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Processo n.º 478/2015 Data do acórdão: 2015-6-18 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– objecto probando do processo
– contestação escrita
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– insuficiência da prova
– julgamento da matéria de facto
S U M Á R I O
1. À falta de contestação escrita, todo o objecto probando que fosse desfavorável ao arguido já se encontrou delimitado pela factualidade acusada, e como essa factualidade ficou depois tida como totalmente provada no texto do acórdão condenatório ora recorrido, esse aresto nunca pode padecer do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, vício esse que é distinto da questão de insuficiência da prova.
2. O resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo tribunal a quo deve ser mantido intocado, quando esse resultado não se mostra patentemente desrazoável à luz das regras da experiência da vida humana no quotidiano, ou violador de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou ainda de quaisquer legis artis.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 478/2015
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão proferido em 13 de Março de 2015 a fls. 896 a 910v do Processo Comum Colectivo n.º CR2-14-0185-PCC do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material de um crime consumado de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 14.º da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto (doravante tida como Lei de droga), na pena de dois meses de prisão, como autor material de um crime consumado de reentrada ilegal, p. e p. pelo art.º 21.º da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de três meses de prisão, e como co-autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, da Lei de droga, na pena de seis anos e seis meses de prisão, de um crime consumado de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.º 15.º da Lei de droga, na pena de dois meses de prisão, de três crimes consumados de acolhimento (simples), p. e p. pelo art.º 15.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, na pena de quatro meses de prisão por cada, e de um crime consumado de acolhimento (com obtenção de vantagem patrimonial), p. e p. pelo art.º 15.º, n.º 2, da Lei n.º 6/2004, na pena de dois anos e três meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas penas parcelares todas, finalmente na pena única de sete anos e nove meses de prisão, veio o 1.º arguido A, aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a absolvição dos crimes de tráfico ilícito de estupefacientes e de detenção indevida de utensílio, tendo para o efeito alegado, em essência, o seguinte (na sua motivação apresentada a fls. 975 a 996 dos presentes autos correspondentes):
–tendo o Tribunal recorrido valorado como factos meras conclusões, a matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido é claramente insuficiente para fundamentar a decisão condenatória desses dois crimes, o que representa o vício previsto no art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP);
– na verdade, o recorrente negou peremptoriamente que alguma vez tivesse vendido substâncias estupefacientes ou tivesse a intenção de as vender, sendo certo que nunca se chegou a demonstrar de quem eram e para o que se destinavam as substâncias estupefacientes encontradas no quarto do recorrente e da outra arguida chamada B, como também não foi apurada a identidade do proprietário ou detentor da utensilagem em causa, para além de não se ter distinguido a quantidade de substâncias destinadas ao consumo próprio, da quantidade destinada à venda, distinção essa que seria indispensável para a eventual qualificação jurídico-penal dos factos em sede do tipo legal de tráfico de menor gravidade previsto no art.º 11.º da Lei de droga;
– e subsidiariamente falando, tendo sido condenado por crime de consumo ilícito de estupefacientes, não poderia o recorrente ter sido condenado, ao mesmo tempo, por crime de detenção indevida de utensílio, por existir entre esses dois crimes uma relação de concurso aparente.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 1004 a 1008v) no sentido de não provimento do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 1077 a 1079), pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos com pertinência à solução do recurso:
1. Segundo o teor do aresto ora recorrido, todos os arguidos do mesmo processo penal não chegaram a apresentar contestação escrita dos factos imputados no despacho de pronúncia, e todos os factos aí imputados já ficaram descritos como provados nesse aresto.
2. Dá-se por aqui reproduzida toda a factualidade já descrita como provada nas páginas 11 a 20 do texto do aresto recorrido (concretamente, a fls. 901 a 905v dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, é de notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O 1.º arguido ora recorrente começou por assacar o vício referido na alínea a) do n.º 2 do art.º 400.º do CPP à ora recorrida decisão condenatória dos crimes de tráfico ilícito de estupefacientes e de detenção indevida de utensílio.
Entretanto, para o presente Tribunal ad quem, em vão, porquanto à falta de apresentação de contestação escrita, todo o objecto probando que fosse desfavorável à pessoa arguida já se encontrou delimitado pela factualidade imputada no despacho de pronúncia, e como essa mesma factualidade pronunciada já ficou depois tida como totalmente provada no texto do acórdão ora posto em crise, esse aresto nunca pode padecer do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Aliás, vê-se que o recorrente focou muito a questão de insuficiência da prova, a qual é distinta do vício aludido na alínea a) do n.º 2 do art.º 400.º do CPP.
Mas, mesmo assim, a razão também não está no lado do recorrente, uma vez que aos olhos do presente Tribunal de recurso, o Tribunal recorrido não estava a condenar o recorrente pela prática dos crimes de tráfico de estupefacientes e de detenção indevida de utensílio com meras conclusões, mas sim com factos provados propriamente ditos.
Na verdade, quanto ao crime de tráfico do art.º 8.º, n.º 1, da Lei de droga, basta atender aos factos provados n.os 11, 15, 17 e 19 (em que ficaram já descritas, de entre as outras coisas, quais as quantidades concretas de quais as substâncias estupefacientes apreendidas nos autos), por um lado, e, por outro, aos factos provados n.os 12 e 20, para ficar rebatida material e congruentemente a tese absolutória do recorrente, mormente na parte respeitante à subsidiariamente defendida aplicação do tipo legal de tráfico de menor gravidade em detrimento do de tráfico de estupefacientes (é que o facto provado n.º 12 diz que a substância estupefaciente encontrada pelo pessoal da Polícia Judiciária na mão direita do recorrente foi destinada à venda em conjunto com os 2.º e 4.º arguidos, enquanto o facto provado n.º 20 diz que todas as substâncias estupefacientes descobertas na fracção autónoma dos autos foram destinadas pelo recorrente e pelos 2.º e 4.º arguidos, na sua grande parte, à venda ou fornecimento a outrem, e que uma parte das mesmas era para ser consumida por esses três arguidos, com a agravante de que mesmo olhando para todas as substâncias estupefacientes encontradas na fracção autónoma dos autos, a metade da quantidade das mesmas ultrapassa o quíntuplo das respectivas quantidades constantes do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à Lei de droga).
E agora no tocante ao crime de detenção indevida de utensílio, o facto provado n.º 21, conjugado com a descrição detalhada de quais os utensílios em questão nos factos provados n.os 14 e 15, também constitui matéria de facto provada concreta para suportar a existência do crime de detenção indevida, sendo certo que no caso dos autos, e atenta a redacção da norma incriminadora do art.o 15.o da Lei de droga, este delito deve ser punido autonomamente do crime de consumo ilícito de estupefaciente.
No fundo, está o recorrente a manifestar a sua discordância do resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal a quo, resultado de julgamento esse que deve ser mantido intocado, posto que para o presente Tribunal ad quem, esse resultado não se mostra patentemente desrazoável à luz das regras da experiência da vida humana no quotidiano, ou violador de quaisquer normas jurídicas sobre o valor legal da prova, ou ainda de quaisquer legis artis.
É, pois, de confirmar a decisão recorrida, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas pelo arguido recorrente, com oito UC de taxa de justiça e três mil e oitocentas patacas de honoários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Macau, 18 de Junho de 2015.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)

(Vencido na parte respeitante ao consumo efectiva dos crimes do consumo e detenção de utensilagem p. e p. pelos 14º e 15º da Lei 17/2009, que deve ser aparente, razão pela que devia absolver o arguido recorrente do crime do artigo 15º da Lei 17/2009.)



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