打印全文
Proc. nº 464/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 09 de Julho de 2015
Descritores:
-Interesse processual
-Interesse em agir
-Decisão arbitral
-Fundamentação da decisão

SUMÁRIO

I. Tendo a decisão arbitral estabelecido um determinado montante de prejuízos sofridos por uma das partes, mas subtraído a esse montante um valor determinado em virtude de ter considerado que a) para eles (prejuízos) a parte prejudicada também contribuiu e b) para eles igualmente concorreu uma sua accionista, não terá a parte condenada interesse processual em instaurar uma acção anulatória no tribunal, ao abrigo do art. 38º, nº1, al. a), do DL nº 29/96/M, de 11/06, se o fundamento utilizado é a falta de fundamentação da sentença na parte que lhe é favorável, isto é, no segmento em que precisamente procede à redução do quantum indemnizatório.

II. O facto de o tribunal recorrer à equidade não o exime de fundamentar a sua decisão.

III. Só a ausência absoluta de fundamentação a questões essenciais é motivo para a nulidade decretável através de uma acção anulatória.















Proc. nº 464/2015

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A RAEM, representada pelo digno Magistrado do Ministério Público, moveu no Tribunal Administrativo uma acção judicial de anulação da decisão arbitral (Proc. nº 226/14.ATA), ---
Contra ---
“A, SA”, (doravante, apenas A), com sede em Macau, na Avenida XXX, n.º XX, rés-do-chão, ---
Pedindo fosse a acção declarada procedente e em consequência anulada a decisão proferida pelo Tribunal Arbitral em 18/12/2012, nos termos e ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art.º 38.º do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro, por carência de fundamentação na parte respeitante à determinação do montante de MOP$38,011,091.00 como valor a subtrair à indemnização a atribuir à ré.
*
Na contestação, entre outra matéria exceptiva, a ré suscitou a falta de interesse em agir por parte da autora.
*
Por decisão do TA de 28/01/2015, foi julgada procedente aquela excepção, na sequência do que foi a ré absolvida da instância, nos termos dos art.º 72.º, 230.º, n.º 1, alínea e) e 413.º, alínea h), do C.P.C., ex vi art.º 1.º do CP.A.C.
*
É contra tal decisão que no presente recurso se insurge a RAEM, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1- A M.mª juíza, ao considerar que a acção proposta pela RAEM era de anulação parcial da decisão arbitral confundiu o pedido com a causa de pedir porquanto aquele, como aliás decorre da parte introdutória da sentença, tinha e tem por objecto a sentença arbitral na sua globalidade;
2- Independentemente de tal facto e da questão de saber da possibilidade ou não de uma anulação parcial de sentença arbitral, o que aqui é irrelevante, o interesse processual da A., não é maior ou menor em função da amplitude do objecto da acção ou do respectivo valor;
3- O interesse processual numa acção de anulação esgota-se nesse mesmo objecto, independentemente de quaisquer efeitos patrimoniais que ao tribunal é aliás vedado conhecer;
4- O interesse da A. não pode pois ir além de uma mera expectativa, sendo certo porém que a anulação é condição sine qua non para que a A. possa fazer valer os seus interesses patrimoniais associados ao contrato sobre que incidiu a sentença arbitral;
5- A seguir-se o entendimento da M.mª juíza nenhuma acção de anulação de sentença arbitral seria viável por falta de interesse processual.
6- A decisão recorrida violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 1.º n.º 2 e 72.º do C. P. Civil.
7- Acresce ainda que a decisão é nula. Com efeito...
8- Reconhecendo-se embora que a pretensão de anulação da decisão arbitral só pode ser satisfeita mediante a presente acção e que o tribunal não pode proferir uma decisão em substituição da acção anulada, pois que o objecto da anulação é a própria decisão arbitral e não a relação material controvertida, conclui que a única via processual possível, a acção em que foi produzida a decisão ora recorrida, não pode prosseguir por falta de interesse processual.
