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Processo n.º 33/2015. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorridos: B, C e D.
Assunto: Causa prejudicial. Questão incidental. Usucapião. Acção de despejo. Recurso. Questões prejudicadas. Aplicação da regra da substituição ao tribunal recorrido no TUI. Artigo 630.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Data do Acórdão: 17 de Junho de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 223.º do Código de Processo Civil, a decisão de uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para decisão de outro pleito.
II – Pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal.
III – A acção visando a declaração de usucapião do direito de propriedade do domínio útil de imóvel é prejudicial relativamente à acção de despejo do mesmo imóvel, proposta contra o autor daquela acção.
IV - Se o Tribunal de Segunda Instância não tiver conhecido de certas questões, por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o Tribunal de Última Instância se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece oficiosamente no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários, nos termos do disposto no artigo 630.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do estatuído no artigo 652.º do mesmo diploma legal.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos provados
B, C e D, intentaram contra A a presente acção de despejo dos prédios com os n. os 65 e 67 da [Endereo (1)] e com os n.os 13, 15 e 17 do [Endereo (2)], todos em Macau, no dia 28 de Setembro de 2012.
A ré da presente acção, A, intentou, em 5 de Novembro de 2012 - após ter sido citada na presente acção de despejo – uma acção declarativa comum (CV3-12-0087-CAO) contra, entre outros, os autores desta acção de despejo, B, C e D, pedindo a declaração da aquisição da propriedade do domínio útil de 85,276% dos prédios com os n. os 65, 65-A e 67 da [Endereo (1)] e com os n.os 13, 15 e 17 do [Endereo (2)], todos em Macau, com fundamento em usucapião.
Por despacho de 10 de Outubro de 2013, a Ex.ma Juíza desta acção de despejo (1.º Juízo Cível) decretou a suspensão da instância até à decisão final da acção declarativa (CV3-12-0087-CAO), por entender ser esta acção prejudicial relativamente à acção de despejo.
Recorreram os autores B, C e D para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), que, por Acórdão de 11 de Dezembro de 2014, concedeu provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido.
Recorre, agora, para este Tribunal de Última Instância (TUI) a ré A, defendendo que o despacho da Ex.ma Juíza que decretou a suspensão da instância até à decisão final da acção declarativa, devia ter sido mantido, por ser prejudicial a acção com vista à aquisição do domínio útil com fundamento em usucapião, relativamente à acção de despejo.
Na sua alegação os autores B, C e D requereram, a título subsidiário, a ampliação do recurso, nos termos do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, alegando terem decaído nos seguintes fundamentos do recurso para o TSI:
- Inexistência de relação de dependência ou prejudicialidade entre as causas;
- Falta de fundamento da pretensão de usucapião;
- A acção declarativa foi intentada apenas com fins dilatórios desta acção de despejo.

II – O Direito
1. As questões a resolver
Trata-se de saber se a acção declarativa comum, com vista à declaração da aquisição da propriedade do domínio útil de 85,276% dos prédios em causa, prejudica a acção de despejo proposta contra os autores daquela acção e, portanto, se a acção de despejo deve ser suspensa até à decisão final da acção declarativa.
No caso de o recurso dever proceder, há que conhecer das questões consideradas prejudicadas no acórdão recorrido, nos termos do artigo 630.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do estatuído no artigo 652.º do mesmo diploma e, eventualmente, das suscitadas pelos ora recorridos, nos termos do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, atrás mencionadas.

