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Processo n.º 49/2014
Recurso Civil
Recorrente: A
Recorrida: B
Data da conferência: 15 de Abril de 2015
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Título executivo
- Cheque
- Documento particular
- Concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino (Lei n.º 5/2004)


SUMÁRIO

1. Mesmo no caso de ser apresentado a pagamento após o prazo de 8 dias, o cheque pode ser apresentado como título executivo nos termos da alínea c) do art.º 677.º do Código de Processo Civil.
2. Ao abrigo da al. c) do art.º 677.º do Código de Processo Civil, são considerados títulos executivos “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.
3. Para que um documento particular constitua título executivo, é necessário que esteja assinado pelo devedor e que tal documento importe constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético (art.º 689.º n.º 1 do Código de Processo Civil) ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto.
4. Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 3.º da Lei n.º 5/2004, estão habilitados a exercer a actividade de concessão de crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino na RAEM concessionárias, subconcessionárias e ainda “os promotores de jogos de fortuna ou azar em casino, …, mediante contrato a celebrar com uma concessionária ou subconcessionária”.
5. Da concessão de crédito exercida ao abrigo da Lei n.º 5/2004 emergem obrigações civis (art.º 4.º da mesma Lei).
6. Para que possam exercer a actividade de concessão de crédito, os promotores de jogo de fortuna ou azar devem celebrar contratos com uma concessionária ou subconcessionária, contratos estes que estão sujeitos às formalidades e tramitações previstas no art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 5/2004.
  
A Relatora,
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:


