打印全文
Processo nº 123/2014
(Revisão de Sentença do Exterior)

Data: 19/Março/2015

   
   Assuntos:
- Revisão de Sentença do Exterior

    
    SUMÁRIO :
    É de confirmar uma sentença homologatória de acordo de divórcio, proferida pelos Tribunais do Interior da China, relativa a um divórcio por mútuo consentimento, desde que se mostre a autenticidade e inteligibilidade da decisão revidenda, bem como da respectiva regulação do poder paternal e estabelecimento dos alimentos em relação à filha do casal, não se tratando de matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau e não se vendo em que tal confirmação possa ofender os princípios de ordem pública interna.

O Relator,


(João Gil de Oliveira)




Processo n.º 123/2014
(Revisão de Sentença do Exterior)

Data : 19/Março/2015

Requerente : A

Requerido : B

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    A, divorciada, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na XX街XX號XX大廈XX樓XX座, vem, ao abrigo do artigo 1200.º do Código de Processo Civil, intentar
ACÇÃO ESPECIAL
DE REVISÃO DE DECISÃO PROFERIDA POR TRIBUNAL DO EXTERIOR
    contra
    B, divorciado, de nacionalidade chinesa, ausente em parte incerta,
    o que faz com os seguintes termos e fundamentos:
1.º
    Por decisão judicial do Tribunal 廣東省中山市人民法院, de 1 de Agosto de 2007 (Doc. n.º 1), foi dissolvido, por mútuo consentimento, o casamento celebrado em 6 de Maio de 1988 entre a Requerente, titular do BIR de Macau n.º 1XXXXX1 (4) (Doc. n.º 2, por mera cópia), e o Requerido, titular do BIR de Macau n.º 1XXXXX7 (6) (Doc. n.º 3, por mera cópia).
2.º
    Nos termos do acordo de divórcio, ficou ainda estabelecido que a Requerente ficaria com o poder paternal sobre a filha menor do casal, C, titular do BIR de Macau n.º 1XXXXX4 (8) (Doc. n.º 4), devendo o Requerido pagar um total de RMB2,000.00 (dois mil remnbinbisi), a título de prestação de alimentos (cfr. Doc. n.º 1).
3.º
    Não existem dúvidas sobre a autenticidade do documento de que consta a sentença e tão pouco sobre a inteligibilidade da decisão, a qual é perfeitamente perceptível, cumprindo o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1200.º do CPC,
4.º
    A sentença supra identificada já transitou em julgado, cumprindo o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 1200.º do CPC,
5.º
    A sentença que se pretende rever na ordem jurídica da RAEM provém de tribunal cuja competência não foi provocada em fraude à lei e não versa sobre matéria da competência exclusiva dos tribunais da RAEM, cumprindo o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 1200.º do CPC,
6.º
    Contra a sentença, cuja revisão e confirmação ora se pretende, não podem ser invocadas as excepções de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta aos Tribunais da RAEM, cumprindo o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 1200.º do CPC.
7.º
    A Requerente e o Requerido resolveram divorciar-se por mútuo acordo perante o tribunal de origem e foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, cumprindo o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 1200.º do CPC.
8.º
    Mais ainda, a decisão judicial que decretou o divórcio mostra-se em inteira conformidade com os princípios de ordem pública de Macau, cumprindo o disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 1200.º do CPC.
9.º
    O presente pedido de revisão e confirmação da decisão judicial proferida pelo Tribunal廣東省中山市人民法院, da República Popular da China, visa a sua plena eficácia na ordem jurídica da Região Administrativa Especial de Macau.
10.º
    Assim, verificam-se todos os pressupostos para que a decisão judicial proferida pelo Tribunal廣東省中山市人民法院 da República Popular da China seja revista e confirmada, o que se requer, ao abrigo dos artigos 1119.° e seguintes do CPC.
11.º
    Finalmente, importa ainda referir que a Requerente não tem qualquer contacto com o Requerido desde 2009.
12.º
    Sendo certo que durante o mês de Dezembro de 2013, a Requerente foi contactada pela Polícia Judiciária de Macau e informada de uma investigação criminal na qual o Requerido era um dos suspeitos, tendo-lhe sido solicitado o paradeiro do Requerido.
13.º
    Contudo, dada a ausência de qualquer contacto desde 2009, a Requerente desconhece o paradeiro actual do Requerido.
APOIO JUDICIÁRIO
14.º
    A ora Requerente já fez prova da sua insuficiência económica ao solicitar apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, conforme se comprova pelo Doc. n.º 5 que, desde já, se junta para efeitos do artigo 31.º, n.º 1, da Lei n.º 13/2012.
15.º
    Porque a sua situação económica se mantém, nomeadamente o facto do montante dos bens disponíveis da Requerente e dos membros do seu agregado familiar não exceder os limites legais, não pode custear as despesas do presente pleito, pelo que requer, assim, que lhe seja concedido apoio judiciário consistente no não pagamento de preparos e de custas.
    Termos em que se requer seja a presente acção considerada procedente, por provada e, em consequência, seja decretada a revisão e confirmação da decisão judicial proferida pelo Tribunal廣東省中山市人民法院da República Popular da China, através da qual foi dissolvido o casamento celebrado em 6 de Maio de 1988 entre a Requerente e o Requerido.
    Mais se requer a V. Ex.s que, ao abrigo dos artigos 1201º e 190.º, n.º 3, do CPC, e tendo em conta o alegado nos artigos 11.º a 13.º da presente Petição Inicial, se digne ordenar a secretaria a diligenciar a obtenção de informação sobre o último paradeiro ou residência conhecida do Requerido B junto de quaisquer entidades ou serviços, após o que deverá ser ordenada a citação do Requerido através de éditos, seguindo-se os ulteriores termos até final.
    Finalmente, requer a V. Ex.s a dispensa do pagamento de preparos e de custas, por manifesta insuficiência económica.
    