9- O que, salvo melhor opinião, configura clara contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos, facto que determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 571º, n.º 1, al. c) do C. P. Civil.
Face ao exposto
Deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se em consequência a decisão recorrida e determinando-se que a acção proposta pela RAEM prossiga os respectivos termos».
*
A ré da acção, A, respondeu ao recurso, concluindo as suas alegações pelo seguinte modo:
«I. A nossa lei processual civil autonomizou, em sede de pressupostos processuais, o interesse processual ou o interesse em agir, e adoptou o conceito que tem sido maioritariamente sufragado pela Doutrina;
II. O interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção;
III. Há falta de interesse em agir sempre que a pretensão em concreto formulada pelas partes não assume uma verdadeira dignidade jurisdicional por falta de um direito subjectivo ou interesse legítimo a salvaguardar;
IV. O interesse em agir visa impedir o supérfluo e inútil recurso aos Tribunais, e inexiste quando, no caso concreto, o meio processual utilizado não se reveste de qualquer utilidade;
V. A Recorrente confunde o interesse em agir com o interesse substantivo na acção, já que o interesse em agir terá a ver com um interesse adjectivo, que decorre da situação, objectivamente existente, de necessidade de protecção judicial do interesse substantivo;
VI. A Recorrente entende que a decisão, na parte essencial, e que arbitrou o valor da compensação final devida por esta à ora Recorrida em MOP$238,011,091.00 está devidamente fundamentada, ou seja, a Recorrente expressamente aceita a fundamentação e decisão do Tribunal Arbitral na indemnização que foi arbitrada;
VII. Tal como a Recorrente configurou a sua acção de anulação de decisão arbitral, não há qualquer dúvida que esta apenas se limitou a impugnar a decisão arbitral na parte em que se faz o desconto aos prejuízos apurados pelo Tribunal Arbitral, invocando que a decisão, e apenas nessa parte, carece de relevante e convincente fundamentação;
VIII. O modelo e cálculo efectuado pela decisão arbitral respeitante aos prejuízos patrimoniais da Recorrida não foi impugnado, e logo, transitou em julgado;
IX. A Recorrente, ao dar agora o dito por não dito em sede de recurso, não actua com coerência nem mesmo com lealdade processual;
X. O interesse em agir terá de ser aferido relativamente à situação do direito ou interesse jurídico tal como vem invocado pela Recorrente, e no caso concreto, esta não alega na sua petição inicial qual o seu verdadeiro interesse na anulação da decisão arbitral;
XI. Tendo por certo que a invocada falta de fundamentação apenas poria em causa o desconto efectuado ao montante do prejuízo apurado, é também manifesto que tal decisão só à Recorrida prejudica, e só à Recorrente beneficia;
XII. A Recorrente beneficiou pois de uma operação de subtracção ao valor compensatório apurado de acordo com a equidade pelos Exmos. Senhores Juízes Árbitros, e nessa medida, impunha-se à Recorrente um especial ónus de fundamentar qual o seu interesse concreto em recorrer às vias judicias para impugnar a decisão arbitral nessa parte;
XIII. O prosseguimento da acção de anulação de decisão arbitral não conduziria a qualquer efeito útil para a Recorrente, e assim é forçoso concluir não existir qualquer necessidade justificada, razoável ou fundada na manutenção da instância, faltando assim o interesse em agir por parte da Recorrente e, logo, devendo ser mantida a sentença recorrida, que nesta matéria é inatacável;
XIV. Há contradição entre os fundamentos e a decisão se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente;
XV. A dita contradição pressupõe um erro lógico na ponta final da argumentação jurídica, os fundamentos invocados apontam num sentido e, inesperadamente, contra a conclusão decisória que dos mesmos, e dentro da linha de raciocínio adoptada, se esperava, veio-se a optar pela solução adversa;
XVI. A fundamentação da decisão recorrida nunca apontou para outra solução jurídica que não fosse a da verificação e procedência da excepção de falta de interesse processual;
