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Processo nº 148/2015
(Autos de recurso civil)

Data: 18/Junho/2015

Assunto: Livre apreciação da prova
Documento autêntico
Força probatória plena

SUMÁRIO
- Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
- Refere-se na alínea b) do nº 1 do artigo 629º do Código de Processo Civil que “a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, entre outros fundamentos, se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas”.
- Não obstante o registo comercial ser um documento autêntico, mas o facto de saber se os recorridos tinham ou não conhecimento prévio da existência de um processo de inventário, para se apurar se já havia caducado o direito à anulação da partilha, mais não seja do que um facto exterior que não ocorreu no próprio acto de registo, daí que não sendo abrangido pela força probatória do tal documento autêntico, não se pode considerar plenamente provado, antes pelo contrário está sujeito à livre apreciação do Tribunal.


O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 148/2015
(Autos de recurso civil)

Data: 18/Junho/2015

Recorrentes:
- A e B (herdeiras habilitadas de C), D, E, F e G (Réus)

Recorridos:
- H, I e J (Autores)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A e B (herdeiras habilitadas de C), D, E, F e G, Réus na acção de processo ordinário que corre termos no Tribunal Judicial de Base da RAEM, inconformados com a sentença final que julgou procedente o pedido formulado pelos Autores H, I e J, e que anulou a partilha judicial realizada nos autos de inventário CV1-91-0006-CIV homologada por sentença de 12.11.1991, bem como a inscrição nº 12401 sob a apresentação 7/14021992 efectuada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis relativamente à Sociedade matriculada sob o nº 1562 (SO), inscrição nº 112535 sob a apresentação 53/10021992 efectuada na Conservatória do Registo Predial relativamente à fracção autónoma “A2” do prédio descrito sob o nº 11013 e fracção autónoma “AAR/C” do prédio descrito sob o nº 8381, dela interpuseram o presente recurso ordinário, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
1. Nos termos da lei, mormente do estatuído no n.º 1 do artigo 280º do Código Civil (doravante “CC”), a acção que pretendeu anular a partilha, prevista no n.º 1 do artigo 1026º do CPC, deveria ter sido intentada dentro do ano seguinte à cessação do vício que lhe serviu de fundamento, ou seja, dentro do ano seguinte ao conhecimento que os Autores tiveram da preterição de K nos autos de inventário n.º CV1-91-0006-CIV.
2. Os aqui Recorrentes consideram que os Autores tiveram conhecimento da aludida preterição de K, ou do vício que enfermou a partilha, muito antes do ano que antecedeu a propositura da acção de anulação, mais considerando que há factos incorrectamente julgados, porquanto constam do processo os correctos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto relativamente a esta matéria.
3. Desde logo, a prova do facto de os Recorridos terem tido conhecimento da existência da aqui anulada partilha teria de resultar daqueloutro facto da divisão dos bens constar das inscrições nos competentes registos comercial e predial, desde 10 de Fevereiro de 1992, com menção da causa (sucessão hereditária – partilha), conforme resulta da prova carreada para os presentes autos.
4. Atente-se que foi o próprio Autor J (Pai dos restantes Autores), enquanto cabeça-de-casal no processo de inventário da sua esposa K, quem juntou, a esse inventário obrigatório n.º 11/92, a certidão do registo comercial da sociedade XX, na qual consta a existência daqueloutro inventário aqui em crise, bem como a repartição da quota social de L por 3 dos Réus (vide o documento junto pelos aqui Recorrentes, por requerimento, em 22 de Maio de 2014).
5. Também se refira que os restantes Autores, menores ao tempo do inventário por morte de sua mãe, estavam, neste inventário, devidamente representados, tendo, os seus representantes, tido cabal conhecimento da certidão do registo comercial da sociedade XX junta pelo seu Pai e aqui Recorrido J, e, em consequência, cabal conhecimento da partilha realizada em 1992, por morte de L.