2. Causa prejudicial
A suspensão da instância foi ordenada com fundamento na primeira parte do n.º 1 do artigo 223.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe:
“O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.1
No nosso Acórdão de 25 de Julho de 2012, no Processo n.º 49/2012, reflectimos o seguinte a propósito do conceito de causa prejudicial:
«ALBERTO DOS REIS2fazia uma interpretação declarativa restrita de norma do Código de 1939, semelhante à citada. Para o ilustre Professor “Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda.
Exemplos característicos: acção de anulação de casamento e acção de divórcio, acção de anulação de arrendamento e acção de despejo. O divórcio pressupõe um casamento válido; por isso, estando pendentes duas acções, uma destinada a anular determinado matrimónio, outra destinada a dissolvê-lo pelo divórcio, aquela é prejudicial em relação esta, porque, uma vez anulado o casamento, o pedido de divórcio já não tem razão de ser, já não tem suporte legal.
Sucede o mesmo quando à anulação de arrendamento e ao despejo. O pedido de despejo pressupõe um arrendamento válido; portanto este pedido perde a sua razão de ser, desde que o arrendamento seja anulado. A procedência da acção de anulação do arrendamento prejudica o conhecimento da acção de despejo”.
Não se pondo em dívida que uma causa é prejudicial quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda, como são os casos dos exemplos apontados, parece que se deve estender a noção de dependência a casos em que a resolução da questão na causa prejudicial modifica ou afecta de alguma maneira a causa dependente, mesmo que esta segunda causa não se extinga por via da decisão da primeira.
É o que entende RODRIGUES BASTOS3 ao dizer “Quando deve entender-se que a decisão de uma causa depende do julgamento de outra? Quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para decisão de outro pleito”.
Também CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA4 opinam no mesmo sentido: “De um modo geral, pode dizer-se que existe entre duas causas uma relação ou nexo de dependência quando a decisão de uma delas depende do julgamento da outra, ou pode ser por ele decisivamente influenciada; ou por outras palavras, verifica-se uma relação de dependência quando a decisão de uma acção (a dependente) é atacada ou afectada pela decisão emitida noutra (a prejudicial); ou ainda, quando na causa prejudicial se discutir questão cuja decisão pode destruir o fundamento ou razão de ser da causa dependente/subordinada”».
Por outro lado, a propósito de entendimento de MANUEL ANDRADE, nas Lições de Processo Civil de 1944, escreveu ALBERTO DOS REIS5:
“Segundo o Prof. Andrade, verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é reprodução, pura e simples, da primeira. Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos. Assim pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal.
Estamos de acordo.
Há efectivamente casos em que a questão pendente na causa prejudicial não pode discutir-se na causa subordinada; há outros em que pode discutir-se nesta, mas somente a título incidental. Na primeira hipótese o nexo de prejudicialidade é mais forte, na segunda, mais frouxo; na primeira há uma dependência necessária, na segunda, uma dependência meramente facultativa ou de pura conveniência.
Exemplos da primeira modalidade: acção de anulação de casamento e acção de divórcio ou de separação, acção de anulação de testamento e acção de petição de herança proposta pelo herdeiro testamentário.
Exemplos da segunda modalidade: acção de anulação de contrato e acção a exigir o cumprimento dele; acção de dívida e acção pauliana proposta pelo autor daquela”.
  
  3. O caso dos autos
Bem vistas as coisas, o caso dos autos integra-se na segunda modalidade mencionada atrás, com muitas semelhanças com o primeiro exemplo desta modalidade. A questão da aquisição da propriedade dos imóveis, causa de pedir da acção de usucapião, foi alegada pela ré da acção de despejo a título incidental.
Decidida a acção declarativa comum, se esta for procedente, fica sem razão de ser a acção de despejo. Logo, é causa prejudicial para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 223.º do Código de Processo Civil.
Já a acção de despejo não tem implicações na acção de usucapião, ao contrário do que se entendeu no acórdão recorrido, seja procedente ou improcedente. Na verdade, os factos provados na acção de despejo não se impõem como caso julgado na acção declarativa. A autoridade do caso julgado não se estende aos fundamentos de facto.