XVII. A Mma. Juiz a quo expressou que, uma vez que, no âmbito do contrato de concessão em causa no processo de arbitragem, as partes excluíram a possibilidade de impugnação da decisão arbitral através de recurso, e considerando que não estava em causa a nulidade dessa decisão arbitral, o meio processual utilizado pela Recorrente para impugnar a decisão - acção de anulação de decisão arbitral - era o único meio processual que teria ao seu dispor para esse fim;
XVIII. Deste raciocínio não se poderá retirar a conclusão de que a Mma. Juiz a quo estaria já a pronunciar-se acerca da existência, ou não, dos pressupostos processuais, nomeadamente, o da falta de interesse processual;
XIX. Entre a primeira afirmação - “a pretensão de anulação da decisão arbitral só podia ser satisfeita mediante a presente acção” - e a segunda - “a acção em que foi produzida a decisão ora recorrida, não pode prosseguir por falta de interesse processual” - que a Recorrente sublinhou para apontar a dita contradição entre a fundamentação e a decisão, existe um conjunto de considerações da Mma. Juiz a quo com coerência e lógica;
XX. As considerações da Mma. Juiz a quo expressas na fundamentação da sentença mostram-se completamente ajustadas com a decisão final, já que apontam necessariamente para a falta de interesse processual da Recorrente;
XXI. Não existe qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, pelo que deverá improceder a apontada nulidade da decisão recorrida;
XXII. Os fundamentos da Recorrente trazidos ao presente recurso não deverão por isso ser atendidos e não deverão merecer assim qualquer provimento;
XXIII. A Douta Sentença recorrida não merece qualquer reparo, pelo que deverá ser mantida.
Nestes termos,
Deverão V. Exas. negar provimento ao presente recurso, mantendo a Douta Sentença recorrida, fazendo-se dessa forma inteira e sã JUSTIÇA!».
*
Cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A decisão recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
«1.º- Pela decisão proferida do Tribunal Arbitral constituído para resolução do conflito sobre a execução do (Contrato de Concessão do Serviço Terrestre de Televisão por Subscrição (STTvS» datada de 18/12/2012, foi condenada à R. para pagar à A. a indemnização no montante de MOP200.000.000,00 (cfr. fls. 32 a 88v dos autos do processo n.º197/13-ATA, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
2.º - Em 28/12/2012, foi a A. notificada da decisão arbitral acima mencionada (cfr. fls. 89 dos autos do processo n.º 197/13-ATA).
3.º - Em 28/01/2013, a A., representada em juízo pelo licenciado em direito designadamente nomeado pelo Exm.º Senhor Chefe do Executivo, através do despacho n.º 13/CE/2013, veio intentar a acção judicial de anulação da decisão arbitral junto deste Tribunal (cfr. fls. 2 a 31 dos autos do processo n.º 197/13-ATA, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
4.º - Foram a A. e o M.ºP.º notificados para pronunciarem sobre a representação em juízo (cfr. fls. 212 a 215 dos autos do processo n.º197/13-ATA, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
5.º - Pela decisão proferida em 13/03/2013, foi o M.ºP.º notificado, na qualidade de representante da A., para ratificar ou retirar, no todo ou em parte, o processado anterior, com a cominação de absolvição da R. da instância (cfr. fls. 228 a 234v dos autos do processo n.º 197/13-ATA, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
6.° - Pela decisão proferida em 10/04/2013, foi determinada a absolvição da R. da instância por inverificação do suprimento da irregularidade da capacidade judiciária da A. (cfr. fls. 240 a 241 dos autos do processo n.º197/13-ATA, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
7.° - Pelo acórdão dos Venerando Juízes do Tribunal de Segunda Instância, no âmbito do recurso jurisdicional ordinário interposto pela A. sobre a decisão acima mencionado, proferido em 28/11/2013 nos autos do processo de recurso n.º 477/2013, foi negado provimento ao ora recurso e confirmada a decisão recorrida (cfr. fls. 384 a 401v dos autos do processo n.º197/13-ATA, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
8.º - Em 12/12/2013, o douto acórdão do T.S.I. transitou em julgado (cfr. fls. 406 dos autos do processo n.º 197/13-ATA, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
9.° - Em 10/01/2014, a A. veio intentar a presente acção judicial de anulação da decisão arbitral contra a R. (cfr. fls. 2 a 10 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito)».