6. O douto Tribunal a quo dá como provado (página 10ª do Acórdão que julga a matéria de facto) que o Autor J (viúvo da K e pai dos restantes Autores) juntou, em 1992, a certidão do registo comercial da sociedade XX ao processo de inventário de K, mais considerando provado que desta certidão resulta que já se havia procedido à transmissão da quota que pertencia a L, indicando-se o respectivo inventário, sendo este o tal inventário que o mesmo Autor que juntou a certidão comercial alega só ter tido conhecimento em 17 de Junho de 2011, quando da prova julgada e produzida resulta que teve conhecimento deste em 1992, aquando da junção, por si, da referida certidão do registo comercial, da qual já constava referência ao inventário em questão.
7. No entanto, e de seguida, o douto Tribunal a quo desvaloriza tal prova, com o fundamento de que “a certidão é manuscrita e redigida em português, estando as inscrições em vigor juntas com outras que foram traçadas”, fundamentos estes que não se podem aceitar.
8. O douto Tribunal a quo nunca poderia responder da forma como respondeu aos quesitos 11º, 12º e 13º, uma vez que, quer pelas inscrições constantes do registo predial desde Fevereiro de 1992, quer pelo conhecimento de J da realização da partilha aqui anulada, resultante da sua menção na certidão do registo comercial da sociedade XX, a qual juntou, em 1992, ao processo de inventário de K, resulta provado que, pelo menos J, teve conhecimento da realização da partilha em 1992.
9. Desta forma, os aqui Recorrentes cumprem com o ónus que sobre si recai de identificar os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo, que impunham decisão diversa.
10. Não é verdade que os aqui Recorrentes não tenham feito prova de tal conhecimento por parte dos Autores como anterior a 9 de Junho de 2011, tal como erradamente considera a sentença recorrida a fls. 588.
11. Nestes termos, a resposta aos quesitos 11º, 12º e 13º deverá ser alterada, julgando-se tais quesitos, respectivamente, como “Não provado”, “Não provado” e “Provado”, seguindo-se novo julgamento em conformidade, decidindo-se, a final, pela caducidade do direito à anulação da partilha.
12. No tocante à reapreciação da matéria de facto, este Venerando Tribunal Recursório tem entendido, transcrevendo-se parte do Acórdão proferido no processo n.º 50/2013, de 18 de Julho de 2013, que: “Ora, é certo que o princípio da livre apreciação da prova (art. 558º do CPC) não surge na lei processual como um dogma que confere total liberdade ao julgador, uma vez que o tribunal não pode alhear-se de critérios específicos que o obrigam a caminhar em direcção determinada, de que é exemplo a inversão do ónus de prova em certos casos, a prova legal por confissão, por documentos autênticos, por presunção legal, etc. Mas, por outro lado, também é certo que a convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Portanto, se a prova só é “livre” até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao trabalho do julgador, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser feita.”
13. Mesmo que o douto Tribunal a quo tenha ficado com outra convicção, em virtude do testemunho prestado pela 3ª testemunha, a qual, saliente-se, é esposa do 1º Autor, tal eventual relevância, que não se concede, nunca poderá suplantar a prova que é produzida através de documento autêntico, como o é a certidão do registo comercial, nos termos do previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 629º do CPC, assim como na linha do entendimento da jurisprudência deste Venerando Tribunal.
14. Em consequência, há uma errónea subsunção da factualidade ao direito aplicável, mormente às disposições constantes dos artigos 280º do CC e 1026º do CPC, que agora se requer modificada.
Concluem, pedindo que se conceda provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida.
*
Devidamente notificados, os recorridos apresentaram resposta, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
1. O acórdão a quo de 25 SET 2014 foi adequadamente prolatado, isto tanto quanto à consideração da matéria de facto como ao respectivo enquadramento jurídico, razão pela qual é de manter por inteiro a decisão por sua via decretada.
2. Dos elementos documentais a que aludem os recorrentes nas suas alegações de recurso, nada resulta ou se pode extrair em abono das teses pelas quais pugnam, ou seja, do conhecimento efectivo, positivo e real por parte dos autores (um, dois deles ou mesmo todos) de a partilha ter sido feita em 1992 e que a mesma se fez com preterição da sua mãe e esposa.