1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, deduziu no Tribunal Judicial de Base embargos à execução contra si intentada pela B, pedindo que sejam julgados procedentes os embargos, sendo em consequência declarada extinta a execução embargada.
Por sentença proferida em 16 de Março de 2012, o Tribunal julgou procedentes os embargos e, em consequência, declarou extinta a execução intentada pela embargada B contra o embargante A.
Inconformada com a decisão, recorreu a embargada B para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu “revogar a sentença recorrida, julgando improcedentes os embargos à execução e determinando a prossecução da execução caso nenhum outro obstáculo o impeça”.
Deste Acórdão vem agora o embargante A recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
A - O Recorrente não se pode conformar com o Acórdão recorrido, que declarou improcedentes os embargos à execução, entendendo que o mesmo padece de nulidade e também de violação de lei substantiva e de lei do processo.
B - Com todo o respeito, não entende o Recorrente como pôde o Tribunal de Segunda Instância chegar à conclusão, sem mais, que o cheque objecto dos presentes autos reúne as condições para ser considerado título executivo à luz do disposto no artigo 677.º, al. c) do C.P.C.
C - Atendendo às questões em causa nos autos, devidamente suscitadas logo aquando da apresentação da petição inicial de embargos e, no entender do Recorrente, devidamente equacionadas e dilucidadas na sentença proferida pelo Tribunal de lª Instância, não entende o Recorrente qual o pressuposto e as razões pelas quais o Tribunal a quo considerou o cheque objecto dos autos como título executivo válido enquanto documento particular.
D - O cheque à semelhança dos escritos particulares como o “marker”, por exemplo, só é título executivo se importar a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias.
E - Cabia à ora Recorrida alegar no requerimento de execução que a obrigação de restituição da quantia mutuada foi constituída ou já se encontrava constituída no momento da entrega do cheque. Ao contrário, porém, a Recorrida alegou no requerimento de execução que o cheque foi entregue ao embargante para garantia do reembolso do seu crédito e não para reembolso do mesmo.
F - No caso, tal como resulta da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, é inescapável o facto de nada constar da matéria provada acerca do momento em que foi entregue a quantia; se a quantia foi entregue antes, na mesma altura ou depois da emissão e entrega do cheque.
G - Sendo que a própria Recorrida confessa no artigo 8.º da petição da acção executiva que o cheque foi entregue como garantia.
H - Contrariamente ao que singelamente se concluiu no Acórdão recorrido, o facto de existir um negócio subjacente – a concessão de um crédito – é totalmente indiferente e não responde à questão fundamental – desde o início suscitada, reitera-se – de saber como o cheque pode importar ou não a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação.
I - Da fundamentação do Acórdão recorrido apenas se retira que existe um cheque e uma relação subjacente, elementos que nada dizem sobre os requisitos de validade do cheque à luz do art. 677.º, al. c) do C.P.C..
J - Pelo que, nos termos do art. 571.º, n.º 1, al. b) do C.P.C., padece o Acórdão recorrido de nulidade, por não ter justificado os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de ter considerado o cheque título executivo válido à luz do art. 677.º, al. c) do C.P.C..
K - O que é necessário, antes de mais, para que o cheque seja admitido como título executivo é que o mesmo importe a constituição ou o reconhecimento de obrigações existentes.
L - O cheque em causa não importa a constituição ou o reconhecimento de obrigações existentes pelo que não pode, desde logo, valer como título executivo, nos termos do art. 677.º, al. c) do C.P.C., consagrando, portanto, o Acórdão recorrido uma decisão que viola o referido normativo.
M - O Tribunal a quo entendeu que os factos Assentes sob as alíneas F) a I) nunca deviam ter sido levados à especificação do saneador stricto senso, com base no alegado no artigo 6.º da petição de execução, bem como na certidão de fls. 98 dos autos.
N - Tal conclusão do Tribunal a quo, no entender do Recorrente, é incorrecta, não atentou nas exigências de prova que decorrem da Lei n.º 5/2004, de 14 de Junho de 2004, fazendo tal análise, como se impõe e impunha, por referência à data da concessão do empréstimo.
O - Quanto à desconsideração de tais factos da alínea F) a I) como assentes em virtude do alegado pela Recorrida no artigo 6.º da petição de execução, de referir apenas que tal argumento não é válido, tendo em conta que tal facto foi desde logo dado como Assente na alínea A) dos factos assentes.
P - O Tribunal a quo limitou-se a concluir que a Recorrida está habilitada a conceder crédito, sem atender às datas e às exigências de prova que, no caso, manifestamente recaiam e recaiem sobre a mesma, assentando o Acórdão recorrido numa sobrevalorização do documento de fls. 98 dos autos – a certidão da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos.
Q - Com efeito, a certidão emitida em 30.08.2011 pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos foi impugnada pelo Recorrente e não tem a virtualidade de impor quaisquer alterações aos factos que o Tribunal de lª Instância deu como assentes.
R - Desde logo, resulta do documento de fls. 98 que: “A presente certidão destina-se exclusivamente para instrução do processo n.º CV1-09-0096-CEO-A, do 1.º Juízo Cível, a correr termos no Tribunal Judicial de Base”, não se destinando, portanto, a fazer prova nos presentes autos.
S - Com efeito, de tal certidão não se pode retirar que, à data da concessão do empréstimo, a recorrida era titular da licença de promotor de jogo e, muito menos que, na referida data, tivesse celebrado contrato com a concessionária ou subconcessionária que a habilitasse a conceder crédito.
T - Repare-se que, nos termos do documento de fls. 98, resulta que apenas no dia 28.03.2008 – precisamente a data aposta no cheque que serviu de base à execução – terá sido concedida à recorrente a Licença de Promotor de Jogo – Pessoa Colectiva n.º EXXX.
U - Ora, o que o embargante e ora Recorrente alegou nos artigos 24.º a 28.º da petição inicial de embargos foi precisamente que, à data da concessão do empréstimo, não se verificavam os requisitos previstos no artigo 8.º da Lei n.º 5/2004, de 14 de Junho de 2004.
V - Ou seja, é altamente improvável que no próprio dia em que lhe foi concedida a licença de promotor de jogo – 28.03.2008 – a ora Recorrida já estivesse habilitada a conceder crédito, nos termos do Lei n.º 5/2004 (regime jurídico da concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino), cumprindo os pressupostos e formalidades aí mencionadas.
X - Sem esquecer o facto, expressamente alegado pelo ora Recorrente nos artigos 21.º a 23.º da petição inicial de embargos, de o empréstimo ter sido concedido pela Embargada e aqui Recorrida muitos meses antes da data aposta no cheque – 28 de Março de 2008.
Z - A fim de contrariar tais factos, no mínimo, a Recorrida estava obrigada a juntar cópia da licença que lhe foi concedida, bem como cópia de um dos exemplares do contrato celebrado com a concessionária ou subconcessionária, donde se pudesse retirar o cumprimento dos pressupostos e formalidades impostas pelo art. 8.º da Lei n.º 5/2004, com menção da data em que foi celebrado, bem como comprovativo do envio de um dos respectivos exemplares pela concessionária ou subconcessionária à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos.
AA - Pelo exposto, a Recorrida não logrou demonstrar que, aquando da concessão do crédito ao Embargante e ora Recorrente, a mesma já estava habilitada a conceder crédito ao abrigo do disposto na Lei n.º 5/2004 (regime jurídico da concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino).
BB - Pelo que, devem manter-se como assentes os factos as D), F), G), H) e I), os quais de forma alguma foram contrariados pela Recorrida, concluindo-se, assim, no sentido da nulidade substancial do negócio subjacente.
CC - Pelo exposto, violou o Acórdão recorrido o disposto nos art.ºs 571.º, n.º 1, al. b) e o art.º 677.º, al. c) do Código de Processo Civil, o disposto nos art.ºs 3.º, n.º 2, 4.º e 8.º da Lei n.º 5/2004 (regime jurídico da concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino), bem como o art.º 273.º, n.º 1 do Código Civil.

