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Processo n.º 71/2015. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Secretário para a Segurança.
Recorrido: A.
Assunto: Penas disciplinares. Demissão ou aposentação compulsiva. Inviabilização da manutenção da relação funcional. Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau. Discricionariedade. Princípios gerais do Direito Administrativo. Princípio da proporcionalidade. Sindicância judicial.
Data do Acórdão: 4 de Novembro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – A conclusão da inviabilização da manutenção da relação funcional é tirada pela Administração em todos os casos em que enquadre a conduta do arguido numa daquelas punidas com as penas de demissão ou aposentação compulsiva, a concretizar por juízos de prognose efectuados com uma ampla margem de decisão.
II – As condutas previstas no artigo 240.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau são punidas apenas com a pena de demissão.
III - A aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade
IV – No âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro.
V - A intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima


ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, Guarda-Ajudante do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP), interpôs recurso contencioso de anulação do despacho de 17 de Junho de 2014, do Secretário para a Segurança, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por acórdão de 21 de Maio de 2015, concedeu provimento ao recurso, anulando o acto recorrido, tendo decidido que ter sido violado o princípio da proporcionalidade ao se ter optado pela pena de demissão em vez da pena de aposentação compulsiva.
Inconformado, interpõe recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI) o Secretário para a Segurança, tendo alegado que:
- O arguido constitui-se em ausência ilegítima, na sequência de faltas injustificadas por um longo período de tempo, muito para além das 5 faltas injustificadas que fundamentam a aplicação da pena de demissão;
- As razões invocadas pelo arguido como dirimentes ou atenuativas da falta cometida não colhem, porquanto a dor física não o inibia da capacidade de discernimento e de representação daquele que, pelo conteúdo das peças impugnatórias, afinal, sabia ser um dever profissional, de cujo cumprimento dependia o sustento da sua família;
- Não se constatando a violação do princípio da proporcionalidade, em qualquer das suas manifestações, designadamente a adequação à gravidade da falta e responsabilidade do arguido, e a justiça relativa, tendo por referência, não só o desprezo pelos deveres violados, como também a praxis adoptada pela administração, em particular nas forças de segurança, o Acórdão recorrido erra no seu julgamento por má aplicação da lei substantiva.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II – Os factos
A) O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
Em 17 de Junho de 2014, o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho:
  “Analisados os elementos constantes do presente processo disciplinar, vem suficientemente provado que o arguido A, guarda principal do CPSP n.º XXXXXX, faltou ao serviço em 5 dias seguidos a partir de 14 de Agosto de 2013, sem justificação ou autorização, e a respectiva ausência ilegítima mantém-se até ao momento.
  Para efeitos do processo disciplinar e apuramento do facto, o instrutor ouviu oficiosamente o arguido, concedendo-lhe 10 dias para a apresentação da defesa escrita em relação à acusação. Também foi ouvido, a pedido do arguido, o seu superior hierárquico imediato. O arguido reconheceu o facto de infracção disciplinar na defesa escrita, mas não aceitou a qualificação jurídica deste, entendendo que, atentas as circunstâncias atenuantes, tais como a antiguidade de 21 anos, dois louvores, nenhuma pena disciplinar, a informação positiva em relação ao seu comportamento e a confissão da infracção disciplinar, etc., e a sua doença prolongada, é mais humanizada aplicar-lhe a pena de aposentação compulsiva.
  Antes de mais, o facto de ausência ilegítima de que o arguido foi acusado, e que se mostra definitivamente consolidado, por provado, constitui infracção ao dever prescrito no artigo 13.º, n.º 2, al. a) do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM). Nos termos do artigo 238.º, n.º 2, al. i) do EMFSM, as penas que inviabilizam a relação funcional são aplicáveis quando se constituir na situação de ausência ilegítima durante 5 dias seguidos ou 10 interpolados, dentro do mesmo ano civil.
  É de frisar que, ainda que o arguido tenha doença de coluna vertebral e tenha que ser sujeito permanentemente às consultas médicas e à administração de medicamentos, deveria tratar a sua doença de acordo com o vigente regime jurídico da função pública, não devendo ausentar-se do serviço sem autorização ou não se justificar. Cumpre ainda indicar que, no que tange à situação de ausência ilegítima referida no artigo 238.º, n.º 2, al. i) acima referido, a pena de aposentação compulsiva não será necessariamente aplicada, de acordo com o artigo 239.º do EMFSM, ao militarizado que reúna mais de 15 anos. Pelo contrário, a entidade competente tem um poder discricionário para decidir com base nas circunstâncias concretas.
  Atento o conteúdo da acusação e as circunstâncias atenuantes, é de crer firmemente que a infracção disciplinar do arguido é grave, daí que ele deixa de possuir as condições básicas para continuar o exercício do cargo.
  Nesta conformidade, após ouvidos o Conselho Disciplinar e Instrução do CPSP e o Conselho de Justiça e Disciplina, e consideradas a ausência ilegítima do arguido que, até ao momento, já ultrapassou muito mais do que os 5 dias seguidos, a censurabilidade da infracção disciplinar e o seu comportamento anterior, puno, no uso das competências conferidas na Ordem Executiva n.º 122/2009 e artigo 211.º do EMFSM, o arguido A, guarda principal do CPSP n.º XXXXXX, com a pena de demissão, nos termos do artigo 4.º, n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 6/1999, artigo 238.º, n.º 2, al. i) e artigo 240, al. c) do EMFSM”.
    B) O acórdão recorrido alinhou como fundamentos os seguintes, embora fora da rubrica factos provados, que se presumem ser factos provados, já que têm essa natureza e aparecem elencados como fundamentos do acórdão:
    “O recorrente, agente da PSP, após período de baixa concedido pela junta médica, faltou injustificadamente cinco dias consecutivos ao serviço e assim continuou até ao desfecho do processo disciplinar, na sequência do que lhe foi aplicada a pena de demissão.
    O agente, guarda principal da PSP, vinha sofrendo de , doença altamente incapacitante e degenerativa, doença essa que era do conhecimento dos seus superiores e já se encontrava numa situação de serviço moderado, doença essa muito dolorosa e que o obrigou a vários internamentos hospitalares.
    O agente é casado, tendo a seu cargo esposa e três filhos a cargo, de 17, 16 e 5 anos de idade.
    Trabalhou na Polícia por mais de 20 anos, desde os 18 de idade. Durante a sua carreira – não tendo conhecido outra na vida – foi louvado por duas vezes, uma vez em termos individuais e outra em termos colectivos e nunca foi alvo de qualquer sanção disciplinar”.