3. A anulação da partilha só pode ser decretada no caso de preterição ou de falta de intervenção de herdeiro, isto é, de não indicação do mesmo pelo cabeça-de-casal ou da sua não intervenção quando tiver adquirido essa qualidade posteriormente às declarações daquele.
4. Os Réus não conseguiram nos autos que os Autores tiveram o conhecimento directo que houve a preterição de K, filha e herdeira legítima do falecido L, no inventário a quando das declarações da cabeça-de-casal.
5. Só com o conhecimento efectivo do processo judicial é que é possível verificar que a cabeça-de-casal não indicou no inventário todos os herdeiros do falecido L.
6. Resultou da prova documental e da sua corroboração por testemunhas ouvidas nos autos que os recorridos só souberam da preterição da sua mãe e esposa relativamente à divisão dos bens do seu avô e sogro, feita à sua revelia logo em 1991, em Junho de 2011, na sequência da intervenção dos seus advogados.
7. Para efeitos de contar o início de qualquer prazo de caducidade é necessário apurar o conhecimento efectivo, crítico e concreto do momento em que se torna certo que determinada preterição de um determinado herdeiro legitimário foi feita intencionalmente ou por negligência grave.
8. A alusão ao referido inventário nada demonstra ou contraria relativamente ao sempre alegado pelos recorridos de que só adquiriram conhecimento da preterição da sua mãe em meados de Junho de 2011, na sequência da intervenção e investigações feitas pelos seus advogados.
9. No que respeita a alteração da matéria de facto requerida pelos recorrentes só se pode dizer que está votada ao insucesso devido ao facto dos documentos em questão, apesar de serem autênticos, não fazerem prova plena, nem directa ou indirecta, à matéria factual dos quesitos 11º, 12º e 13º da base instrutória.
10. Dos documentos não se retira literalmente nada no que respeita a qualquer tipo de inventário por falecimento de L e não tendo os recorrente pedido qualquer renovação da prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, não resta, senão pugnar pelo indeferimento do pedido de alteração da matéria de facto dada como provada no julgamento visto que não existe qualquer fundamento legal para tal ser feito.
11. Não existem, pois, quaisquer motivos ou fundamentos quer de facto ou de direito que importassem decisão diversa da que foi adoptada pelo Tribunal a quo, claramente não se podendo vislumbrar que tais elementos que derrogassem o sentido decisório da mesma se possam encontrar nas alegações de recurso a que aqui se responde.
Concluem, pugnando pela negação de provimento ao recurso e confirmação da sentença recorrida na íntegra.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Realizada a audiência e discussão de julgamento, a sentença deu por assente a seguinte factualidade:
K nasceu em 06 de Maio de 1949, encontra-se registada como filha de L e M, e é irmã germana dos RR. (A)
K, mãe do 1º e 2º Autores e mulher do 3º Autor, faleceu, na República Popular da China, em 8 de Abril de 1992. (B)
K, à data do seu falecimento, deixou como herdeiros sucessíveis os ora Autores. (C)
No inventário facultativo aberto pelo falecimento de L que correu termos no Tribunal Judicial de Base sob o n.º 255/91, 1ª secção, actualmente sob o n.º CV1-91-0006-CIV, 1º Juízo Cível, a esta apenso, intervieram apenas como seus herdeiros sucessíveis: M, na qualidade de viúva, tendo desempenhado funções de cabeça-de-casal, e os ora RR. na qualidade de filhos. (D)
M faleceu em Macau no dia 27 de Dezembro de 2006, no estado de viúva, tendo deixado como herdeiros os seus filhos, K pré-falecida, e os RR. (E)
No requerimento inicial de abertura do inventário aludido em d) foi referido que o falecido L deixou como herdeiros unicamente a sua mulher e 5 filhos, os ora Réus nos autos. (F)
Nos autos, aquando das declarações de cabeça-de-casal M declarou que o seu marido falecido deixou como herdeiros unicamente a cônjuge e os 5 filhos, ora Réus nos autos. (G)
