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Processo n.º 11/2015. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: A, B e C.
Recorrido: D.
Assunto: Encargos normais da vida familiar.
Data do Acórdão: 15 de Abril de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
Encargos normais da vida familiar são as dívidas do casal, normalmente de montante não elevado, não só relativas às despesas do governo doméstico, como também outras, como a renda de casa, despesas escolares dos filhos, transportes diários, intervenções cirúrgicas dos membros do agregado familiar, férias da família, tudo de acordo com o padrão de vida do casal, a sua situação económica e os usos.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima


ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, B e E intentaram acção declarativa com processo ordinário contra D e C, pedindo a condenação solidária dos réus na restituição aos autores da quantia de MOP$2.038.472,00, que alegaram lhes ter emprestado.
A sentença da Ex.ma Juíz-Presidente dos Juízos Cíveis decidiu:
1. Absolver o 1° Réu, D, e a 2a Ré, C, dos pedidos formulados pela 3a Autora, E;
2. Condenar o 1° Réu, D, e a 2a Ré, C, a pagar ao 1° Autor, A, nos termos definidos no artigo 1562°, c), do CC, as quantias de 307.546,00 dólares de Hong Kong, 28.375,00 francos suíços, 30.154,72 libras esterlinas e 800,00 euros, todas acrescidas de juros calculados à taxa legal, desde 5 de Maio de 2010, até integral e efectivo pagamento;
3. Condenar o 1° Réu, D, e a 2a Ré, C, a pagar à 2a Autora, B, nos termos definidos no artigo 1562°, c), do CC, a quantia de 164.765,70 patacas acrescida de juros calculados à taxa legal, desde 5 de Maio de 2010, até integral e efectivo pagamento;
4. Condenar a 2a Ré, C, a pagar ao 1 ° Autor, A, a quantia de 74.000,00 dólares de Hong Kong acrescida de juros calculados à taxa legal, desde 5 de Maio de 2010, até integral e efectivo pagamento;
5. Condenar a 2ª Ré, C, a pagar à 2ª. Autora, B, a quantia de 238.696,30 patacas acrescida de juros calculados à taxa legal, desde 5 de Maio de 2010, até integral e efectivo pagamento;
6. Absolver o 1º. Réu, D, e a 2ª Ré, C, dos restantes pedidos formulados pela 2ª. Autora, B.
Interposto recurso pelo 1.º réu D, decidiu o seguinte Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 31 de Julho de 2014:
1 – Julgar parcialmente provido o recurso e, por isso, revogar a sentença na parte em que, no ponto IV - 2 da decisão, tinha condenado o 1.º réu, juntamente com a 2.ª ré, no pagamento ao 1.º autor A da quantia de 307.546,00 dólares de Hong Kong, 28.375,00 francos suíços, 30.154,72 libras esterlinas e 800,00 euros;
1.1. - Em consequência, absolvem o 1º réu do pedido condenatório nos valores indicados em 1.
2 – Julgar parcialmente provido o recurso e, assim, revogar a sentença na parte em que, no ponto IV-3 da decisão, dentro da quantia global ali fixada de 164.765,70 patacas, o tinha condenado a pagar a quantia de 8.070,00 dólares de HK (8.312,10 patacas) e 1.812,10 patacas, no total de 10.132,10 patacas;
2.1 – Em consequência, absolver o 1.º réu do respectivo pedido de pagamento dessa quantia de 10.132,10 patacas.

3 – No mais, negam provimento ao recurso.

Recorrem, agora os autores A, B e a 2.ª ré C, para este Tribunal de Última Instância (TUI, pretendendo a confirmação total da sentença da 1.ª Instância, suscitando a seguinte questão:
- As quantias mutuadas à 2.ª ré, após separação do casal, para custear as despesas da educação das filhas no estrangeiro, Inglaterra e Suíça, constituem encargos normais da vida familiar, ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido.
Imputam, ainda, os autores ao acórdão recorrido a violação do disposto no artigo 629.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