    Foi editalmente citado o requerido que não deduziu qualquer oposição.
    
    O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.

Foram colhidos os vistos legais.

II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.

III - FACTOS
    
Vem certificada nos autos a decisão do Tribunal Popular da cidade de Zhongshan da República Popular da China que homologou a conciliação relativa ao divórcio do requerente e requerida nos seguintes termos:

“TRIBUNAL POPULAR DA CIDADE DE ZHONGSHAN DA
PROVÍNCIA DE GUANDONG DA RPC
ACORDO DE CONCILIAÇÃO CIVIL
Proc n.º 886 da série Zhongshi Civil de 1ª Instância (2007)
    Autor B, do sexo masculino, nascido em XX/XX/19XX, ora residente na Povoação de XX da Região Administrativa de XX da XX da Cidade de Zhongshan da RPC, portador do BIRM n.º 1XXXXX7(6).
    Ré A, do sexo feminino, nascida em XX/XX/19XX, cidadã de Macau, ora residente no apartamento n.º XX da XX da Rua XX n.º XX da Região de Sheqi da Cidade de Zhong Shan da RPC, portadora do BIRM n.º 1XXXXX1(4).
    Em 24/07/2007, o presente Tribunal abriu processo de divórcio litigioso, aceitando o pedido de divórcio apresentado pelo autor B contra a ré A. Em 01/08/007, conforme os termos legais, ora) Juiz XX realiza o julgamento em processo sumário. Na instância, o autor declara que contraiu matrimónio com a ré em 06/05/1998, em XX/XX/19XX deu à luz a filha C. Dado que ambos têm um carácter diferente, por isso, sempre viveram separados, isto é, vivem mais tempo separados do que juntos, entretanto, cada vez que se uniam, entravam em discussão, a relação de casal praticamente está quebrada. Face à situação, vem o autor requerer que julgue: a dissolução do casamento entre o autor e a ré.
    No decurso do julgamento, ambos chegaram o seguinte acordo:
    1. O autor B e a ré A aceitam o divórcio por mútuo consentimento.
    2. A filha de ambos C, fica sob cuidados da ré, o autor terá de pagar a título de prestação dos alimentos da filha no montante de RMB$2000.00, a partir de Agosto de 2007.
    3. Custas pelo autor na quantia de RMB$150.00.
    Ambas as partes concordam com o presente acordo de conciliação, que depois de assinado passa a produzir efeito legal.
    O presente Tribunal confirma que este acordo não violou as disposições legais.
O presente documento está conforme o original

O(A)Juiz XX
(carimbo) Tribunal Popular da Cidade de Zhongshan
01/08/2007
Escriturária Judicial
XX”
    
    IV - FUNDAMENTOS
O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pelo Tribunal Popular da cidade de Zhongshan da Província de Guangdong, da República Popular da China -, de forma a produzir eficácia na R.A.E.M., passa pela análise das seguintes questões:

1. Requisitos formais necessários para a confirmação;
2. Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
3. Compatibilidade com a ordem pública;
*
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”

    Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º2 do CPC.

A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.

    Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.

Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.

Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma conciliação civil perante o Tribunal Popular da cidade de Zhongshan, da República Popular da China, de 1 de Agosto de 2007, tendo sido decretado o divórcio entre requerente e requerida e homologação de um acordo de poder paternal, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento e demais obrigações impostas, como alimentos à filha -, sendo certo que é esta que deve relevar.2

Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
    
    “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
  
Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.

É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5

Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos.

2. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:

“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”

    Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio litigioso requerido apenas por um dos cônjuges, mas decretado mediante acordo de ambos.

   3. Da ordem pública.
Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6

E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.

    No caso em apreço, em que se pretende confirmar a sentença que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre a ora requerente e o seu marido, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública. Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, igualmente com fundamento na cessação dos laços e convivência conjugal, tal como se verifica no presente caso, seja por mera manifestação de vontade nesse sentido, preenchidos os respectivos requisitos, por parte de um dos cônjuges, como quando se comprove que houve violação dos deveres conjugais geradora da ruptura da relação matrimonial.

Também em relação ao que mais foi decidido, nomeadamente no que concerne à regulação do poder paternal, bem como aos alimentos à filha, tudo como do acordo resulta, nada fere as regras de confirmação do Exterior em relação ao ordenamento da RAEM.
O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.

V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão que decretou o divórcio e homologou o acordo de poder paternal e alimentos à filha do casal, proferida no Proc. n.º 886 da série Zhongshi Civil da 1ª Instância (2007), pelo Tribunal Popular da cidade de Zhongshan, República Popular da China, de 1 de Agosto de 2007, nos seus precisos termos, tal como consta dos documentos acima transcritos.
Custas pela requerente.
Macau, 19 de Março de 2015,

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
_________________________
Ho Wai Neng
_________________________
José Cândido de Pinho
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

123/2014 14/14