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Tribunal Administrativo da Região Administrativa Especial de Macau
Recurso Contencioso Fiscal n.º 1067/14-CF



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Processo n.º: 1067/14-CF
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SENTENÇA
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  A, ora recorrente, melhor identificada nos autos, vem interpor o presente recurso contencioso de anulação do acto de liquidação do imposto do selo respeitante a 773 contratos de cedência de uso de loja em centro comercial, proferido pelo Subdirector dos Serviços de Finanças, ora entidade recorrida, de 07 de Janeiro de 2014, através do qual se procedeu à cobrança da quantia de MOP69.711.821,00, pedindo a sua anulação pelos vícios da violação da lei e da caducidade da liquidação sobre os contratos que foram celebrados até 15 de Janeiro de 2009.
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Regularmente citado, veio contestar a Directora da Direcção dos Serviços de Finanças (D.S.F.), defendendo pelo indeferimento liminar do presente recurso por irrecorribilidade do acto recorrido e pela legalidade da decisão em causa, propugnando pela improcedência do presente recurso.
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  A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer inicial no sentido de intimar a entidade recorrida para esclarecer a identidade do autor do acto recorrido (cfr. fls. 263 a 264v dos autos).
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  Notificados para se pronunciarem sobre a questão da irrecorribilidade do acto e da contestação apresentada pela Directora da D.S.F., a entidade recorrida reiterou pela irrecorribilidade do acto recorrido e requereu a ratificação do processado praticado pela Directora da D.S.F., enquanto que a recorrente veio defender da recorribilidade do acto e requereu o desentranhamento da contestação por falta de legitimidade (cfr. fls. 268 a 271 e 276 a 281 dos autos).
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  Foi determinado o desentranhamento da contestação apresentada pela Directora dos Serviços de Finanças por falta de legitimidade da sua apresentação e foram as partes notificadas para apresentaram alegações facultativas (cfr. fls. 293 e verso e 296 a 359 dos autos).
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  A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer final no sentido de rejeitar o presente recurso por procedência da excepção da irrecorribilidade do acto recorrido (cfr. fls. 361 e verso dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
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O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.
O Processo é próprio e não há nulidades.
A recorrente e a entidade recorrida dispõem de personalidade e capacidade judiciárias e são partes legítimas.
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  Não obstante que a contestação apresentada pela Directora da D.S.F. foi desentranhado dos autos, veio a recorrente oportunamente ser notificado para pronunciar sobre a excepção dilatória da irrecorribilidade do acto recorrido (cfr. fls. 265 e 276 a 281 dos autos), pelo que, determino dispensar a notificação da recorrente para pronunciar sobre a mesma questão da irrecorribilidade do acto recorrido invocada pela entidade recorrida nas alegações facultativas.
Vamos, desde já, pronunciar sobre a questão da irrecorribilidade do acto recorrido, questão esta cuja procedência venha a prejudicar ao conhecimento do mérito da causa.
  Dos autos e do P.A. anexo resultam provados os seguintes factos:
  1.º - Através do ofício n.º XXXX/NIS/DOI/RFM/2013 datado de 25/04/2013, a Directora da Direcção dos Serviços de Finanças (D.S.F.) notificou a recorrente para se pronunciar sobre o facto de nunca ter sido declarado junto da D.S.F. os contratos de arrendamento das lojas situadas no “[Shoppes (1)]” e “[Shoppes (2)]” (cfr. fls. 53 dos autos)
  2.º - Em 14/05/2013, em resposta ao ofício XXXX/NIS/DOI/RFM/2013, a recorrente informou a Directora da D.S.F. que os contratos celebrados com as lojas são contratos atípicos e não contratos de arrendamento comercial, pelo que não deverão ser sujeitos ao imposto do selo referido no ofício em causa (cfr. fls. 54 dos autos).
  3.º - Através do ofício XXXX/NIS/DOI/RFM/2013 datado de 27/06/2013, a Directora da D.S.F. informou a recorrente que os contratos em causa enquadram nas normas previstas nos art.º 969.º e 970.º do Código Civil, pelo que a recorrente, como locadora, tinha o dever de participar os contratos de arrendamento à Administração Fiscal, remetendo-a para o efeito os impressos e mapas para serem preenchidos e remetidos àqueles serviços, sob pena de se proceder à liquidação oficiosa e a condenação em multa por transgressão (cfr. fls. 55 e 59 dos autos).