M e os RR. sabiam perfeitamente que K é filha e era herdeira legítima do falecido L e que na altura da abertura do inventário facultativo aludido em d) estava viva. (H)
Na conferência de interessados realizada nos autos supra aludidos, com a presença física da cabeça-de-casal, do 1º e 4º Réus, foi, por estes, omitida a existência de K. (I)
Até ao fim do aludido processo de inventário não foi feita qualquer menção ou referência a K, na qualidade de filha e herdeira legítima do seu pai L. (J)
Os bens que o inventariado L deixou foram descritos na relação de bens a fls. 16 do aludido inventário, sendo os seguintes: (K)
a) Uma quota de MOP$1.125.000,00 (um milhão cento e vinte e cinco mil patacas) que o inventariado tinha na “Companhia de Combustíveis e Comércio Geral XX, Limitada”, com sede em Macau, XXX, matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móvel sob o nº XXX SO (verba 1 da relação de bens);
b) Um veículo automóvel ligeiro MC-37-XX da marca Volvo, modelo 360GLE, com o número do motor XXX, de cor azul e do ano de fabrico de 1988 (verba 2 da relação de bens);
c) Um veículo automóvel ligeiro MC-15-XX da marca Audi, modelo 100CD, com o nº do motor XXX, de cor castanha, do ano de fabrico de 1987 (verba 3 da relação de bens);
d) Fracção autónoma designada por Apartamento “I”, do r/c, do prédio com os n.ºs 11, 11A a 11E da Avenida Horta e Costa, e n.ºs 19, 19A a 19F da Rua Pedro Coutinho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXX do Livro B29, registada a favor do inventariado conforme e inscrição n.º XXX do Livro G57, inscrito na matriz predial sob o artigo nº XXX (verba 4 da relação de bens);
e) Fracção autónoma designada por moradia “A2” do 2º andar com prédio com os n.ºs 33, 33A e 33B da Rua Sacadura Cabral (Bloco I), descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXX do Livro B29, registada a favor do inventariado conforme e inscrição n.º 56 292 do Livro G47, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º XXX (verba 5 da relação de bens), e,
f) Fracção autónoma designada por “AAR/C” do prédio com os n.ºs 1, 1A e 1B da Rotunda Carlos da Maia, com portas laterais nºs 24C a 24H da Rua Fernão Mendes Pinto, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXX do Livro B-25, registada a favor do inventariado conforme e inscrição n.º XXX do Livro G34, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 36682 (verba 6 da relação de bens);
A quota social (verba 1 da relação de bens), a fracção “A2” (verba 5 da relação de bens) e a fracção “AAR/C” (verba 6 da relação de bens) ainda estão na posse e titularidade dos herdeiros C, D, E. (L)
Os veículos (verbas 2 e 3 da relação de bens) foram transmitidos a terceiros, encontrando-se as respectivas matriculas canceladas, em conformidade com o teor das certidões de fls. 78 e 79 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas. (M)
A fracção designada por Apartamento “I”, do r/c (verba 4 da relação de bens) foi transmitida à “Companhia de Combustíveis e Comércio Geral XX, Limitada”, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 80 a 92 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida. (N)
O 1º, 2º e 3º Réus e o 1º e 2º AA são sócios da sociedade “Companhia de Combustíveis e Comércio Geral XX, Limitada”, em conformidade com o teor da certidão comercial junta a fls. 46 a 61 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida. (O)
A cabeça-de-casal, M, com o conluio do 1º e 5º Réus, omitiram intencionalmente a existência de K ao Tribunal. (1º)
A cabeça-de-casal, M, e os RR., sabiam onde a irmã K, residia. (2º)
Tendo omitido tais factos com o objectivo de ficarem com o quinhão hereditário a que K tinha direito. (3º)
A cabeça-de-casal, M, e os RR. conluiaram-se com o intuito do inicialmente 1º Réu C, 2º Réu D e 3º Réu E se apoderarem da totalidade da quota que L detinha na sociedade “Companhia de Combustíveis e Comércio Geral XX, Limitada”. (4º)
Bem como, para ficarem em exclusivo proprietários dos 2 imóveis constantes das verbas 5 e 6 da relação de bens ali apresentada. (6º)
