打印全文
Processo n.º 59/2015. Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal.
Recorrente: A.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal. Oposição de acórdãos. Questão de facto.
Data do Acórdão: 23 de Setembro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – As questões de facto estão fora do âmbito do recurso para fixação de jurisprudência.
II - O Tribunal de Última Instância, no seu acórdão de 18 de Março de 2015, no Processo n.º 12/2015, não decidiu que não era possível dar como provados factos apenas com base em provas produzidas no exterior de Macau, seja no Interior da China, seja noutro local. Pronunciou-se, apenas, em função do caso concreto.

O Relator,

Viriato Manuel Pinheiro de Lima



ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos provados
A interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão de 14 de Maio de 2015, no Processo n.º 220/2015, do Tribunal de Segunda Instância (TSI), com fundamento em o mesmo se encontrar em oposição com o Acórdão deste Tribunal de Última Instância (TUI) de 18 de Março de 2015, no Processo n.º 12/2015.
De acordo com o recorrente, a oposição entre os dois acórdãos consiste no seguinte:
No acórdão recorrido o arguido - ora recorrente - foi condenado como autor material de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea c) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal.
No acórdão recorrido o Tribunal a quo deu como provada a falsidade do documento em causa nos autos exclusivamente com base numa “informação” fornecida por uma entidade sediada em Zhuhai, contrariando o disposto no artigo 336.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, o que configura uma situação de erro notório da apreciação da prova.
No acórdão fundamento o TUI considerou que a prova de facto atinente ao crime de contrafacção de cartões de crédito com base apenas num relatório enviado por autoridade policial do Interior da China, indicando que os dois arguidos fazem parte do grupo que procedeu à contrafacção dos cartões de crédito constitui um procedimento contrário ao disposto no artigo 336.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, concluindo pela verificação de erro notório na apreciação da prova.
O Ex.mo Procurador-Adjunto, na resposta à motivação, pronuncia-se pela rejeição liminar do recurso, pois que:
1ª - No Acórdão-Fundamento, o Venerando TUI absolveu os dois indivíduos aí arguidos de um crime acusado de crime de contrafacção de moeda p.p. pelos arts. 252° n.º1 , e 257°, nº1, alí. b) do Código Penal, com fundamento de que «Existe erro notório na apreciação da prova quando se dão como provados factos ocorridos apenas no exterior de Macau, que integra a prática de um crime de contrafacção de moeda, apenas com base em relatório policial elaborado pela entidade policial do exterior de Macau.»
2a - No Acórdão-Recorrido, procedendo ao suprimento das normas legais citados pelo tribunal da 1ª instância, o Venerando TSI confirmou a condenação do arguido na autoria material de um crime de falsificação de documento de especial valor p.p. pelo disposto no art. 245° em conjugação com alí. c) do n.º 1 do art. 244° do Código Penal.
3a - Nestes termos, torna-se evidente que não são idênticas as questões jurídicas decididas pelos Acórdão-Fundamento e Acórdão-Recorrido, por incidirem em crimes distintos.
4a - Sem necessidade de transcrição das factualidades dadas como provadas e não provadas, uma leitura atenciosa dos dois Acórdãos dá-se seguramente a perceber que nem são idênticos os factos fundamentais e nucleares sobre os quais assentam as decisões.
5ª - Sendo enviado por autoridade policial do Interior da China, o «relatório» contemplado pelo Venerando TUI no Acórdão-Fundamento indica que aqueles dois arguidos faziam parte do grupo de contrafacção dos cartões de crédito.
6a - O ofício emitido por autoridade policial de Zhu Hai que se servia como meio de prova no Acórdão-recorrido indica que «Na base de dados dos Serviços de Administração da Indústria e do Comércio de Zhuhai não se encontra qualquer elemento atinente à “Sociedade Limitada de Fomento Predial B”, pelo que o respectivo “alvará de funcionamento para sociedade - pessoa colectiva é falsificado» (doc. de fls.202 dos autos)
7a - É patente que embora aquele «relatório» bem como esse «ofício» sejam emitidos por autoridades policiais do Interior da China, são decerto diferentes os respectivos conteúdos e, na nossa óptica, as correlacionadas forças convincentes como meios de prova.
8ª - No processo conducente ao Acórdão-Fundamento, o Venerando TUI entende que a condenação dos dois arguidos na co-autoria do crime de contrafacção de moeda se baseou apenas em referido «relatório» policial; todavia há in casu, pelo menos, uma testemunha C quem afirmou que o arguido tinha exibido, para mostrar a sua capacidade económica e financeira, o original cuja fotocópia se encontra a fls.21 dos autos.
9a - O que implica que igualmente não são idênticos os meios de prova nos Acórdão-Fundamento e Acórdão-Recorrido.
10a - Nesta medida, e em esteira das sensatas jurisprudências do Vº TUI nos processos supra aludidos, entendemos que não existe requisito do recurso extraordinário para fixação da jurisprudência, em virtude de não se verificarem, no caso sub iudice, soluções opostas relativamente à mesma questão de direito.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.

II - Fundamentos
1. Requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal.
Cabe proferir a decisão a que se refere o n.º 1 do artigo 423.º do Código de Processo Penal, isto é, decidir se o recurso deve prosseguir ou se deve ser rejeitado, por ocorrer motivo de inadmissibilidade ou por não existir oposição de julgados.
Dispõe o artigo 419.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo artigo 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20.12:
“Artigo 419 º
Fundamento do recurso

1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.