  4.º - Em 17/07/2013, a recorrente apresentou junto da Directora da D.S.F. um pedido de prorrogação de prazo para apresentação do modelo M/4 e os respectivos mapas referidas no ofício XXXX/NIS/DOI/RFM/2013 (cfr. fls. 52 a 54 do P.A.).
  5.º - Através do ofício n.º XXXX/NIS/DOI/RFM/2013 datado de 29/07/2013, foi a recorrente notificada do despacho da Directora da D.S.F. que lhe deferiu o referido pedido de prorrogação de prazo por 30 dias (cfr. fls. 60 do P.A.).
  6.º - Durante os dias 26 a 30 de Agosto de 2013, a recorrente, invocando os ofícios n.º XXX/NIS/DOI/RFM/2013 e n.º XXXX/NIS/DOI/RFM/2013, enviou à D.S.F. os impressos M/4, acompanhados pelos respectivos Modelos S, referentes aos 773 contratos de cedência de uso das lojas em causa (cfr. fls. 105 a 1091 do P.A.).
  7.º - Em 07/01/2014, a entidade recorrida, através do despacho exarado na informação n.º X/NIS/DOI/RFM/2014, autorizou a liquidação do imposto de selo devido sobre o remanescente dos contratos de arrendamento entregues com os impressos Modelo M/4 pela recorrente (cfr. fls. 23 a 41 do P.A.).
  8.º - Na mesma data, a D.S.F. emitiu a guia n.º 2014-XX-XXXXXX-X à recorrente, no montante de MOP69.711.821,00, referente ao imposto do selo devido sobre os respectivos contratos (cfr. fls. 22 do P.A.).
  9.º - Em 27/01/2014, a recorrente apresentou junto da Directora da D.S.F. a reclamação do acto recorrido (cfr. fls. 2 a 21 do P.A.).
  10.º - Em 28/01/2014, a recorrente procedeu ao pagamento do referido imposto do selo com declaração de reserva total (cfr. fls. 1 e 22 do P.A.).
  11.º - Em 11/02/2014, a recorrente enviou para este Tribunal o petitório dos presentes autos por via de telecópia, cujo original foi apresentado no dia 12/02/2014 (cfr. fls. 2 dos autos).
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  Sustentou a entidade recorrida a irrecorribilidade do acto sindicado por ser um acto praticado com competência prevista no n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 12/2003 que foi lhe delegada pela Senhora Directora através do despacho n.º 2/DIR/2011, sendo este acto sujeito à impugnação administrativa necessária e não sendo acto definitivo e executório por força dos n.º 2 e 3 do mesmo artigo.
  Aqui trata-se de uma decisão de liquidação do imposto de selo sobre os contratos regulado pelo art.º 27.º da Lei n.º 17/88/M, de 27 de Junho.
  Quanto aos meios impugnatórios administrativo e contencioso das decisões e actos praticados no âmbito do Regulamento do Imposto de Selo, tem o seguinte:
“Artigo 91.º
  1. É garantido ao contribuinte recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, contra a liquidação do imposto, as multas aplicadas e demais actos definitivos e executórios.
  2. Em todas as matérias relativas ao recurso contencioso observa-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Regulamento da Contribuição Industrial, aprovado pela Lei n.º 15/77/M, de 31 de Dezembro.
Artigo 92.º
  1. A reclamação de actos de liquidação oficiosa ou adicional de imposto do selo sobre transmissões de bens imóveis, nos termos do capítulo XVII, quando fundamentada em discordância com o valor atribuído à transmissão, é obrigatoriamente dirigida à Comissão de Revisão.
  2. A reclamação referida no número anterior deve ser apresentada na Repartição de Finanças de Macau no prazo de 15 dias contados da notificação da liquidação.
