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Processo n.º 113/2014. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: A e B.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Enfiteuse. Domínio útil. Aforamento pelo Território de Macau. Artigo 7.º da Lei Básica.
Data do Acórdão: 15 de Abril de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
Para que uma acção, visando a declaração de aquisição, por usucapião, de domínio útil de imóvel, concedido por aforamento pelo Território de Macau, seja procedente, tem o autor, além do mais, de demonstrar, em obediência ao disposto no artigo 7.º da Lei Básica, que o domínio útil do prédio foi reconhecido, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, tendo, para tal, de alegar e provar os factos pertinentes.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos provados
A e mulher B intentaram acção declarativa com processo ordinário contra C, D, E, F, Ministério Púbico e interessados incertos, pedindo a declaração da aquisição da titularidade do domínio útil de dois imóveis sitos em Macau, com os n. os 2 e 6 da [Endereço (1)]1.
A acção foi julgada procedente2.
Em recurso interposto pelo Ministério Público, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 16 de Janeiro de 2014, revogou a sentença, absolvendo os réus do pedido, com o fundamento de que não se demonstra que o domínio útil seja pertença de privados.
Recorrem os autores para este Tribunal de Última Instância, suscitando as seguintes questões:
- A decisão do TSI, que revogou a sentença de 1.ª, que declarou a aquisição por parte dos autores do domínio útil do imóvel, por usucapião, assentou na convicção do TSI, de que não se demonstra que o domínio útil seja pertença de privados;
- Essa convicção foi suportada no documento de fls. 111, da Direcção dos Serviços de Finanças, segundo o qual não consta que o prédio dos autos seja foreiro à Fazenda da Região;
- Tal documento veio a ser declarado falso;
- Assim, deve ser confirmada a sentença de 1.ª Instância que declarou serem os autores titulares do domínio útil do imóvel.

II – Os factos
A sentença de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
De matéria dos factos assentes
A). As confrontações actuais dos prédios nºs 2 e 6 da [Endereço (1)] são as seguintes: a Norte com o [Endereço (2)], nºs 83-91, a Sul com a [Endereço (1)], a Leste com a [Endereço (3)] e a Oeste com o prédio n. ° 16 da [Endereço (1)].
B). Os prédios n.º 2, por um lado e nºs 4 e 6, por outro, da [Endereço (1)] encontram-se inscritos na matriz predial da freguesia de Nossa Senhora do Carmo, respectivamente, sob o nºs XXXXX e XXXXX, em nome dos 3° e 4° RR., E e F.
C). Com o valor matricial de MOP$2,160.00 e MOP$1,380.00, respectivamente, e encontram-se registados na Conservatória do Registo Predial sob os nº's XXXX do livro XXX e XXXX do livro X-XX.
D). Os prédios nºs 2, 4 e 6 da [Endereço (1)] não são foreiros à Fazenda da Região Administrativa Especial de Macau.
E). A Região Administrativa Especial de Macau é titular do domínio directo dos prédios nºs 2 e 6 da [Endereço (1)].
De base instrutória
1. O prédio com o n.º 2 e o prédio com os nºs 4 e 6 da [Endereço (1)] correspondem actualmente aos prédios n.º 2 e 6 da [Endereço (1)], respectivamente.
2. Os prédios têm uma área de construção no total de 48 m2 correspondente às parcelas "A+B" constante da planta emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro em 19/07/2005 no âmbito do processo XXXX/2005, conforme o documento a fls. 10 e 11, aqui se dá por reproduzido integralmente para todos efeitos legais.
3. Embora os prédios estejam registados junto da Repartição de Finanças em nome dos 3° e 4° RR., o certo é que se trata de um único imóvel construído em duas fracções anexadas.
4. Desde os anos de 70, os AA. passaram a estar na "posse" daquele imóvel, exercendo sobre o mesmo, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ininterruptamente, a condição de proprietários.
5. Desde aquela data e até hoje ninguém reclamou o bem em causa.
6. Fizeram no mesmo obras de manutenção e reparação que foram sendo necessárias.
7. Nunca pagaram rendas a quem quer que seja nem ninguém as exigiu ou reclamou.
8. A área com 4 m2 descoberta corresponde à Parcela "C" indicada na supra referida planta cadastral emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro em 19/07/2005 no âmbito do processo XXXX/2005, sendo pátio comum dos prédios n.º 83-91 do [Endereço (2)] e n.ºs 2 e 6 da [Endereço (1)].

III – O Direito
1. A questão a resolver
Trata-se de saber se o acórdão recorrido violou o artigo 7.º da Lei Básica, ao decidir que não se demonstra que o domínio útil dos prédios dos autos tenha sido reconhecido como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau.