A cabeça-de-casal, M, e os RR. conluiaram-se com o intuito do 1º Réu ficar exclusivamente com os 2 carros (verbas 2 e 3 da relação de bens) e um imóvel (verba nº 4). (7º)
A cabeça-de-casal, M, e os RR. sabiam que K estava muito doente e em fase terminal de doença cancerosa. (8º)
A cabeça-de-casal, M, e os RR. nunca informaram K que tinha sido aberto um inventário por morte do pai. (9º)
K faleceu sem ter qualquer conhecimento de que tinha sido aberto um inventário pela morte do seu pai e que os bens deste tinham sido partilhados. (10º)
Os Autores sempre julgaram que os bens de L permaneciam indivisos. (11º)
Pelo menos em 9 de Junho de 2011 os AA. tiveram conhecimento da existência do aludido inventário e da partilha nele realizada. (12º)
L aliás L faleceu em 28.05.1991, sendo que o inventário para partilha da herança aberta por óbito deste foi instaurado em 08.10.1991 e a respectiva conferência de interessados realizada em 28.10.1991;
A presente acção deu entrada em 11.07.2011.
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Da impugnação da matéria de facto
Os Réus ora recorrentes pretendem impugnar a decisão proferida pelo Colectivo de primeira instância sobre a matéria de facto, com fundamento na existência de erro na apreciação das provas, alegando, em síntese, que os Autores ora recorridos, já em 1992, tinham conhecimento da existência da partilha ora anulada pelo Tribunal a quo, considerando que foi o próprio recorrido J (pai dos restantes recorridos), enquanto cabeça-de-casal no processo de inventário da sua esposa K, quem juntou ao tal inventário a certidão do registo comercial da sociedade XX, nela constava uma inscrição de aquisição de quotas (data de apresentação―14 de Fevereiro de 1992), com menção da causa, que era sucessão hereditária-partilha.
Daí defendem os recorrentes que, quer pelas inscrições constantes do registo predial desde Fevereiro de 1992, quer pelo conhecimento do recorrido J da realização da partilha anulada pelo Tribunal a quo, a resposta aos quesitos 11º, 12º e 13º da base instrutória deverá ser alterada, e em consequência, decidindo-se pela caducidade do direito à anulação da partilha.
Vejamos se os recorrentes têm razão.
Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012 (Processo 551/2012), “este princípio da livre apreciação da prova não surge na lei processual como um dogma que confere total liberdade ao julgador, uma vez que o tribunal não pode alhear-se de critérios específicos que o obrigam a caminhar em direcção determinada, de que é exemplo a inversão do ónus de prova em certos casos, a prova legal por confissão, por documentos autênticos, por presunção legal, etc. Todos sabemos isso muito bem.
Mas, por outro lado, nem mesmo as amarras processuais concernentes à prova são constritoras de um campo de acção que é característico de todo o acto de julgar o comportamento alheio: a livre convicção. A convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Nesse sentido, princípios como os da imediação, da aquisição processual (artº 436º do CPC), do ónus da prova (artº 335º do CC), da dúvida sobre a realidade de um facto (artº 437º do CPC), da plenitude da assistência dos juízes (artº 557º do CPC), da livre apreciação das provas (artº 558º do CPC), conferem lógica e legitimação à convicção. Isto é, se a prova só é “livre” até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho no tocante à matéria de facto só nos casos restritos no âmbito dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser levada a cabo.”
Mais se especificou naquele mesmo aresto que “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção (fls. xxx), atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599º, nºs 1 e 2 do CPC.”
No caso vertente, os recorrentes vêm questionar da decisão sobre a matéria de facto dada pelo Colectivo de primeira instância, invocando ter havido erro na apreciação das provas ao dar como provados os quesitos 11º e 12º e não provado o quesito 13º.
Pergunta-se nesses quesitos o seguinte:
11º - “Os Autores sempre julgaram que os bens de L permaneciam indivisos?”