Não contra-alegou a embargada B.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos Provados
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- A exequente é uma sociedade comercial que se dedica ao exercício da actividade de concessão de crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino na Região Administrativa Especial de Macau (alínea A) dos factos assentes).
- É portadora e tomadora dum cheque dado à execução, datado de 28 de Março de 2008, no montante de HKD$30.000.000,00 (Trinta milhões de dólares de Hong Kong), sacado pelo executado (alínea B) dos factos assentes).
- O cheque foi entregue à exequente para garantia de reembolso de um crédito de HKD$30.000.000,00 que foi concedido ao executado “para jogo ou aposta em casino” (alínea C) dos factos assentes).
- A exequente/embargada, enquanto promotora de jogos de fortuna ou azar em casino não celebrou qualquer acordo com uma concessionária ou subconcessionária de jogo em casino para o efeito de conceder empréstimos para o jogo (alínea D) dos factos assentes).
- Nem foi formalizado em 3 exemplares originais (alínea F) dos factos assentes).
- Nem as assinaturas dos contraentes foram objecto de reconhecimento notarial presencial (alínea G) dos factos assentes).
- Nem as minutas respectivas tiveram aprovação do Governo (alínea H) dos factos assentes).
- Nem um dos respectivos exemplares foi enviado pela concessionária ou subconcessionária à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos no prazo de 15 dias a contar da data da sua celebração (alínea I) dos factos assentes).
**
Base Instrutória:
- O executado/embargante recebeu de exequente/embargada HK$30.000.000,00 em fichas de jogo, quantia correspondente a todo o crédito que lhe foi concedido pela exequente/embargada (resposta aos quesito da 1º da base instrutória).

3. Direito
Na óptica do embargante, ora recorrente A, o Acórdão recorrido padece de “nulidade (nomeadamente, por falta de especificação de fundamentos de facto e de direito)” e também de violação de lei substantiva e de lei do processo.
Na realidade, coloca o recorrente as questões relativas à falta de título executivo e à nulidade substantiva do negócio subjacente.

3.1. Da nulidade do Acórdão
Antes de mais, é de salientar que não tem razão o recorrente ao imputar o vício de nulidade do Acórdão por falta de especificação de fundamentos de facto e de direito, o que decorre duma simples leitura da decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância, em que consta não só o elenco dos factos dados como assentes pelo Tribunal de 1.ª instância, através da transcrição integral da sentença deste Tribunal, entendendo-se ainda que a matéria de facto especificada nas al.s F) a I) do saneador stricto senso nunca deveria ter sido considerada não controvertida, antes pelo contrário deveria ter sido dada como não provada, mas também a fundamentação jurídica, com a apreciação das questões suscitadas que constituem o objecto do recurso, que são a violação do princípio dispositivo, a interpretação do art.º 677.º, al. c) do Código de Processo Civil e a impugnação da matéria de facto (cfr. fls. 19 a 28 verso do Acórdão recorrido).
Com a imputação do vício em causa, não passa o recorrente de manifestar a sua discordância com as considerações e o entendimento expostos pelo Tribunal de Segunda Instância, o que não conduz, evidentemente, à nulidade do Acórdão recorrido, invocada pelo recorrente nos termos do art.º 571.º n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, que exige a especificação na sentença dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Não se verifica a nulidade alegada pelo recorrente.