2. Consequência da falsidade intelectual do documento de fls. 111. Eliminação da alínea D) dos factos assentes.
A sentença de 1.ª Instância declarou a aquisição, por parte dos autores, do domínio útil dos imóveis, com fundamento em usucapião. Para tal, por um lado, considerou que o disposto no artigo 7.º da Lei Básica não obstava à mencionada usucapião, visto que o domínio útil foi constituído em data anterior ao estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM); por outro lado, entendeu que se verificavam os pressupostos fácticos e jurídicos tendentes à mencionada aquisição por usucapião.
Recorreu o Ministério Público, invocando violação do disposto no artigo 7.º da Lei Básica, com fundamento em que não se provaram factos donde decorresse que sobre o domínio útil foi constituída uma propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM.
O TSI deu razão ao Ministério Público. Entendeu que não estando registado o domínio útil a favor de qualquer particular, presume-se que pertence à RAEM, nos termos do artigo 7.º da Lei Básica.
Após a prolação do acórdão recorrido, a pedido dos autores, o TSI declarou a falsidade (intelectual) do documento de fls. 111, documento este junto com a contestação do Ministério Público, que consiste num ofício da Direcção dos Serviços de Finanças, de 17.12.2007, segundo o qual nada consta que os prédios dos autos sejam foreiros à Fazenda da Região.
Este facto, constante do documento, foi levado à alínea D) dos factos assentes, por ser um documento autêntico.
Assim, atenta a declaração de falsidade do documento, foi ilidida a força probatória do mencionado documento, nos termos do artigo 366.º, n.º 1, do Código Civil, e para todos os efeitos, considera-se eliminada dos factos provados a mencionada alínea D).

3. Aquisição, por usucapião, do domínio útil, de cujo domínio directo seja titular a RAEM
A tese dos autores é esta: declarada a falsidade do documento de fls. 111, impõe-se que seja procedente o recurso, visto que a única razão por que o acórdão recorrido deu provimento ao recurso foi a existência do documento de fls. 111, da Direcção dos Serviços de Finanças, segundo o qual não consta que o prédio dos autos seja foreiro à Fazenda da Região.
Vejamos se é assim.
Logo no acórdão deste TUI, de 5 de Julho de 2006, no Processo n.º 32/2005, abrimos a possibilidade de o domínio útil, de cujo domínio directo seja titular, actualmente, a RAEM, ser adquirido por usucapião, se tiver sido reconhecido como propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM, em face do disposto no artigo 7.º da Lei Básica.
E, no acórdão de 16 de Janeiro de 2008, no Processo n.º 41/2007, complementando a pronúncia do acórdão antecedente, decidimos que o artigo 7.º da Lei Básica não obsta a que o domínio útil de terreno concedido por aforamento pelo Território de Macau a particulares, por escritura pública e registado na Conservatória do Registo Predial, possa ser adquirido por usucapião, ainda que o titular do domínio directo seja actualmente a Região Administrativa Especial de Macau.
Ora, mantendo-se a pertinência desta jurisprudência, para que uma acção, visando a declaração de aquisição, por usucapião, de domínio útil de imóvel, concedido por aforamento pelo Território de Macau, seja procedente, tem o autor de demonstrar que o domínio útil do prédio foi reconhecido, “… de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau….” (artigo 7.º da Lei Básica).
Ora, percorre-se a petição inicial e não se vislumbra que tenha sido articulado qualquer facto donde decorra que o domínio útil do prédio foi reconhecido, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da RAEM.
É certo que, não obstante a carência de factos da petição, foi levado aos factos assentes, por força de certidão do registo predial junta aos autos, que a RAEM é titular do domínio directo dos prédios dos autos, com base em escritura de 20 de Janeiro de 1894, da Repartição de Fazenda Provincial, sendo os foros de MOP$0,25 e MOP$0,29 (apresentações de 3 de Maio e 8 de Julho de 1898).
Bastará isto para demonstrar que o domínio útil dos prédios foi reconhecido, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da RAEM?
Não basta.
Não sabemos a quem o Território de Macau transferiu o domínio útil (artigo 1653.º do Código Civil de 1867), se o fez a um privado ou não. Recorde-se que as câmaras municipais e os entes públicos em geral podiam receber de emprazamento em determinado circunstancialismo (artigos 1669.º, 35.º e 37.º do mesmo Código).
Nada se alegou a este respeito.
Por razões que se desconhecem, não foi levada ao registo predial a inscrição de aquisição do domínio útil dos prédios em questão.
Também não consta dos autos a mencionada escritura de 20 de Janeiro de 1894, da Repartição de Fazenda Provincial ou uma certidão desta.
Sabemos apenas que foi constituída enfiteuse. Desconhece-se quem era, então, o titular do domínio útil.
Por outro lado, também se desconhece se a enfiteuse se mantém ou se foi, entretanto, extinta.
Deste modo, o documento junto a fls. 227 a 230, por iniciativa do Ex.mo Relator do TSI, consistindo em cópia do Livro de Registo de Foros X/XX, da Repartição de Finanças, dos quais constam como foreiros dos prédios G, H e I – que não se sabe quem são - nada adiantam. Os documentos servem para provar factos e sem se alegar factos, de nada servem. De qualquer modo, tratando-se de documentos sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, sempre estariam fora do poder de cognição deste TUI, que conhece apenas de matéria de direito e não de matéria de facto.
Em conclusão, não demonstraram os autores que o domínio útil dos prédios foi reconhecido, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da RAEM.
Improcede, assim, o recurso.

III – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 15 de Abril de 2015.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 O pedido não era exactamente este mas acabou nele transformado, depois de uma decisão do TSI, em recurso de despacho de indeferimento liminar da acção.
2 Houve uma pretensão improcedente, mas é irrelevante, já que os autores não recorreram.
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Processo n.º 113/2014

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