  3. Das deliberações da Comissão de Revisão cabe recurso contencioso imediato nos termos gerais.”
  E reza no Regulamento da Contribuição Industrial, com alterações introduzidas pela Lei n.º1/89/M, de 17 de Abril, o seguinte:
“Artigo 50.º
(Recurso hierárquico)
  1. Da decisão proferida em reclamação graciosa cabe recurso para o Governador.
  2. O recurso hierárquico deve ser interposto no prazo de oito dias a contar da data da notificação da decisão recorrida.
Artigo 50.º-A
(Recurso da classificação definitiva)
  Da classificação definitiva e da revisão desta não haverá reclamação graciosa, mas somente recurso hierárquico necessário para o director dos Serviços de Finanças.
Artigo 51.º
(Efeito da reclamação e do recurso)
  1. A reclamação graciosa e o recurso hierárquico, referidos nos artigos 49.º e 50.º, têm efeito meramente devolutivo.
  2. O recurso hierárquico, referido no artigo 50.º-A, tem efeito suspensivo.
Artigo 52.º
(Garantia contenciosa)
  É garantido ao contribuinte recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra as multas aplicadas, as decisões do director dos Serviços de Finanças proferidas sobre os recursos interpostos da classificação definitiva e da revisão da classificação e dos demais actos definitivos e executórios.”
  Segundo o citado diploma, retira-se que os particulares podem arguir a ilegalidade dos actos de liquidação do imposto de selo, bem como as multas aplicadas e demais actos definitivos e executórios junto do Director da D.S.F., e as decisões do Director da D.S.F. são contenciosamente recorríveis, salvo os casos quando a arguição fundamenta somente em discordância com o valor atribuído à transmissão, o qual é dirigida à Comissão de Revisão para decisão.
  Por sua vez, não são contenciosamente recorríveis as decisões do recurso hierárquico interposto junto do Governador (i.e., Chefe do Executivo), significando por isso que o recurso hierárquico ser facultativo (cfr. também o art.º 5.º da Lei n.º 15/96/M).
  Invocou a entidade recorrida que praticou o acto sindicado no uso da competência delegada pela Directora da D.S.F., através do Despacho n.º 2/DIR/2011, que lhe foi atribuída pelo art.º 2.º da Lei n.º 12/2003, mostra-se necessário analisar o alcance do referido diploma, de modo que o Regulamento do Imposto de Selo ficasse englobado nesta norma com alteração introduzida à atribuição das competências da Administração Fiscal e ao respectivo regime de impugnação administrativa.
  Quanto à questão do alcance do art.º 2.º da Lei n.º 12/2003, foi abordada nos vários acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, designadamente, dos processo n.º 272/2013, de 28/11/2013, 20/2013, de 16/01/2014 e 51/2013, de 13/02/2014, respectivamente, donde se concluíram que a norma tem aplicação e se refere apenas ao Regulamento do Imposto Profissional e Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos. A mesma questão vem-se discutido posteriormente nos dois acórdãos do Tribunal de Última Instância, dos processo n.º 31/20141 e 32/2014, ambos de 23/07/2014, neles se lançaram fundamentos, aqui se dão por integralmente transcrito, para sustentar a posição de aplicação geral da norma a todos os impostos e não apenas aos impostos profissional e complementar de rendimentos bem como ao imposto de selo ali posto em causa, justificando-se o título ou epígrafe da lei ter mero valor interpretativo e não valor prescritivo e a letra da lei não resultar uma interpretação de que a norma apontasse apenas, em particular, aos impostos profissional e complementar de rendimentos, conclusão esta que aqui se acolhe, não obstante de vir contrariar os fundamentos ponderosos expostos nos acórdãos do T.S.I..
  Parece que a explicação exposta no douto acórdão do T.U.I. dá resposta idêntica ao presente caso, quanto à irrecorribilidade do acto recorrido, tendo esta decisão de liquidação da entidade recorrida, praticada no âmbito da competência que lhe ser delegada pela Senhora Directora da D.S.F. através do Despacho n.º 2/DIR/2011 (publicado no II Série do Boletim Oficial da R.A.E.M., n.º 3, de 19 de Janeiro de 2011), competência originada pela alteração introduzida pelo art.º 2.º da Lei n.º 12/2003 ao regime de impugnação administrativa previsto no Regulamento do Imposto de Selo, designadamente, o seu art.º 91.º, n.º 2, ainda ser sujeita a reclamação à Directora da D.S.F., por se versar das matérias que não são da competência exclusiva da Comissão de Revisão do Imposto de Selo (compete em exclusivo à Comissão de Revisão para decidir reclamações respeitantes à discordância com o valor atribuído à transmissão) e na sequência desta, ao recurso hierárquico necessário para o Exm.º Senhor Chefe do Executivo para ser contenciosamente recorrível, nos termos do n.º 2 e 3 do art.º 2.º da Lei n.º 12/2003 e art.º 28.º, n.º 1 e 3, do Código do Processo Administrativo Contencioso (C.P.A.C.).