3.2. Da falta de título executivo
Quanto à falta de título executivo, a sentença de 1.ª instância entendeu que inexistia título, à luz do disposto na al. c) do art.º 677.º do Código de Processo Civil, pois o cheque em causa, entregue à exequente (embargada) para garantia de reembolso do crédito que foi concedido ao executado (embargante) para jogo ou aposta em casino, não importa a constituição nem o reconhecimento de qualquer obrigação, uma vez que, face à falta de qualquer dado quanto ao momento em que a quantia mutuada foi entregue ao embargante, não se podia dizer que a obrigação de restituir foi constituída ou estava já constituída no momento da entrega do cheque.
Pelo contrário, o Acórdão ora recorrido afirmou que o cheque em causa “é um título executivo válido”.
Tudo está em saber se o cheque traduz a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária.

Nos termos da al. c) do art.º 677.º do Código de Processo Civil, são considerados títulos executivos “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.
Daí decorre que, para que um documento particular constitua título executivo, é necessário que esteja assinado pelo devedor.
Quanto ao requisito de fundo, a lei exige que os documentos particulares devem importar constituição ou reconhecimento (no caso de dívida anterior, por exemplo) de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético (art.º 689.º n.º 1 do Código de Processo Civil) ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto.

Relativamente ao cheque – informa LEBRE DE FREITAS1 – alguma jurisprudência portuguesa (minoritária), após a revisão do Código Civil de 95/96, negou a exequibilidade àquele título de crédito, com o argumento de que ele constitui apenas uma ordem de pagamento, mas não a constituição ou reconhecimento de obrigação. Mas tal posição não tem merecido o apoio generalizado da jurisprudência e da doutrina já que, como menciona aquele autor, o preenchimento do cheque “ou a entrega ao portador tem implícita a constituição ou o reconhecimento duma dívida, a satisfazer através da cobrança dum direito de crédito (cedido), contra a instituição bancária”.
Ainda quanto ao cheque, o STJ de Portugal continua a considerar, após a revisão de 95/96, que, para que constitua título executivo, tem de ser apresentado a pagamento no prazo de 8 dias, a que se refere o art.º 29.º da respectiva Lei Uniforme, por se tratar de um requisito de exequibilidade2.
Contudo, nada obsta a que, mesmo após o referido prazo de 8 dias, o cheque possa ser apresentado como título executivo nos termos da alínea c) do art.º 677.º do Código de Processo Civil (documento particular, assinado pelo devedor que importe constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária).
Tem sido suscitada a questão de saber se, estando prescrita a obrigação cartular constante de letra, livrança ou cheque3, ou tendo este cheque sido apresentado a pagamento após o prazo de 8 dias, poderá o título de crédito ser invocado como título executivo, nos termos da alínea c) do art.º 677.º.
Tem-se entendido que quando o título de crédito mencione a obrigação subjacente não há qualquer razão para não o aceitar como título executivo, não se justificando “nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente”.
Quando do título de crédito não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, LEBRE DE FREITAS4 distingue consoante a obrigação resulte ou não de um negócio formal. “No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221-1 CC e 223-1 CC5). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida (art. 458-1 CC6) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada na petição executiva e poder ser impugnada pelo executado; mas, se o exequente não a invocar, ainda que a título subsidiário, no requerimento executivo, não será possível fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (art. 2727), por tal implicar alteração da causa de pedir”8.