12º - “Só em 17 de Junho de 2011 os AA tiveram conhecimento da existência do aludido inventário e da partilha nele realizada?”
13º - “Os AA tiverem conhecimento da realização da aludida partilha judicial em 1992?”
Feito o julgamento, o Colectivo de primeira instância deu como provado o quesito 11º, julgou parcialmente provado o quesito 12º no sentido de que “pelo menos em 9 de Junho de 2011 os AA tiveram conhecimento da existência do aludido inventário e da partilha nele realizada”, e considerou não provado o quesito 13º.
Entendem os recorrentes que, quer pelas inscrições constantes do registo predial desde Fevereiro de 1992, no sentido de que os Autores ora recorridos poderiam ter acesso às mesmas, quer pelo conhecimento do recorrido J da realização da partilha anulada pelo Tribunal a quo e agora em crise, resultante da sua menção na certidão do registo comercial, e sendo esta um documento autêntico, a decisão do tribunal de primeira instância deverá ser alterada, face aos termos estatuídos na alínea b) do nº 1 do artigo 629º do Código de Processo Civil.
Refere-se na alínea b) do nº 1 do artigo 629º do Código de Processo Civil que “a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, entre outros fundamentos, se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas”.
Será o caso?
Não nos parece.
Em boa verdade, está em causa a questão de saber quando é que os Autores ora recorridos tinham conhecimento da existência de um outro inventário aberto por morte de L, no qual se verificou a preterição de K, filha e herdeira legítima deste último e, por sua vez, esposa e mãe dos recorridos, para podermos apurar se já havia caducado o direito à anulação da partilha.
Releva aqui o conhecimento efectivo por parte dos Autores ora recorridos, e não uma mera possibilidade de conhecimento daquela situação de facto.
Ora bem, é verdade que há inscrições prediais efectuadas em 10 de Fevereiro de 1992 relativas à transmissão das fracções autónomas “AAR/C” e “A2”, mas isso não significa que os Autores ora recorridos teriam tido necessariamente conhecimento da existência do respectivo processo de inventário, se os mesmos nunca tivessem consultado os registos prediais para se inteirar da situação jurídica das fracções em causa.
Por outro lado, embora seja verdade que o próprio recorrido J (viúvo de K e pai dos restantes recorridos), enquanto cabeça-de-casal no processo de inventário obrigatório da sua esposa, juntou uma certidão do registo comercial da sociedade XX, uma vez que a sua esposa tinha uma quota social nessa sociedade, e que nessa certidão consta a existência de um outro inventário e agora em crise, ainda assim não podemos afirmar com toda a certeza e segurança que os recorridos teriam tido cabal conhecimento da partilha realizada em 1992, por morte de L.
De facto, verifica-se que o Colectivo de primeira instância já teve oportunidade de se pronunciar sobre essa questão, tendo analisado todos os elementos e dado uma explanação pormenorizada dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, com os mesmos concordamos na íntegra e que a seguir se transcreve:
“A resposta dada ao item 11º resulta do depoimento da 3ª testemunha (a qual referiu que por algumas vezes o marido, aqui 1º Autor, contactou o tio mais velho com vista à partilha da herança os quais lhe responderam que não iam fazer a partilha porque a mãe – K - na doença tinha gasto muito dinheiro da família e para não lhe falarem (ao tio) mais nisso) e com os documentos que servem de fundamento à resposta dada ao item 12º a folhas 223/232, sendo que quanto a este item, a testemunha também referiu a surpresa do marido quando foi contactado pela polícia por uma eventual notificação num inventário que desconhecia saber e que veio depois a apurar ser o da avó e aí, que haviam procedido à partilha do avô sem nada lhes terem dito.