II - Os Factos
Estão provados os seguintes factos:
Em 09/08/1989 os Réus casaram entre si tendo convencionado para regime de bens do casamento o regime de comunhão geral, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada em julgada em 15/03/2010 [alínea A) dos factos assentes].
Do casamento, o 1º R. e a 2a R., têm três filhas, F (nascida a XX de X 19XX), G (nascida a X de X de 19XX), e H (nascida a X de X 19XX) [alínea B) dos factos assentes].
Entre o ano de 2007 e Novembro de 2009, pelo menos, a filha dos rés, F estudou na Inglaterra, G estudou na Suíça e H estudou em Macau [alínea C) dos factos assentes].
Os AA. várias vezes interpelaram oralmente os Réus para que lhes pagassem as quantias que agora peticionam [alínea D) dos factos assentes].
Enviaram, em 17 de Novembro e em 11 de Dezembro de 2009, carta registada ao 1º R. e a 2a R. para exigir tal pagamento, mas não obtiveram qualquer resposta [alínea E) dos factos assentes].
A 2a Ré no dia 15 de Fevereiro de 2008, pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu 153.890,00 dólares de Hong Kong (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
No dia 29 de Setembro de 2008, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu o montante de 140.980,00 dólares de Hong Kong (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
No dia 12 de Janeiro de 2009, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu montante de 74.000,00 dólares de Hong Kong (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
No dia 5 de Junho de 2009, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu o montante de 3.300,00 francos suíços (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
A 15 de Junho de 2009, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu o montante de 10.000,00 libras esterlinas (resposta ao quesito da 5º da base instrutória),
No dia 23 de Junho de 2009, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu o montante de 800,00 euros (resposta ao quesito da 6º da base instrutória),
No dia 14 de Julho de 2009, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu o montante de 25.075,00 francos suíços (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
No dia 11 de Agosto do 2009, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu o montante de 7.500,00 libras esterlinas (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
No dia 11 de Agosto do 2009, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu o montante de 12.654,72 libras esterlinas (resposta ao quesito da 9º da base instrutória).
No dia 9 de Outubro de 2009, a 2a Ré pediu emprestado ao 1º Autor e dele recebeu o montante de 12.676,00 dólares de Hong Kong (resposta ao quesito da 10º da base instrutória).
No dia 16 de Janeiro de 2008, a 2a Ré pediu emprestado à 2a Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 15.000,00 patacas (resposta ao quesito da 15º da base instrutória).
No dia 3 de Março de 2008, a 2a Ré pediu emprestado à 2a Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 20.000,00 patacas (resposta ao quesito da 16º da base instrutória).
No dia 4 de Março de 2008, a 2a Ré pediu emprestado à 2a Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 80.000,00 patacas (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).
No dia 2 de Julho de 2008, a 2a Ré pediu emprestado à 2a Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 15.000,00 patacas (resposta ao quesito da 19º da base instrutória).
No dia 9 de Setembro de 2008, a 2a Ré pediu emprestado à 2a Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 50.000,00 patacas (resposta ao quesito da 20º da base instrutória).
No dia 28 de Novembro de 2008, a 2a Ré pediu emprestado à 2a Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 50.000,00 patacas (resposta ao quesito da 21º da base instrutória).
No dia 9 de Setembro de 2008, a 2a Ré pediu emprestado à 2a Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 50.000,00 patacas (resposta ao quesito da 22º da base instrutória).
No dia 26 de Março de 2009, a 2ª Ré pediu emprestado à 2ª Autora e dela recebeu por meio de cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 10.000,00 patacas (resposta ao quesito da 23º da base instrutória).
No dia 10 de Março de 2008, a 2ª Ré pediu emprestado à 2ª Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 15.000,00 patacas (resposta ao quesito da 24º da base instrutória).
No dia 26 de Março de 2008, a 2ª Ré pediu emprestado à 2ª Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 32.000,00 patacas e por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 23.000,00 patacas (resposta ao quesito da 25º da base instrutória).
No dia 5 de Maio de 2008, a 2ª Ré pediu emprestado à 2ª Autora e dela recebeu o valor de 16.480,00 patacas (resposta ao quesito da 26º da base instrutória).
No dia 23 de Junho de 2008, a 2ª Ré pediu emprestado à 2ª Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 19.982,00 patacas (resposta ao quesito da 27º da base instrutória).
No dia 26 de Junho de 2008, a 2ª Ré pediu emprestado à 2ª Autora e dela recebeu por meio do cheque n.º XXXXXX do [BANCO (1)], o valor de 7.000,00 patacas (resposta ao quesito da 28º da base instrutória).
Os empréstimos referidos nas respostas aos quesitos 1º, 2º, 4º a 10º foram contraídos pela 2ª Ré para pagar despesas de educação e lazer das suas filhas e dos empréstimos contraídos pelas 2ª Ré junto da 2ª Autora, 28.584,00 patacas foram utilizadas na educação da 3ª filha, 2.680,00 patacas e o correspondente a 6.930,00 dólares de Hong Kong na aquisição de passagens aéreas da 2a Ré, 1.820,00 patacas e o correspondente a 8.070,00 dólares de Hong Kong na aquisição de passagens aéreas da 1ª filha dos Réus, 102.723,00 patacas no arrendamento de casa onde passaram a viver a 2a Ré e as filhas dos Réus, 1.888,00 dólares de Hong Kong no pagamento do prémio de seguro da 1.ª filha dos Réus, 20.570,00 patacas no pagamento da despesas de condomínio da fracção autónoma pertencente aos Réus e 812,00 patacas foram utilizadas no pagamento da renda desta fracção autónoma e do parque de estacionamento pertencente aos Réus (resposta ao quesito da 36º da base instrutória).
A 2a Ré saiu da casa onde morava com o 1º Réu e com as filhas de ambos, levando consigo as filhas em data não posterior a Outubro de 2007 (resposta ao quesito da 37º da base instrutória).
Desde a data em que a 2a Ré saiu de casa com as filhas até ao divórcio, o 1º Réu e a 2a Ré mantiveram-se separados de facto, sem comunhão de mesa, habitação ou leito (resposta ao quesito da 38º da base instrutória).
Em conjunto, os salários dos Réus eram de MOP$80.000,00 a MOP$90.000,00 por mês (resposta ao quesito da 42º da base instrutória).