***
III – O Direito
1 – Introdução
Proferida a bem estruturada decisão do TA, veio a RAEM, através da muito bem escrita peça alegatória de recurso, pugnar pela:
- Nulidade da sentença, nos termos do art. 571º, nº1, al. c), do CPC (contradição entre fundamentos e decisão); e pela ---
- Procedência do recurso, por entender dispor de interesse processual em demandar.
*
2 – Da nulidade
O argumento trazido à liça na invocação da nulidade foi este:
A M.ma juíza reconhece expressamente que só através do presente meio (acção anulatória) pode a RAEM obter a anulação da decisão arbitral. Todavia, contraditoriamente, acaba por não reconhecer-lhe nenhuma situação de carência justificativa do recurso à via judicial. Se a A. não puder usar deste meio com vista àquele fim, isso seria o mesmo que reconhecer que em caso nenhum uma sentença arbitral pode ser anulada.
Com todo o respeito, esta fundamentação não pode proceder.
A decisão não disse uma coisa e o seu contrário, nem apresentou um discurso num sentido e uma decisão noutro. Foi, ao invés, muito clara e cristalina a dispositividade decisória e a fundamentação de que se serviu.
Na realidade, a acção anulatória que a RAEM utilizou foi o meio próprio e adequado à pretensão, face ao disposto no art. 38º da Lei nº 29/96/M. E isso mesmo, ao estudar a “falta de interesse em agir”, foi dito na sentença impugnada a fls. 82 (“Não é menos certo que a “pretensão de anulação da decisão arbitral” só podia ser satisfeita mediante a presente acção…).
Só que ao dizê-lo, obviamente, a sentença não estava a tomar posição sobre o fundo da causa. Estava simplesmente a aceitar a propriedade do meio.
.
Também afirmou que o TA não podia substituir-se ao tribunal arbitral de modo a proferir nova decisão. Apenas aceitou que o papel do TA fosse simplesmente o de se confinar à anulação da decisão arbitral, sem interferir com a relação material controvertida.
Contudo, com esta afirmação também não queria o tribunal dizer que não podia proceder à anulação. Entenda-se: queria dizer simplesmente que a sua intervenção seria meramente declaratória, se fosse caso disso, sem possibilidade de conhecer do objecto substantivo da decisão arbitral.
Portanto, se no final acabou por aceitar que não havia fundamento para a anulação invocada, essa foi a conclusão a que chegou depois do estudo do caso, na perspectiva da falta de interesse em agir. Não há nisso nenhuma contradição!
Desta maneira, improcede a arguição de nulidade.
*
3 – Da substância do recurso
3.1 - Recordemos rapidamente o que está em causa nos presentes autos.
Em tribunal arbitral ficou apurado:
- Que a A sofreu um prejuízo de Mop$ 238.011.091,00 em perda de receitas por causa dos inúmeros anteneiros que retransmitiam o sinal de TV para o interior das casas de habitação a um custo reduzido.
- E que esta situação se ficou a dever à falta de observância dos deveres decorrentes do contrato de concessão por parte da RAEM, a quem a A em última análise imputou a produção daquele resultado danoso.
Todavia, e recorrendo à equidade, entendeu o mesmo tribunal arbitral que àquele montante deveria subtraído o valor de Mop$ 38.011.091,00.
