da fixação da matéria colectável quando especialmente se preveja a reclamação para Comissões de Revisão, caso em que a competência se mantém nessas Comissões.
Também esta norma não suscita dúvidas, porque se move no âmbito do n.º 1 da mesma lei e atribui competência ao director dos Serviços de Finanças para apreciar das reclamações de actos administrativos respeitantes ao lançamento, liquidação, fixação, notificação e aplicação de penalidades em todas as leis e regulamentos fiscais. Com uma excepção: naqueles casos em que as leis e regulamentos fiscais prevejam a impugnação da fixação da matéria colectável perante Comissões de Revisão, a competência mantém-se nestas Comissões.
E o n.º 3 acrescenta que da decisão do director dos Serviços de Finanças, no âmbito dos n. os 1 e 2, em reclamação graciosa cabe recurso hierárquico necessário para o Chefe do Executivo. Mas não das comissões de revisão.
Quer isto dizer que a Lei 12/2003 prevê apenas recurso contencioso dos actos do Chefe do Executivo, mantendo o recurso contencioso de impugnação da fixação da matéria colectável das deliberações das Comissões de Revisão.
A letra da lei aponta manifestamente para aplicação a todos os impostos e não apenas aos dois mencionados.
Quais os argumentos do acórdão recorrido e dos outros do TSI que têm defendido a tese oposta?
O principal é este: que o título da lei se refere apenas a alteração do Regulamento do Imposto Profissional e do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos.
O que é exacto, mas nada prova.
Como se sabe, o título ou epígrafe da lei não tem valor prescritivo. Não determina nada, não estatui nada. Só o texto da lei o faz. O título ou epígrafe da lei é apenas o pórtico que anuncia ao leitor as grandes linhas da lei, mas, as mais das vezes, não é exaustivo, porque o não pode ser. Não é possível, em muitos casos, fixar um título necessariamente curto para uma lei que pode ser extensa e tratar de muitos assuntos.
Em bom rigor, o título ou epígrafe da lei tem, ainda, menos valor interpretativo que o preâmbulo da lei, que, reconhecidamente, não tem valor dispositivo. É que o título ou epígrafe da lei apenas anuncia em duas ou três palavras o que a lei contém, ao passo que o preâmbulo é, normalmente, bastante mais extenso, explicando os objectivos do texto jurídico.
Como ensina JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO1, referindo-se aos preâmbulos das leis, aos títulos das secções dos diplomas e às epígrafes dos artigos, “ Não representam comentários laterais, têm uma autoridade que os faz ocupar melhor posição que os elementos históricos não qualificados. Podem servir assim de auxílio precioso para a interpretação dum texto. Não esqueçamos que neles intervêm ou convêm todas as entidades cuja pronúncia é indispensável para a produção da fonte.
Estes elementos, apesar da sua grande autoridade, não têm o mesmo valor do texto. Em si, não têm o sentido de determinação, que é o próprio de uma fonte de direito, mas o de esclarecimento (preâmbulo) ou de análise de um caso com vista à sua solução, pela declaração da máxima de decisão que o rege. Por isso, se houver contradição é o que está no articulado ou no próprio texto da decisão judicial, conforme os casos, que prevalece2.”
Pois bem, se a epígrafe de um artigo não tem o valor do texto da lei, muito menos o pode ter a epígrafe de uma lei, necessariamente menos abrangente e menos exaustiva, já que tem de descrever um objecto muito mais extenso.
Ora, a epígrafe do artigo 2.º refere “Competências em matéria fiscal” e não “Competências em matéria de imposto profissional e de imposto complementar de rendimentos”. O que aponta para que se aplique à generalidade das leis e regulamentos fiscais.
Por isso, epígrafe por epígrafe, parece que vale mais a do artigo do que a da lei. Assim, a haver que dar prevalência a alguma das epígrafes, tem valor interpretativo superior a epígrafe de um artigo relativamente à da lei em geral.
Mas o acórdão recorrido não se limita a dar algum valor interpretativo ao título da lei. Acaba por decidir que ele tem mais valor injuntivo ou preceptivo que o texto do artigo 2.º da mesma Lei, que é muito claro no sentido de se aplicar a todas as leis e regulamentos fiscais.
O 2.º argumento do acórdão recorrido é este: se a intenção do legislador fosse a mudar o regime de todos os impostos, no que toca ao acto contenciosamente recorrível, não se teria esquecido de revogar todas as normas de todas as leis que se impusesse fazê-lo, como fez no artigo 5.º.