III – O Direito
1. A questão a resolver
Trata-se apenas de saber se constituem encargos normais da vida familiar do casal, formado pelos réus, as quantias mutuadas à 2.ª ré, após separação de facto do casal, para custear as despesas da educação das filhas no estrangeiro, Inglaterra e Suíça.
E ainda, marginalmente, se o acórdão recorrido violou do disposto no artigo 629.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

2. Matéria de facto
Como se sabe o TUI, em 3.º grau de jurisdição não tem poder de cognição de matéria de facto, nos termos do artigo 47.º, n.º 2, da Lei de Bases da Organização Judiciária. Não se conhece das várias questões atinentes a matéria de facto suscitadas pelos autores e 2.ª ré (se a filha mais velha começou a estudar no estrangeiro em 2004, se para estudar no Reino Unido e Suíça é necessário o consentimento de ambos os pais, se houve conhecimento e consentimento do 1.º réu às filhas estudarem no estrangeiro, se o réu faltou à verdade sobre a sua alegada falta de meios económicos, se os réus eram funcionários públicos, recebendo, assim, 14 salários por ano).

3. Alteração da matéria de facto provada.
Imputam os autores ao acórdão recorrido a violação do disposto no artigo 629.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, por alteração da matéria de facto, por ter considerado que a ré abandonou a casa de família e por ter mencionado que quando a ré saiu de casa passou a exercer sozinha o poder paternal.
Ao contrário do que alegaram os autores o acórdão recorrido não procedeu a qualquer alteração da matéria de facto. Interpretou o facto da resposta ao quesito 37.º da base instrutória: a 2.a Ré saiu da casa onde morava com o 1º Réu e com as filhas de ambos, levando consigo as filhas em data não posterior a Outubro de 2007.
Quanto ao exercício do poder paternal, o que o acórdão recorrido procedeu foi a uma interpretação do artigo 1761.º, n.º 1, do Código Civil, que dispõe que nos casos de divórcio, separação de facto ou anulação do casamento, o poder paternal é exercido pelo progenitor a quem o filho foi confiado. Errada ou não esta apreciação, designadamente por não se demonstrar que as menores estivessem confiadas à mãe, não se tratou de qualquer apreciação de facto.
De resto, quaisquer destas questões são irrelevantes para o que se debate nos recursos, em matéria de direito.
Improcedem as questões suscitadas quanto à eventual violação do disposto no artigo 629.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