E porquê esta subtracção? Por duas razões, a saber:
Por um lado, porque a A podia ter actuado judicialmente contra a RAEM mais cedo, mal se viu confrontada com a situação de concorrência ilegal, evitando o arrastar da situação por longos 11 anos, com o consequente acumular de prejuízos;
E por outro, porque desde 2007 o actual accionista maioritário da A é a B, Limitada, cujo principal accionista é também o principal accionista da C Limitada, que até 2007 foi um dos principais anteneiros, tendo nessa qualidade contribuído significativamente para a actual situação de prejuízos da RAEM.
.
3.2 - A sentença em apreço considerou que a autora RAEM se limitou a acometer uma parte da decisão arbitral, mas que em relação a ela não dispunha de interesse em agir. E justificou-se da seguinte maneira:
Ao ter impugnado apenas uma parte da sentença arbitral, deixou intacta a parte restante - que assim transitou em julgado - onde foi feito o apuramento total dos prejuízos patrimoniais da A. E nesse sentido, nunca poderia o TA vir a proferir uma sentença que pudesse substituir a parte eventualmente anulada e determinar um valor superior que devesse ser subtraído, em vez daqueles trinta e tal milhões de patacas.
É claro que apenas este fundamento não chega. Na verdade, não tinha o TA que se preocupar em saber se podia ou não proferir uma sentença que determinasse um valor condenatório inferior àqueles duzentos milhões. Efectivamente, o TA, quando muito, apenas podia decretar a anulação da sentença e nada mais, visto que os seus poderes acabam por ser de índole meramente cassatória e não substitutiva. De resto, nem sequer a RAEM formulou tal pedido na petição inicial1.
Mas, ainda que com algum prejuízo para a clareza de entendimento, já nos aproximamos do sentido decisório da decisão judicial no segmento em que ela coloca a ênfase na parte da sentença arbitral já transitada.
Parece a sentença, então, querer dizer que não tendo sido imputada à decisão arbitral toda a falta de fundamentação, e uma vez que nela haviam sido incluídos o modelo e regra de cálculo para o apuramento dos prejuízos, sem que estivessem aqui em discussão, então, não teria interesse em agir na parte em que beneficiou de um abatimento por equidade aos prejuízos apurados.
Ora bem. É preciso algum esforço de interpretação, mas no final percebe-se o que está em jogo na decisão do TA.
Vamos nós tentar ser mais claros.
.
3.3 - A decisão arbitral contém duas partes:
Numa, reconhece a existência de prejuízos no valor de cerca de 238 milhões de patacas na esfera da A;
Na outra, a esse valor reduz cerca de 38 milhões, com recurso à equidade, fornecendo aquela que ao tribunal arbitral pareceu ser justificação suficiente.
É esta segunda parte que unicamente foi censurada na acção.
Agora repare-se: A RAEM aceita aquele valor total de danos. E até parece aceitar o valor da subtracção (38 milhões). Limita-se, somente, a dizer que esta subtracção, este abaixamento no valor da condenação, não está fundamentado.
Quer dizer, a RAEM dá por boa a decisão referente à diminuição de prejuízos, porque lhe é favorável, mas não a aceita por não a achar fundamentada.
Ora, isto faz pouco sentido, salvo o devido respeito. Atacar uma decisão favorável apenas por a dizer não fundamentada é arremessar contra si mesmo um argumento que era adequado ou próprio da parte contrária. Na verdade, quem à partida teria legitimidade para impugnar a decisão arbitral seria a parte que viu na sentença cortar um pedaço (38 M) ao bolo inteiro (238 M).
Mas, como reconhecer o mesmo interesse em atacar a decisão arbitral a quem dela beneficiou, se o único argumento esgrimido foi a simples falta de fundamentação?!