Finalmente quanto à resposta negativa dada ao item 13º entende o tribunal não ter sido produzida prova que com a certeza jurídica necessária permita concluir pela veracidade deste facto. Desde logo dois dos Autores tinham 14 e 10 anos de idade pelo que, difícil seria terem conhecimento de tal facto. Por outro lado do depoimento da 3ª testemunha ouvida resulta que o marido aqui Autor H até 2011 comentava que a herança do avô não havia sido partilhada e indagava os tios sobre essa matéria. Para demonstrar que os Autores tiveram conhecimento deste facto foram juntas a folhas 373 e 375, duas actas da assembleia geral da sociedade, sendo que em nenhuma daquelas actas consta que estivesse algum dos autores, pelo que, nada mais se acrescentando desconhece-se se alguma vez tiveram conhecimento das mesmas. Foi também junta a certidão do registo comercial relativa à sociedade que o Autor J (viúvo de K e pai dos outros dois autores) juntou ao processo de inventário de K em 1992 com a relação de bens. Porém, esse inventário foi um inventário obrigatório dado haver menores e que normalmente é conduzido pelo Ministério Público, quem vai instruindo o cabeça-de-casal no sentido de praticar os actos e juntar os documentos necessários. É certo que da certidão ali junta resulta que já se havia procedido à transmissão da quota que pertencia a L por sucessão indicando-se o respectivo processo de inventário. Porém, a certidão é manuscrita e está redigida em português, estando as inscrições em vigor juntas com outras que foram traçadas. Ora, daquele processo de inventário, a folhas 56, bem como das declarações do cabeça-de-casal em que interveio interprete resulta que J pelo menos não é fluente em Português, pelo que, o certo é que nem que quisesse na falta de tradutor nem entende o teor da certidão.”
Sendo assim, improcedem as razões aduzidas pelos recorrentes.
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Alegam ainda os recorrentes que não se poderia entender que o recorrido J não compreende português, mesmo que nas diligências realizadas no âmbito do processo de inventário tivesse intervindo algum intérprete.
De certo modo, isso é verdade, mas não se logrando provar que o recorrido J compreendia português nem que, especialmente, tomou conhecimento dos termos concretos da certidão comercial, na qual se fazia alusão à partilha em 1992, as razões invocadas pelos recorrentes não podem deixar de improceder.
*
Em nossa opinião, não é difícil concluir que os recorrentes pretendem pura e simplesmente pôr em causa a livre convicção do Colectivo de primeira instância, alegando para o efeito o simples facto de o recorrido J ter apresentado uma certidão comercial junto do processo de inventário da sua esposa.
É fora de dúvida que se trata de um documento autêntico, mas este só faz prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade, oficial público ou notário, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (artigo 365º, nº 1 do Código Civil).
Como observa Vaz Serra, citado por Viriato Manuel Pinheiro de Lima, “o documento prova, pois, plenamente os factos que foram objecto das acções ou percepções do documentador: aqueles que não estiverem nessas condições (v.g., saber se as declarações foram sinceras e livre ou simuladas ou prestadas por erro na declaração ou com reserva mental ou viciadas por erro, dolo, ou coacção) não são plenamente provadas pelo documento, pelo que podem ser impugnadas, nos termos gerais as declarações documentadas, sem que o impugnante careça de arguir a falsidade do documento”1.
Isso significa que apesar de o registo comercial ser um documento autêntico, mas o facto de saber se os recorridos tinham ou não conhecimento prévio da existência do processo de inventário por morte de L, para se apurar se já havia caducado o direito à anulação da partilha, mais não seja do que um facto exterior que não ocorreu no próprio acto de registo, daí que não sendo abrangido pela força probatória do tal documento autêntico, não se pode considerar plenamente provado, antes pelo contrário está sujeito à livre apreciação do Tribunal.
Aqui chegados, por não se evidenciar qualquer erro no processo de formação da livre convicção do Tribunal a quo, nem existir no processo elementos que impunham uma decisão diversa, não há qualquer razão para alterar a decisão sobre a matéria de facto, improcedendo, pois, o recurso nesta parte.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelos recorrentes A e B (herdeiras habilitadas de C), D, E, F e G (Réus) contra os recorridos H, I e J (Autores), confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes, nesta instância.
Registe e notifique.
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RAEM, 18 de Junho de 2015
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 433 e 434
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Recurso Civil 148/2015 Página 24