  Não obstante de se verificar nos presentes autos a dedução da reclamação da decisão da entidade recorrida junto da Directora da D.S.F., a recorrente escolheu por impugnar a decisão de liquidação do primeiro grau antes da eventual prolação da decisão da reclamação, outra solução não resta senão rejeitar o presente recurso pela irrecorribilidade do acto recorrido (cfr. art. 46.º, n.º 2, alínea c) do C.P.A.C.) e absolver a entidade recorrida da instância, nos termos do art.º 230.º, n.º 1, alínea e) do Código do Processo Civil (C.P.C.), ex vi do art.º 1.º do C.P.A.C..
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  Por tudo o que fica expendido e justificado, o Tribunal decide proceder a presente excepção da irrecorribilidade do acto recorrido e rejeitar o recurso, absolvendo a entidade recorrida da instância, ao abrigo do art.º 230.º, n.º 1, alínea e) do C.P.C., ex vi do art.º 1.º do C.P.A.C..
  Custas pela recorrente com taxa de justiça de 3 U.C..
  Registe e notifique.
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30 de Janeiro de 2015
Juiz de Direito
Leong Sio Kun
                          
1 Consta deste acórdão do Tribunal de Última Instância o seguinte:
“… … …
Tirando o artigo 4.º que é uma norma de execução prática da lei e o artigo 6.º que se refere à vigência, os artigos 1.º, 3.º e 5.º, alteram o Regulamento do Imposto Profissional, revogam a isenção a um grupo de pessoas e promovem a sua aplicação no tempo.
O artigo 5.º revoga, ainda, três normas do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos. No diploma nada mais se refere a este imposto.
Foquemo-nos no artigo 2.º da Lei.
A tese do acórdão recorrido é o de que o artigo 2.º desta Lei n.º 12/2003 se aplica apenas aos impostos profissional e complementar de rendimentos.
Opinião contrária têm tanto a recorrente, como a entidade recorrida, como o Ex.mo Magistrado do Ministério Público. Para estes, o artigo 2.º da Lei n.º 12/2003 aplica-se à generalidade dos impostos e, portanto, ao imposto do selo.
Vejamos.
O n.º 1 do artigo 2.º determina que as competências para lançamento, liquidação, fixação, notificação e aplicação de penalidades que, nas leis ou regulamentos fiscais, se encontram atribuídas a duas entidades (chefe do Departamento de Auditoria, Inspecção e Justiça Tributária e chefe da Repartição de Finanças de Macau), seja directamente seja por, em virtude das leis orgânicas da Direcção dos Serviços de Finanças, lhes terem sido atribuídas implicitamente, são atribuídas ao director dos Serviços de Finanças.
A letra da lei não podia ser mais clara no sentido desta norma se aplicar a todas as leis e regulamentos fiscais e não apenas às atinentes aos impostos profissional e complementar de rendimentos.
O n.º 2 do mesmo artigo 2.º estatui que o director dos Serviços de Finanças é a entidade competente para apreciar das reclamações de actos administrativos praticados no âmbito das competências referidas no número 1, com excepção das que se refiram à impugnação da fixação da matéria colectável quando especialmente se preveja a reclamação para Comissões de Revisão, caso em que a competência se mantém nessas Comissões.
Também esta norma não suscita dúvidas, porque se move no âmbito do n.º 1 da mesma lei e atribui competência ao director dos Serviços de Finanças para apreciar das reclamações de actos administrativos respeitantes ao lançamento, liquidação, fixação, notificação e aplicação de penalidades em todas as leis e regulamentos fiscais. Com uma excepção: naqueles casos em que as leis e regulamentos fiscais prevejam a impugnação da fixação da matéria colectável perante Comissões de Revisão, a competência mantém-se nestas Comissões.