No caso dos autos, a exequente invocou no requerimento inicial que o cheque em causa foi entregue para garantia de empréstimo, que não foi pago.
A tese da sentença de l.ª instância, apoiada pelo recorrente/embargante/executado, é a de que não se provou o momento da entrega da quantia mutuada e só se se tivesse provado que o fora antes ou no momento da emissão do cheque é que se podia dizer que o cheque traduzia a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária, pelo que o cheque não reúne os requisitos previstos no art.º 677.º al. c) do CPC por não importar a constituição nem o reconhecimento de qualquer obrigação.
Mas sem razão. A alínea c) dos factos assentes diz: “O cheque foi entregue à exequente para garantia de reembolso de um crédito de HKD$30.000.000,00 que foi concedido ao executado para jogo ou aposta em casino”.
Logo, quando o cheque foi emitido e entregue já tinha sido mutuada a referida quantia: ele foi entregue à exequente para garantia de reembolso de um crédito de HKD$30.000.000,00, que foi concedido ao executado/embargante/ora recorrente.
Assim, afigura-se-nos que o cheque entregue à exequente/embargada/recorrido importou o reconhecimento de obrigação pecuniária, sendo portanto título executivo nos termos da al. c) do art.º 677.º do Código de Processo Civil.
Improcede assim o argumento do recorrente quanto à falta de título executivo.

3.3. Da nulidade substantiva do negócio subjacente
Na óptica do recorrente, a recorrida não logrou demonstrar que, aquando da concessão do crédito ao embargante ora recorrente, a mesma já estava habilitada a conceder crédito ao abrigo do disposto na Lei n.º 5/2004 (Regime jurídico da concessão de crédito para jogo ou para aposta em casino) e deve manter-se como assente os factos D), F), G), H) e I), concluindo-se, assim, no sentido da nulidade substantiva do negócio subjacente.

Quanto a concedentes de crédito e nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 3.º da Lei n.º 5/2004, estão habilitados a exercer a actividade de concessão de crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino na RAEM concessionárias, subconcessionárias e ainda “os promotores de jogos de fortuna ou azar em casino, …, mediante contrato a celebrar com uma concessionária ou subconcessionária”.
E da concessão de crédito exercida ao abrigo da Lei n.º 5/2004 emergem obrigações civis (art.º 4.º da mesma Lei).
Por seu turno e quanto a contratos, o art.º 8.º da Lei n.º 5/2004 prevê o seguinte:
Artigo 8.º
Contratos
1. Os contratos referidos no n.º 2 do artigo 3.º e no n.º 3 do artigo 5.º estão sujeitos a forma escrita e são celebrados em 3 exemplares originais, sendo as assinaturas objecto de reconhecimento notarial presencial.
2. As minutas dos contratos, dos seus documentos complementares e de quaisquer alterações a esses instrumentos estão sujeitas a aprovação do Governo, o qual pode determinar a alteração de qualquer cláusula das referidas minutas por razões de legalidade ou de interesse público.
3. Um dos exemplares dos contratos, bem como cópia de todos os seus documentos complementares, é enviado pela concessionária ou subconcessionária à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, adiante designada por DICJ, no prazo de 15 dias a contar da data da sua celebração.
4. Deve ainda ser enviada pela concessionária ou subconcessionária à DICJ qualquer alteração aos contratos ou aos seus documentos complementares, no prazo de 15 dias.
5. Os documentos complementares referidos nos n.os 3 e 4 devem ser acompanhados de uma declaração subscrita por representante legal da concessionária ou subconcessionária que a obrigue, com assinatura e qualidade reconhecidas notarialmente, nos termos da qual este declara, sob compromisso de honra, a correcção, actualidade e veracidade dos dados e informações neles constantes, bem como que os mesmos são cópia dos originais.
6. Os contratos devem conter, obrigatoriamente, cláusulas relativas à obrigação, assumida pelas partes, de renúncia a foro especial e submissão à lei vigente na Região Administrativa Especial de Macau e, no caso do contrato referido no n.º 3 do artigo 5.º, cláusulas relativas à renúncia à utilização de substitutos ou ao recurso a subagentes, conforme o caso.
7. São nulas as cláusulas dos contratos, dos seus documentos complementares, bem como das respectivas alterações que sejam desconformes com as respectivas minutas aprovadas pelo Governo.