4. Conhecimento das questões prejudicadas no acórdão recorrido
Se o Tribunal de Segunda Instância não tiver conhecido de certas questões, por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o Tribunal de Última Instância se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece oficiosamente no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários, nos termos do disposto no artigo 630.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do estatuído no artigo 652.º do mesmo diploma legal.
Vejamos. Entendiam os recorrentes no recurso para o TSI, ora recorridos, que a decisão de 1.ª instância violou o previsto no artigo 223.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Dispõe o n.º 2 do artigo 223.º do Código de Processo Civil, “Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as suas vantagens”.
Alegaram os recorrentes no recurso para o TSI, ora recorridos, que a acção de usucapião é manifestamente infundada e foi intentada com intuitos meramente dilatórios e que a presente acção está muito mais adiantada do que a de usucapião.
Ora, face ao conteúdo da petição inicial da acção declarativa, cuja certidão foi junta aos autos, não temos nenhuma razão para dizer que tal causa não tem nenhumas possibilidades de êxito. Juridicamente parece ser viável. E nada mais temos que aferir neste momento. Quanto aos factos alegados, fundamento de tal acção, só o julgamento da matéria de facto permitirá concluir da procedência ou não. Um juiz nunca pode fazer um juízo de probabilidade de prova dos factos, antes de os meios de prova serem produzidos, o que ainda não aconteceu.
Também não há indícios seguros de que tal acção foi intentada com intuitos meramente dilatórios.
É certo que foi intentada após a autora, ré nesta acção de despejo, ter sido citada nesta última acção.
  Mas daí não decorre que visou apenas suspender a acção de despejo. Bem pode ter acontecido que a ré não tenha sentido necessidade de propor anteriormente acção de usucapião, por a sua posse dos imóveis não ter ainda sido posta em causa, judicialmente.
Também não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as suas vantagens.
Mas a causa dependente, a acção de despejo, não está assim tão adiantada, findaram os articulados e ainda não foi elaborado despacho saneador e base instrutória, pelo que não se verifica o condicionalismo aqui previsto.
Procede, assim, o recurso.
  
5. Ampliação do recurso a requerimento dos recorridos
Na sua alegação os autores B, C e D requereram, a título subsidiário, a ampliação do recurso, nos termos do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, alegando terem decaído nos seguintes fundamentos do recurso para o TSI:
- Inexistência de relação de dependência ou prejudicialidade entre as causas;
- Falta de fundamento da pretensão de usucapião;
- A acção declarativa foi intentada apenas com fins dilatórios desta acção de despejo.
Mas não foi assim. Os então recorrentes não decaíram nos fundamentos do recurso para o TSI. As questões não foram apreciadas, por terem sido consideradas prejudicadas face à decisão tomada.
Por isso, este acórdão, oficiosamente, já delas conheceu, nos n. os 3 e 4 deste acórdão.
Indefere-se o requerido.

6. Nota final
A situação preferível seria que as duas causas fossem julgadas conjuntamente, não só porque haverá factos que serão comuns às duas acções, havendo conveniência em serem julgados na mesma ocasião, pelos mesmos juízes, como também porque a decisão final proferida ao mesmo tempo permitiria evidentes benefícios.
Não cabe aqui decidir se a apensação de acções seria legal e muito menos conveniente (a não ser que o estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a apensação), apenas se fazendo notar que parece que não seria obstáculo considerar que a acção declarativa podia ter sido feito valer como reconvenção da acção de despejo, já que o pedido emergiria da defesa da ré [artigos 218.º, n.º 2, alínea a) e 219.º, n.º 1, do Código de Processo Civil], pois se deve entender que a reconvenção pode ser intentada contra quem não é autor da acção, desde que este seja também demandado. O obstáculo das diversas formas de processo seriam facilmente ultrapassáveis pelos poderes de adequação do juiz, até porque a presente acção de despejo já segue os termos do processo ordinário, face à reconvenção deduzida (artigos 218.º, n.º 3 e 930.º, n. os 1 e 3, do Código de Processo Civil).
Afigura-se que a decisão deste recurso não obsta a que se conheça da questão da apensação, se esta for requerida por quem tem legitimidade, pois se trata de questão superveniente, que fará caducar a decisão de suspensão da instância, se for decidida positivamente.

III – Decisão
Face ao expendido,
A) Concede-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido para ficar a valer a decisão de 1.ª instância;
B) Indefere-se a ampliação do recurso, nos termos do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Custas pelos ora recorridos nas duas instâncias de recurso.
Macau, 17 de Junho de 2015.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 Negrito nosso.
     2 J. ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 1946, III vol., p. 206.

     3 RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Lisboa, 2000, vol. II, 3.ª ed., p. 43.
     4CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA, Código de Processo Civil de Macau Anotado e Comentado, Macau, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2008, Vol. II, p. 81.
     5 J. ALBERTO DOS REIS, Comentário…, III vol., p. 269.

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