E o n.º 3 acrescenta que da decisão do director dos Serviços de Finanças, no âmbito dos n. os 1 e 2, em reclamação graciosa cabe recurso hierárquico necessário para o Chefe do Executivo. Mas não das comissões de revisão.
Quer isto dizer que a Lei 12/2003 prevê apenas recurso contencioso dos actos do Chefe do Executivo, mantendo o recurso contencioso de impugnação da fixação da matéria colectável das deliberações das Comissões de Revisão.
A letra da lei aponta manifestamente para aplicação a todos os impostos e não apenas aos dois mencionados.
Quais os argumentos do acórdão recorrido e dos outros do TSI que têm defendido a tese oposta?
O principal é este: que o título da lei se refere apenas a alteração do Regulamento do Imposto Profissional e do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos.
O que é exacto, mas nada prova.
Como se sabe, o título ou epígrafe da lei não tem valor prescritivo. Não determina nada, não estatui nada. Só o texto da lei o faz. O título ou epígrafe da lei é apenas o pórtico que anuncia ao leitor as grandes linhas da lei, mas, as mais das vezes, não é exaustivo, porque o não pode ser. Não é possível, em muitos casos, fixar um título necessariamente curto para uma lei que pode ser extensa e tratar de muitos assuntos.
Em bom rigor, o título ou epígrafe da lei tem, ainda, menos valor interpretativo que o preâmbulo da lei, que, reconhecidamente, não tem valor dispositivo. É que o título ou epígrafe da lei apenas anuncia em duas ou três palavras o que a lei contém, ao passo que o preâmbulo é, normalmente, bastante mais extenso, explicando os objectivos do texto jurídico.
Como ensina JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO1, referindo-se aos preâmbulos das leis, aos títulos das secções dos diplomas e às epígrafes dos artigos, “ Não representam comentários laterais, têm uma autoridade que os faz ocupar melhor posição que os elementos históricos não qualificados. Podem servir assim de auxílio precioso para a interpretação dum texto. Não esqueçamos que neles intervêm ou convêm todas as entidades cuja pronúncia é indispensável para a produção da fonte.
Estes elementos, apesar da sua grande autoridade, não têm o mesmo valor do texto. Em si, não têm o sentido de determinação, que é o próprio de uma fonte de direito, mas o de esclarecimento (preâmbulo) ou de análise de um caso com vista à sua solução, pela declaração da máxima de decisão que o rege. Por isso, se houver contradição é o que está no articulado ou no próprio texto da decisão judicial, conforme os casos, que prevalece2.”
Pois bem, se a epígrafe de um artigo não tem o valor do texto da lei, muito menos o pode ter a epígrafe de uma lei, necessariamente menos abrangente e menos exaustiva, já que tem de descrever um objecto muito mais extenso.
Ora, a epígrafe do artigo 2.º refere “Competências em matéria fiscal” e não “Competências em matéria de imposto profissional e de imposto complementar de rendimentos”. O que aponta para que se aplique à generalidade das leis e regulamentos fiscais.
Por isso, epígrafe por epígrafe, parece que vale mais a do artigo do que a da lei. Assim, a haver que dar prevalência a alguma das epígrafes, tem valor interpretativo superior a epígrafe de um artigo relativamente à da lei em geral.
Mas o acórdão recorrido não se limita a dar algum valor interpretativo ao título da lei. Acaba por decidir que ele tem mais valor injuntivo ou preceptivo que o texto do artigo 2.º da mesma Lei, que é muito claro no sentido de se aplicar a todas as leis e regulamentos fiscais.
O 2.º argumento do acórdão recorrido é este: se a intenção do legislador fosse a mudar o regime de todos os impostos, no que toca ao acto contenciosamente recorrível, não se teria esquecido de revogar todas as normas de todas as leis que se impusesse fazê-lo, como fez no artigo 5.º.
Salvo o devido respeito, este argumento ainda prova menos que o anterior.
No artigo 5.º da Lei revoga-se o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 65/84/M e a alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º, o artigo 5.º e o artigo 6.º, todos do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos. Ou seja, revogam-se quatro normas concretas em virtude da fixação de novo regime do imposto profissional. Uma (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 65/84/M) revoga uma isenção de imposto. Não era possível uma revogação implícita. O mesmo se diga das três revogações do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos.