Daí decorre que, para que possam exercer a actividade de concessão de crédito, os promotores de jogo de fortuna ou azar devem celebrar contratos com uma concessionária ou subconcessionária, contratos estes que estão sujeitos a forma escrita e são celebrados em 3 exemplares originais, sendo as assinaturas objecto de reconhecimento notarial presencial (art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 5/2004).
As minutas dos contratos, dos seus documentos complementares e de quaisquer alterações a esses instrumentos estão sujeitas a aprovação do Governo (art.º 8.º n.º 2 da mesma Lei).
Um dos exemplares dos contratos, bem como cópia de todos os seus documentos complementares, é enviado pela concessionária ou subconcessionária à Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, no prazo de 15 dias a contar da data da sua celebração (art.º 8.º n.º 3 da mesma Lei).

No caso vertente, a exequente ora recorrida alegou no artigo 6.º do seu requerimento inicial da acção executiva que ela “é uma sociedade comercial que se dedica ao exercício da actividade de concessão de crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino na Região Administrativa Especial de Macau, actividade essa regulada pela Lei n.º 5/2004, de 14 de Junho (cfr. documento 2)”.
E foi junta, como documento n.º 2, uma certidão da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, emitida em 15 de Janeiro de 2010, com o seguinte teor:
CERTIDÃO
Para efeitos de produção de prova no processo n.º CV1-09-0096-CEO-A, que corre os seus termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base da Região Administrativa Especial de Macau, vimos pela presente certificar os seguintes factos:
1. A sociedade comercial B, com sede social na [Endereço], é titular da licença de promotor de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino na Região Administrativa Especial de Macau melhor identificada sob o n.º EXXX.
2. Que a Sociedade B, está habilitada a exercer a actividade de concessão de crédito junto da concessionária C, ao abrigo de um contrato de habilitação para conceder crédito celebrado com esta concessionária nos termos do artigo 3.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2004, de 14 de Junho de 2004, e este contrato cumpre com os requisitos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 8.º da retro aludida Lei.
A presente certidão apenas pode ser utilizada para o fim acima identificado.
Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, aos 15 de Janeiro de 2010.
O Director,
Manuel Joaquim das Neves
Resulta expressamente da certidão acima transcrita que a exequente é titular de licença de promotor de jogo de fortuna ou azar em casino da RAEM, estando habilitada a exercer a actividade de concessão de crédito junto da concessionária C, ao abrigo de um contrato celebrado com esta concessionária nos termos do artigo 3.º n.º 2 da Lei n.º 5/2004, que cumpre os requisitos previstos nos n.ºs 1 a 3 do art.º 8.º da mesma Lei.
Ficam assim feitas a alegação e a demonstração dos requisitos atrás mencionados (contrato celebrado com uma concessionária ou subconcessionária, por escrito, com 3 exemplares originais e as assinaturas objecto de reconhecimento notarial presencial, aprovação do Governo, etc.).
O recorrente/embargante/executado negou estes factos na petição de embargos, alegando que, à data da concessão do empréstimo em causa, nenhum dos requisitos mencionados n.ºs 1 a 3 do art.º 8.º da Lei n.º 5/2004 se encontrava cumprido.
Pese embora a não contestação dos embargos, a referida alegação constante do requerimento inicial da acção executiva traduzia a oposição antecipada destes factos, pelo que os factos não poderiam ter sido dados como assentes, mas antes serem levados à base instrutória, nos termos da norma expressa do n.º 3 do artigo 700.º do Código de Processo Civil, segunda o qual não se consideram reconhecidos os factos que estiverem em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento inicial de execução, não obstante a aplicação à falta de contestação dos embargos do disposto no n.º 1 do art.º 405.º do mesmo diploma que manda considerar reconhecidos os factos articulados9.
Assim, os factos das alíneas D), F), G), H) e I) eram controvertidos.
Os factos positivos atinentes (existência de contrato escrito, com 3 exemplares originais, sendo as assinaturas objecto de reconhecimento notarial presencial) só podiam ser provados com a exibição do contrato ou com certidão do mesmo. O mesmo se diga da aprovação governamental.
Mas já os factos negativos – os relevantes de acordo com as regras do ónus da prova – não. Em nenhum lado se diz que tais factos só podem ser provados com certidão da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos.
Nota-se ainda que com o requerimento de 21 de Setembro de 2011, a embargada ora recorrida apresentou uma certidão emitida pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos em 30 de Agosto de 2011, atestando que, entre 28 de Março de 2008 a 13 de Agosto de 2009 e entre 14 de Agosto de 2009 a 12 de Fevereiro de 2010, aquela sociedade era titular da Licença de promotor de Jogos e estava habilitada a exercer a actividade de concessão de crédito para jogo ou aposta em casino, tendo celebrado com a C, subconcessionária da exploração de jogos de fortuna ou azar, um contrato de autorização para a concessão de crédito, que cumpriu os requisitos referidos nos n.ºs 1 a 3 do art.º 8.º da Lei n.º 5/2004, sendo um dos exemplares entregue no prazo de 15 dias a contar da data da sua celebração (cfr. fls. 98 dos autos).
Tal documento foi admitido nos termos do despacho judicial constante de fls. 116 a 117 dos autos, tendo em consideração a hipótese de vir a ser apreciada no recurso a interpor da decisão final.
Ora, afigura-se que, com base nas aludidas certidões da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, cuja autenticidade não foi posta em causa, o Tribunal se Segunda Instância poderia ter dado os factos acima mencionados como não provados, nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 629.º do Código de Processo Civil10.
Compulsados os autos, é de concluir pela falta de prova dos factos alegados pelo embargante ora recorrente; antes ficou demonstrado que à data posta no cheque em causa, 28 de Março de 2008, a exequente/embargada/recorrida era titular da licença de promotor de jogos de fortuna ou azar em casino na RAEM, estando habilitada a exercer a actividade de concessão de crédito, ao abrigo do contrato legalmente celebrado, com cumprimento dos requisitos previstos n.ºs 1 a 3 do art.º 8.º da Lei n.º 5/2004.
E nada impede a concessão do empréstimo em causa no mesmo dia 28 de Março de 2008.
Improcede assim a questão suscitada quanto à nulidade do negócio subjacente.
É de julgar improcedente o recurso.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.