Face a esta norma, trata-se de saber:
- Se foram proferidos dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- Se as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- Se o acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado;
- Se do acórdão recorrido não era admissível recurso ordinário;
- Se o recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, ou seja do acórdão recorrido (n.º 1 do artigo 420.º do Código de Processo Penal).

2. Existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas
Relativamente ao pressuposto fundamental em questão – existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas - tem-se considerado (por exemplo, no acórdão do TUI, de 11 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009) que:
As decisões devem ser diversas, opostas, não necessariamente contraditórias.
A oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita. Não basta que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.
A questão decidida pelos dois acórdãos deve ser idêntica e não apenas análoga. A este respeito tem-se entendido que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos.
A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto.
A questão sobre a qual há oposição tem de ser uma questão de direito. Não pode ser uma questão de facto, até porque o TUI não aprecia, normalmente, matéria de facto.
Se uma referência, de um Acórdão, sobre uma questão jurídica, não se consubstancia numa decisão, nunca pode haver oposição de acórdãos conducente a uma decisão uniformizadora de jurisprudência por parte do TUI (acórdão do TUI, de 31 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009).
A parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão. Os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam (acórdão do TUI, de 31 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009).

3. O caso dos autos
O recorrente não conseguiu dizer que regra de direito de um e outro dos acórdãos são opostas entre si. Porque, na verdade, tal hipotética regra não existe.
No acórdão deste TUI, de 18 de Março de 2015, considerou-se que o TSI deu como provados os factos atinentes ao crime de contrafacção dos cartões de crédito com base apenas num relatório enviado por autoridade policial do Interior da China, indicando que os dois arguidos fazem parte do grupo que procedeu à contrafacção dos cartões de crédito.
Mais se acrescentou no acórdão do TUI que:
“Não foi encontrado em poder dos arguidos em Macau qualquer instrumento utilizado na contrafacção dos cartões de crédito.
Não foi ouvido em audiência qualquer membro das forças policiais do Interior da China.
As testemunhas da Polícia Judiciária de Macau não se deslocaram ao Interior da China, não inquiriram nenhuma pessoa com intervenção em tais factos, pelo que o seu conhecimento da matéria em causa só se podia resumir à leitura do aludido relatório, sendo certo que os arguidos não confessaram os factos”.
E acrescentou-se:
“Este procedimento é contrário ao disposto no artigo 336.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, segundo os quais não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Ressalvam-se apenas do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes”.
Ou seja, este TUI não decidiu que não era possível dar como provados factos apenas com base em provas produzidas no exterior de Macau, seja no Interior da China, seja noutro local. O que se decidiu foi que, no caso concreto, em que estava em causa a prova de factos que integravam o crime de contrafacção dos cartões de crédito, na falta de confissão dos arguidos, seria fundamental a apreensão aos arguidos de instrumento utilizado na contrafacção dos cartões de crédito e/ou a produção de prova testemunhal de membro das forças policiais do Interior da China ou de outra pessoa com intervenção em tais factos, que pudessem depor em audiência. Não bastando, para a prova dos factos da contrafacção, um relatório policial do Interior da China indicando que os dois arguidos fazem parte do grupo que procedeu à contrafacção dos cartões de crédito.
No caso dos autos, o acórdão recorrido, de 14 de Maio de 2015, do TSI, deu como provada a falsidade de um documento do Interior da China com base em informação de autoridade policial do Interior da China de que «Na base de dados dos Serviços de Administração da Indústria e do Comércio de Zhuhai não se encontra qualquer elemento atinente à “Sociedade Limitada de Fomento Predial B”, pelo que o respectivo “alvará de funcionamento para sociedade – pessoa colectiva é falsificado». Para tal, entendeu que tal informação estava submetida ao princípio da livre apreciação da prova.
Assim, a questão da prova, decidida pelo acórdão recorrido, é uma questão de facto e não de direito. Está fora do âmbito da uniformização de jurisprudência.
No que respeita ao entendimento de que um documento do Interior da China está submetido ao princípio da livre apreciação da prova, sendo uma questão de direito, em nada se opõe às questões decididas no acórdão do TUI.
Por outro lado, não há nenhuma semelhança entre as questões decididas nos dois acórdãos.
No acórdão do TUI era essencial prova testemunhal, que não foi produzida em audiência.
No caso do acórdão recorrido o essencial era informação documental sobre a prova sobre a veracidade ou falsidade de um documento alegadamente emitido por autoridades do Interior da China. Ora, quanto a este aspecto, não se vislumbra haver algum obstáculo a que os tribunais de Macau dêem como provado facto sobre a falsidade de documento com base em documento oficial do exterior de Macau, seja do Interior da China, seja de qualquer outro local. Aqui, a prova testemunhal não só não era necessária, como seria redundante e, até, perniciosa.
Repete-se, o TUI não decidiu que não era possível dar como provados factos apenas com base em provas produzidas no exterior de Macau.
Em suma, a questão decidida pelo acórdão recorrida é, fundamentalmente, uma questão de facto.
Na parte em que não o é, isto é, em que constitui uma questão de direito, não se opõe à decisão do acórdão do TUI.
Está, pois, prejudicado o exame dos restantes requisitos do recurso.

III - Decisão
Face ao expendido, rejeita-se o recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.

Macau, 23 de Setembro de 2015.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
12
Processo n.º 59/2015