Outra poderia ser a situação, se a autora RAEM se insurgisse contra o valor da subtracção, por a considerar baixa ou reduzida, por entender que os prejuízos não podiam ser aqueles, etc. Mas, se a RAEM acolhe a decisão arbitral quanto aos prejuízos apurados, ou seja, se aceita que está nessa parte bem fundamentada, então parece que não pode atacá-la na parte em que ela procede à diminuição do “quantum” condenatório apenas porque não está fundamentada. Quer dizer, mesmo que estivesse mal fundamentada essa parte (e não está), a RAEM sai beneficiada da decisão e por isso não pode reagir contra ela. São estes os princípios que iluminam os conceitos de legitimidade e interesse processual.
O interesse processual existe sempre que a situação de carência do autor justifica o recurso às vias judiciais (art. 72º, do CPC).
Como se pode ler num aresto do STJ – que aqui evocamos unicamente como suporte de jurisprudência comparada – “O interesse em agir, sendo diferente da legitimidade tem, todavia, em comum com este conceito o dever ser aferido, objectivamente, pela posição alegada pelo Autor que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito” e que “O interesse de agir não é mais que uma inter-relação de necessidade e de adequação; de necessidade porque, para a solução do conflito deve ser indispensável a actuação jurisdicional, e adequação porque o caminho escolhido deve ser apto a corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configurou”2.
Ora, se a autora obteve um benefício com aquela redução no quantum indemnizatório e se outro desconto maior não defendeu, até porque isso não poderia levar o tribunal entrar nessa análise de fundo, parece que lhe falta uma base de interesse para a introdução do feito em juízo.
Queria mais desconto? Queria que o dano fosse menor sem ter tido oportunidade de o fazer no tribunal arbitral, ao arrepio do disposto no art. 20º (nomeadamente, as alíneas a) a c)) e com influência decisiva na resolução do litígio? Sim, nesse caso, estaríamos de acordo com a legitimidade e interesse processual para a acção.
Mas, a alegação da falta de fundamentação de uma parte que beneficia, precisamente, a autora não pode, sem outros adicionais fundamentos, servir de mote processual ao uso da acção.
É que, ao fazê-lo, parece estar contra a redução!
.
3.4 - É até caso para dizer:
Se esta foi a única fundamentação para o pedido anulatório, isso significa então que se não tivesse havido redução no quantum condenatório, tudo levaria a crer que não haveria outra razão que a autora pudesse invocar para pedir a anulação.
E desse modo, teríamos uma decisão arbitral a estabelecer a condenação da RAEM no pagamento de 238 milhões de patacas, sem que esta tivesse aparentemente qualquer razão para a anulação judicial, uma vez que na acção, como se disse já, a autora nenhuma maleita apontou à decisão arbitral que fixou em 230 milhões de patacas o valor global dos prejuízos, designadamente qualquer falta de fundamentação.
Ora, sendo assim, parece que não pode agora a autora dispor de mais direitos processuais em relação a uma decisão que em parte lhe é favorável, do que aqueles de que disporia perante uma decisão que lhe fosse totalmente desfavorável.
Na verdade, se a decisão de desconto lhe foi benigna, que necessidade tem a RAEM de usar o processo, de instaurar a acção, de utilizar esta “arma judiciária”3 para a anular nessa parte?
Não quer o desconto? Obviamente, quer, pois de outro modo o teria expressamente afirmado.
Então, que melhor efeito útil poderia obter do tribunal com a anulação da parte da decisão arbitral que lhe retira parte da condenação no pagamento dos prejuízos totais sofridos pela A?
É aqui, precisamente, que encontramos nós a falta de interesse processual em agir. Não está demonstrada uma necessidade justificada, fundada e razoável de utilizar o processo ou de fazer prosseguir a acção4
.
3.5 - Esta questão tem, aliás, forte paralelismo com o regime dos recursos jurisdicionais. E, como se sabe, só pode recorrer quem na causa tenha ficado “vencido” (art. 585º, nº1, do CPC), isto é, só pode impugnar a decisão se esta lhe for prejudicial. O recurso tem essa missão de afastar um prejuízo resultante da sentença através da revogação pelo tribunal de recurso.
.