4. Encargos normais da vida familiar
No regime legal das dívidas dos cônjuges, há dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges (artigo 1558.º do Código Civil), enquanto há outras que responsabilizam apenas um dos cônjuges (artigo 1559.º do Código Civil).
Responsabilizam ambos os cônjuges, antes de mais, as dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro [artigo 1558.º do Código Civil, n.º 1, alínea a)].
Responsabilizam, ainda, ambos os cônjuges as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração [artigo 1558.º do Código Civil, n.º 1, alínea c)].
São também da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens ou da participação nos adquiridos [artigo 1558.º do Código Civil, n.º 1, alínea d)].
Há outras dívidas da responsabilidade de ambos cônjuges, previstas na alínea e) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 1558.º do Código Civil.
Finalmente, são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar [artigo 1558.º do Código Civil, n.º 1, alínea b)], sendo esta a norma cuja aplicação está em causa nos presentes recursos.
Na verdade, as partes não divergem sobre o entendimento doutrinal do que constituam encargos normais da vida familiar. A dúvida está na aplicação da lei.
Ensinam F. PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA1, referindo aos mencionados encargos normais da vida familiar, que “Trata-se das dívidas pequenas, relativamente ao padrão de vida do casal, em geral correntes ou periódicas, que qualquer dos cônjuges tem de ser livre de contrair. É aqui que cabem as dívidas de alimentação, vestuário, médico e farmácia, etc. Normalmente são dívidas contraídas por um dos cônjuges no âmbito da parcela de administração dos bens afectos ao governo do lar que lhe caberá, e em proveito comum do casal; se for assim, já seriam de responsabilidade comum por força do art. 1691.º, n.º 1, al. c)2; mas a lei nem exige a prova dos pressupostos requeridos nesta alínea, porque presume que eles se verificam. Ou então trata-se de dívidas alheias à administração de bens, ou que não têm intenção de proveito comum, mas que se integram num quadro normal de despesas, como a dívida para pagamento de uma intervenção cirúrgica ou das férias de um filho.
Não interessa que as dívidas sejam contraídas antes ou depois do casamento, nem que o regime de bens seja um ou outro; a verdade é que se trata de encargos preparatórios do casamento ou derivados da vida familiar, a cuja responsabilidade nenhum cônjuge se pode eximir, ainda que não tenha contraído pessoalmente a dívida nem tenha consentido expressamente nela”.
Também ANTUNES VARELA3 se expressa no mesmo sentido:
“Entre os encargos normais da vida familiar cabem não só as despesas do governo doméstico (alimentação, vestuário, calçado, aquecimento da casa, artigos de limpeza, medicamentos, etc.), como outras que o transcendem (renda de casa, propinas escolares dos filhos, transportes diários para a escola ou o emprego, aquisição de gasolina para a viatura, etc.).
Estas dívidas serão, em regra, contraídas por cada cônjuge dentro dos poderes de administração que lhe competem no governo da casa. Mas ainda que sejam contraídas pelo cônjuge, que não tem o pelouro correspondente, gozam do mesmo tratamento. Assim poderá inclusivamente suceder com algumas das providências administrativas tomadas nas condições previstas pelo artigo 1679.º.4 Essencial para o efeito é que, não só pela sua natureza, mas também pelo seu valor, as dívidas caibam entre os encargos normais da vida familiar, tendo em conta o padrão de vida do casal. Este é o preciso alcance da expressão – «encargos normais» – intencionalmente usada na lei. Não se confundem os encargos da vida familiar com as dívidas contraídas em proveito comum do casal, porque há encargos normais da vida familiar que apenas se referem a um dos cônjuges (a blusa ou a saia comprada para a mulher; a gravata ou o aparelho de barbear adquirido para o marido) ou parentes deles; e outros há que respeitam somente aos filhos ou alguns deles”.
JORGE DUARTE PINHEIRO5 sintetiza que “ … o conceito de encargos da vida familiar abrange todas as necessidades dos cônjuges, filhos, outros parentes (ou afins) a cargo dos cônjuges, ditadas pelo padrão de vida do agregado familiar. Não é, pois, legítimo resumi-los às despesas do lar, embora estas constituam um bom exemplo.
A dívida deve ter sido contraída para ocorrer aos encargos normais da vida familiar. A normalidade é aferida pelo critério do valor. A dívida tem de ser pequena, relativamente ao padrão de vida do casal, podendo ser ou não corrente ou periódica. Desde modo, a aquisição de um automóvel, embora frequente, pode corresponder a um encargo da vida familiar, mas não a um encargo normal da vida familiar de um casal médio”.
CRISTINA M. ARAÚJO DIAS6 enfatiza que para que a dívida se considere encargo normal da vida familiar é essencial “… para o efeito é que, não só pela sua natureza, mas também pelo seu valor, as dívidas caibam entre os encargos normais da vida familiar, tendo em conta o padrão de vida do casal, estabelecido nos termos do art. 1671.º, n.º 2.7 Tratar-se-á de pequenas dívidas, correntes ou periódicas, como as dívidas de alimentação, vestuário, médicas e de farmácia, etc. Apesar de a lei não especificar em que consistem estes encargos da vida familiar, e cuja determinação depende de diversos factores (como as condições económicas, os usos, o padrão de vida habitual e próprio de cada casal) pode dizer-se que neles cabem todas as despesas inerentes à vida doméstica que, dentro do padrão de vida possibilitado pelos meios económicos à disposição dos cônjuges, correspondem aos hábitos da generalidade dos casais em iguais ou idênticas condições económicas e sociais”.
Temos, pois, que encargos normais da vida familiar são as dívidas do casal, normalmente de montante não elevado, não só relativas às despesas do governo doméstico, como também outras, como a renda de casa, despesas escolares dos filhos, transportes diários, intervenções cirúrgicas dos membros do agregado familiar, férias da família, tudo de acordo com o padrão de vida do casal, a sua situação económica e os usos.
Quando nos referimos a despesas escolares dos filhos queremos, evidentemente, significar as despesas normais e correntes em estabelecimento de ensino no local onde habita o casal, sem prejuízo de que, para casais de elevados rendimentos, mesmo as despesas escolares e estadia dos filhos no estrangeiro, em escolas de prestígio e com propinas de montante apreciável, se possam englobar no conceito de encargos normais da vida familiar.