Já no caso do novo regime, fixado pelo artigo 2.º, seria muito mais complexa a revogação expressa, porque envolvia todas as leis e regulamentos atinentes a impostos, bem como leis orgânicas. Se o legislador se esquecesse de revogar uma norma iria levantar uma dúvida sobre a vigência de regime paralelo ao novo fixado. Assim, seria muito mais prudente fixar um regime genérico, sem revogação concreta de nenhuma lei ou regulamento fiscal, com revogação tácita de todos os regimes em contrário dos anteriores. Como aconteceu. Não nos cabendo qualificar a opção do legislador, só nos resta dizer que assumiu uma conduta prudente, não podendo retirar-se nenhum argumento desta atitude a favor da tese do acórdão recorrido.
O último argumento do acórdão recorrido é uma vaga referência à discussão do projecto de lei na Assembleia Legislativa, onde não se verificou a intenção de alterar o regime da Lei n.º 15/96/M. Mas o facto de os deputados não terem mencionado um ponto da lei não parece demonstrar nada.
Visto o sentido da lei e afastados os argumentos da tese do acórdão recorrido, cabe acrescentar outros argumentos que demonstram cabalmente que o artigo 2.º da Lei se aplica a todos os impostos e não apenas ao imposto profissional e ao imposto complementar de rendimentos.
Antes de mais, seria muito estranha a aplicação da lei, em especial, ao imposto complementar de rendimentos quando a lei, quanto a este, se limita a revogar três normas.
Por outro lado, o intérprete tem de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil).
Ora, parece que seria desacertado ter consagrado que, no tocante ao imposto profissional e ao imposto complementar de rendimentos o acto recorrível contenciosamente fosse o do Chefe do Executivo, enquanto que nos restantes impostos continuasse a vigorar o regime da Lei n.º 15/96/M e das leis de impostos cedulares, em que o acto recorrido é do director dos Serviços de Finanças (com a excepção já vista da impugnação da matéria colectável).
Claro que o legislador pode aprovar o que lhe aprouver. Mas na dúvida sobre a sua intenção, há que presumir que é coerente e que consagrou as soluções mais acertadas.
Mas a prova cabal da intenção do legislador, afigura-se-nos residir no seguinte:
No n.º 2 do artigo 2.º, dispõe-se que o director dos Serviços de Finanças é a entidade competente para apreciar das reclamações de actos administrativos praticados no âmbito das competências referidas no número anterior, com excepção das que se refiram à impugnação da fixação da matéria colectável quando especialmente se preveja a reclamação para Comissões de Revisão, caso em que a competência se mantém nessas Comissões.
Ora, o legislador sabia perfeitamente que, nos termos do Regulamento do Imposto Profissional e do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos, a impugnação da fixação da matéria colectável se fazia perante as Comissões de Revisão (artigo 79.º Regulamento do Imposto Profissional, na redacção da Lei n.º 9/93/M, de 23 de Agosto e artigo 44.º do Regulamento do Imposto Complementar de Rendimentos, na redacção da Lei n.º 6/83/M, de 2 de Julho).
Por isso, se o artigo 2.º se referisse apenas ao imposto profissional e ao imposto complementar de rendimentos não fazia nenhum sentido dizer-se “quando especialmente se preveja a reclamação para Comissões de Revisão”, porque o legislador sabia que nestes impostos a impugnação da fixação da matéria colectável se fazia sempre para as comissões de revisão.
Mas a norma já faz todo o sentido se referir a todos os impostos, porque nem em todos existe impugnação da fixação da matéria colectável perante comissão de revisão. É o caso da contribuição industrial que não conhece esta comissão de revisão (Regulamento da Contribuição Industrial aprovado pela Lei n.º 15/77/M).
Eis a prova de que o artigo 2.º da Lei n.º 12/2003 se aplica a todos os impostos, revogou o artigo 5.º da Lei n.º 15/96/M e derrogou as normas das leis e regulamentos fiscais que previam o recurso contencioso dos actos do director dos Serviços de Finanças.
… … …”
1167/14-CF 12/12