3.6 - Assim, não parece que a sentença recorrida tenha incorrido em erro.
Em todo o caso, e mesmo supondo que esta questão não pudesse ter o desfecho que a 1ª instância encontrou, nem por isso a acção colheria êxito, pois que a decisão da instância arbitral está suficientemente fundamentada.
Dois foram os fundamentos de facto utilizados para aquela subtracção:
Por um lado, entendeu o tribunal arbitral que a A podia ter actuado judicialmente contra a RAEM sem ter que esperar 11 anos. Se o tivesse feito antes, os prejuízos seriam menores. Teve, portanto, isso em consideração.
Além disso, uma das anteneiras passou a ser accionista da A a partir de certa altura. Consequentemente, também ela contribuiu para a situação danosa que a A sofreu. Teve, igualmente, este facto em boa conta.
No conjunto articulado destas razões, entendeu o tribunal que se justificava uma redução exactamente naquele valor de 38 milhões aproximadamente.
Ora, mesmo que se não esqueça que a decisão tomada em sede arbitral é mais flexível e menos complexa quando comparada com a da sentença judicial5, verdade é também que a equidade não exime o árbitro de fundamentar a decisão6.
Nós cremos, todavia, que esse dever foi cumprido, tal como vimos. De resto, esta questão é similar à do art. 571º, nº1, al. d), do CPC7 e sempre se tem considerado que só uma absoluta ausência de pronúncia sobre as questões essenciais é motivo para a nulidade decretável através de uma acção anulatória8.
*
Em face do que se disse, com o devido respeito por entendimento diferente, quanto a nós a sentença do TA será de manter.
***
IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso.
Sem custas, por delas estar isenta a RAEM.
TSI, 9 de Julho de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Problema que se costuma colocar em torno de uma sentença judicial anulatória tem que ver com as consequências para a própria arbitragem. E é caso para perguntar: subsiste a convenção? Luis de Lima Pinheiro entende que sim em Apontamento Sobre a Impugnação da Decisão Arbitral, Revista da Ordem dos Advogados, ano 67, Vol. III, pág. 6 e ainda em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=65580&ida=65536. Ou será que com a anulação judicial, a convenção caduca?1 Defende esta solução, Paula Costa e Lima, Anulação e Recursos da Decisão Arbitral, pág. 964, desde a decisão arbitral tenha conhecido o mérito da causa. Todavia, esse não é tema para o presente debate. Ver ainda, Cândida Antunes Pires e Álvaro Abreu Dantas, Justiça Arbitral em Macau - A Arbitragem Voluntária Interna, pág. 209-210.
2 Ac. STJ, de 16/09/2008, Proc. nº 08A2210. Ver ainda Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, II, 1982, pág. 253; A. Varela, e outros, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 179-189.
3 Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag. 79. Também Ac. TSI, de 4/07/2014, Proc. nº 100/2013
4 A. Varela e outros, Manual…cit., pág. 181.
5 Diogo Lemos e Cunha, em Comentário ao artigo 42.º. da lei da arbitragem voluntária: forma, conteúdo e eficácia da sentença arbitral, em http://laboratorioral.fd.unl.pt/media/files/Artigo_42_-_DLC.pdf, pág. 15, nota 49.
6 Diogo Lemos e Cunha, em Comentário ao artigo 42.º. da lei da arbitragem voluntária: forma, conteúdo e eficácia da sentença arbitral, em http://laboratorioral.fd.unl.pt/media/files/Artigo_42_-_DLC.pdf, págs. 21 e 22.
7 Neste sentido, Ac. do STJ, de 10/07/2008, Proc. nº 08A1698
8 Diogo Lemos e Cunha, em Comentário ao artigo 42.º. da lei da arbitragem voluntária: forma, conteúdo e eficácia da sentença arbitral, em http://laboratorioral.fd.unl.pt/media/files/Artigo_42_-_DLC.pdf, pág. 18.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------



464/2015 22