5. O caso dos autos
Onde as partes divergem é na aplicação da lei aos factos, no caso, se as quantias que a ré pediu a outrem, para pagar as despesas da educação de duas das três filhas do casal no estrangeiro, Inglaterra e Suíça, quando os cônjuges estavam separados de facto, constituem encargos normais da vida familiar e, portanto, se o réu também é responsável pelas mesmas.
Está em causa um montante que ronda um milhão de patacas.
Não se provou consentimento do réu para tais dívidas. Se se tivesse provado, a dívida seria da responsabilidade de ambos, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 1558.º do Código Civil.
O casal tinha outra filha, que estudou em Macau, cujo pagamento dos estudos não está em causa nestes recursos.
Vejamos, agora, qual o padrão de vida do casal.
Sobre isto, sabemos relativamente pouco, apenas que, em conjunto, os salários dos Réus eram de MOP$80.000,00 a MOP$90.000,00 por mês.
Com base nestes rendimentos, podemos qualificar os réus como um casal da classe média.
Ora, para um casal da classe média, com estes rendimentos, as despesas com o estudo e estadia de dois filhos na Europa, são um encargo da vida familiar, mas não um encargo normal da vida familiar - para usar a distinção feita, atrás, por JORGE DUARTE PINHEIRO, a propósito da compra de um automóvel - de tal sorte que, contraída a dívida por um dos cônjuges, mas não pelo outro, e sem que se mostre ter havido o consentimento deste outro cônjuge, não pode responsabilizar este último.
A menos que os membros do casal já tivessem decidido tais despesas e que as filhas já tivessem iniciado o estudo no estrangeiro. Nestas circunstâncias, a dívida para continuação dos estudos, contraída por um dos cônjuges, já poderia constituir um encargo normal da vida familiar. Mas não se prova que isso tenha acontecido no caso dos autos.
Na verdade, para um casal com rendimentos médios entre MOP$80.000,00 a MOP$90.000,00 por mês, o montante de um milhão de patacas, dívida contraída e para ser utilizada em cerca de dois anos, não se pode considerar de pequeno valor. Representa uma parte considerável dos seus rendimentos, no mesmo período.
Logo, não constitui um encargo normal da vida familiar.
Não merece censura o acórdão recorrido.

III – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento aos recursos.
Custas pelos recorrentes.
Macau, 15 de Abril de 2015.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
     1 F. PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Volume I, Introdução, Direito Matrimonial, Coimbra Editora, 2008, 4.ª edição, p. 408 e 409.
     2 Refere-se ao Código Civil português.
     3 ANTUNES VARELA, Direito da Família, Volume I, Lisboa, Livraria Petrony, 1999, 5.ª edição, p. 399 e 400.
     4 Refere-se ao Código Civil português.
     5 JORGE DUARTE PINHEIRO, Direito da Família Contemporâneo, Lisboa, AAFDL, 2009, 2.ª edição, p. 591.

     6 CRISTINA M. ARAÚJO DIAS, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Coimbra Editora, 2009, p. 192, 193
     7 Refere-se ao Código Civil português. Suprimimos as notas de rodapé.
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