                Macau, 15 de Abril de 2015
                
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
  
1 J. LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4.a ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 59.
2 Acórdão de 4-5-99, BMJ 487-240. Contra, PAULO OLAVO CUNHA, Cheque e Convenção de Cheque, Coimbra, Almedina, 2009, p. 230 e segs., para quem o cheque não perde a qualidade de título executivo, ainda que o portador não disponha de acção cambiária, por não ter sido apresentado a pagamento no prazo de 8 dias.
3 Importa recordar que a prescrição não é de conhecimento oficioso, tendo de ser invocada pelo interessado a quem aproveita ou pelo seu representante (art.º 296.º do Código Civil de Macau).
4 J. LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4.a ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 62.
5 Corresponde aos art.ºs 213.° n.º 1 e 215.° n.º 1 do Código Civil de Macau.
6 Corresponde ao art.º 452.° n.º 1 do Código Civil de Macau.
7 Corresponde ao art.º 217.° do Código de Processo Civil de Macau.
8 Neste sentido, os Acórdãos do STJ, de 29.1.2002 e de 30.1.2001, CJSTJ X-I-64 e IX-I-85.
Contra, PAULO OLAVO CUNHA, Cheque ... p. 246 e segs., que defende que o cheque não pode ser utilizado como título executivo por não ser cambiariamente válido, tendo o portador de recorrer à acção declarativa para demonstrar o seu direito à quantia pretendida.
9 Como escreveu ALBERTO DOS REIS, a propósito de caso paralelo, o “autor não carece de repetir na réplica o que já alegou na petição; a matéria desta subsiste, na medida em que não for rectificada ou alterada pela réplica. Portanto, se o facto do réu briga claramente com a matéria de facto da petição e o autor não modificou esta matéria na réplica, o facto não pode considerar-se admitido por acordo.
10 Cfr. J. LEBRE DE FREITAS e A. RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume 3.º, p. 96.
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Processo n.º 49/2014