Salvo o devido respeito, este argumento ainda prova menos que o anterior.
No artigo 5.º da Lei revoga-se o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 65/84/M e a alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º, o artigo 5.º e o artigo 6.º, todos do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos. Ou seja, revogam-se quatro normas concretas em virtude da fixação de novo regime do imposto profissional. Uma (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 65/84/M) revoga uma isenção de imposto. Não era possível uma revogação implícita. O mesmo se diga das três revogações do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos.
Já no caso do novo regime, fixado pelo artigo 2.º, seria muito mais complexa a revogação expressa, porque envolvia todas as leis e regulamentos atinentes a impostos, bem como leis orgânicas. Se o legislador se esquecesse de revogar uma norma iria levantar uma dúvida sobre a vigência de regime paralelo ao novo fixado. Assim, seria muito mais prudente fixar um regime genérico, sem revogação concreta de nenhuma lei ou regulamento fiscal, com revogação tácita de todos os regimes em contrário dos anteriores. Como aconteceu. Não nos cabendo qualificar a opção do legislador, só nos resta dizer que assumiu uma conduta prudente, não podendo retirar-se nenhum argumento desta atitude a favor da tese do acórdão recorrido.
O último argumento do acórdão recorrido é uma vaga referência à discussão do projecto de lei na Assembleia Legislativa, onde não se verificou a intenção de alterar o regime da Lei n.º 15/96/M. Mas o facto de os deputados não terem mencionado um ponto da lei não parece demonstrar nada.
Visto o sentido da lei e afastados os argumentos da tese do acórdão recorrido, cabe acrescentar outros argumentos que demonstram cabalmente que o artigo 2.º da Lei se aplica a todos os impostos e não apenas ao imposto profissional e ao imposto complementar de rendimentos.
Antes de mais, seria muito estranha a aplicação da lei, em especial, ao imposto complementar de rendimentos quando a lei, quanto a este, se limita a revogar três normas.
Por outro lado, o intérprete tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil).
Ora, parece que seria desacertado ter consagrado que, no tocante ao imposto profissional e ao imposto complementar de rendimentos o acto recorrível contenciosamente fosse o do Chefe do Executivo, enquanto que nos restantes impostos continuasse a vigorar o regime da Lei n.º 15/96/M e das leis de impostos cedulares, em que o acto recorrido é do director dos Serviços de Finanças (com a excepção já vista da impugnação da matéria colectável).
Claro que o legislador pode aprovar o que lhe aprouver. Mas na dúvida sobre a sua intenção, há que presumir que é coerente e que consagrou as soluções mais acertadas.
Mas a prova cabal da intenção do legislador, afigura-se-nos residir no seguinte:
No n.º 2 do artigo 2.º, dispõe-se que o director dos Serviços de Finanças é a entidade competente para apreciar das reclamações de actos administrativos praticados no âmbito das competências referidas no número anterior, com excepção das que se refiram à impugnação da fixação da matéria colectável quando especialmente se preveja a reclamação para Comissões de Revisão, caso em que a competência se mantém nessas Comissões.
Ora, o legislador sabia perfeitamente que, nos termos do Regulamento do Imposto Profissional e do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos, a impugnação da fixação da matéria colectável se fazia perante as Comissões de Revisão (artigo 79.º Regulamento do Imposto Profissional, na redacção da Lei n.º 9/93/M, de 23 de Agosto e artigo 44.º do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos, na redacção da Lei n.º 6/83/M, de 2 de Julho).
Por isso, se o artigo 2.º se referisse apenas ao imposto profissional e ao imposto complementar de rendimentos não fazia nenhum sentido dizer-se “quando especialmente se preveja a reclamação para Comissões de Revisão”, porque o legislador sabia que nestes impostos a impugnação da fixação da matéria colectável se fazia sempre para as comissões de revisão.
Mas a norma já faz todo o sentido se referir a todos os impostos, porque nem em todos existe impugnação da fixação da matéria colectável perante comissão de revisão. É o caso da contribuição industrial que não conhece esta comissão de revisão (Regulamento da Contribuição Industrial aprovado pela Lei n.º 15/77/M).
Eis a prova de que o artigo 2.º da Lei n.º 12/2003 se aplica a todos os impostos, revogou o artigo 5.º da Lei n.º 15/96/M e derrogou as normas das leis e regulamentos fiscais que previam o recurso contencioso dos actos do director dos Serviços de Finanças.
… … …”
1121/14-CF 13/13