III – O Direito
1. As questões a resolver
Trata-se de saber se o acórdão recorrido violou a lei ao decidir que o acto recorrido violou o princípio da proporcionalidade ao ter optado pela pena de demissão em vez da pena de aposentação compulsiva.

2. O caso dos autos
O arguido do processo disciplinar é Guarda do CPSP, que vinha sofrendo de uma doença. Certo é que, pelos meios próprios, os Serviços de Saúde não consideraram que a doença incapacitasse o interessado, já que, com 21 anos de serviço, não foi aposentado por incapacidade.
Deixou de comparecer ao serviço, a partir de 14 de Agosto de 2013. Nunca mais voltou ao serviço até à data do despacho que o demitiu, em 17 de Junho de 2014.
É de presumir que o arguido não quis mais voltar ao serviço, certamente preferindo que fosse aplicada pena que o separasse do serviço.
Repare-se que o acórdão recorrido, nos factos provados, não estabelece uma relação de causa e efeito entre as faltas do arguido e a sua doença.

3. Penas de demissão e aposentação compulsiva
De acordo com os artigos 238.º a 240.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM):
“Artigo 238.º
(Aposentação compulsiva e demissão)
1. As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional.
2. As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
a) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;
b) Usar de poderes de autoridade não conferidos por lei ou abusar dos poderes inerentes às suas funções excedendo os limites do estritamente necessário, quando seja indispensável o uso dos meios de coerção ou de quaisquer outros susceptíveis de ofenderem os direitos do cidadão;
c) Encobrir criminosos ou prestar-lhes qualquer auxílio que possa contribuir para frustrar ou dificultar a acção da justiça;
d) Por virtude de falsas declarações causar prejuízo a terceiros ou favorecer o descaminho de armamento;
e) Praticar ou tentar praticar acto demonstrativo da perigosidade da sua permanência na instituição ou acto de desobediência grave ou de insubordinação, bem como de incitamento à desobediência ou insubordinação colectiva;
f) Praticar de forma frustrada, tentada ou consumada crime de furto, roubo, burla, abuso de confiança, peculato, concussão, extorsão, peita, suborno e corrupção, associação de malfeitores, consumo e tráfico de estupefacientes, falsificação de documentos e pertença a sociedade secreta;
g) Tomar parte ou interesse, directamente ou por interposta pessoa, em qualquer contrato celebrado ou a celebrar por qualquer serviço da Administração Pública;
h) Violar segredo profissional ou cometer inconfidência de que resulte prejuízo para o Território ou para terceiros;
i) Se constituir na situação de ausência ilegítima durante 5 dias seguidos ou 10 interpolados, dentro do mesmo ano civil;
j) Aceitar, directa ou indirectamente, dádiva, gratificação ou participação em lucros ou outras vantagens patrimoniais, em resultado do lugar que ocupa, ainda que sem o fim de acelerar ou retardar qualquer serviço ou expediente;
l) Abusar habitualmente de bebidas alcoólicas ou consumir ou traficar estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;
m) For cúmplice ou encobridor de qualquer crime previsto nas alíneas anteriores:
n) Praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função.
Artigo 239.º
(Aposentação compulsiva)
1. A pena de aposentação compulsiva é especialmente aplicável nos casos em que se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
2. Em qualquer caso, a pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o militarizado reunir, pelo menos, 15 anos de tempo de serviço, sem o que lhe será aplicada a pena de demissão.
Artigo 240.º
(Demissão)
A pena de demissão é aplicada ao militarizado que:
a) Tiver praticado qualquer crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, com flagrante e grave abuso da função que exerce e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Tiver praticado, ainda que fora do exercício das funções, crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos que revele ser o seu autor incapaz ou indigno da confiança necessária ao exercício da função;
c) Praticar ou tentar praticar qualquer acto previsto nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º”.

O acórdão recorrido entendeu que à falta disciplinar prevista nos artigos 238.º, n.º 2, alínea i) e 240.º, alínea c) (situação de ausência ilegítima durante 5 dias seguidos ou 10 interpolados, dentro do mesmo ano civil) é aplicável as penas de aposentação compulsiva ou demissão.
Não parece ser a melhor interpretação.
Aliás, foi esta nossa posição dubitativa expressa no acórdão de 21 de Janeiro de 2015, no Processo n.º 26/2014, onde dissemos:
“Decorre das disposições legais acima transcritas que tanto a pena de aposentação compulsiva como a de demissão pode ser aplicada às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional, sendo este o pressuposto de aplicação dessas penas disciplinares, em princípio.
No caso vertente, foi imputada à recorrente a ausência ilegítima no serviço por 11 dias seguidos, que se integra perfeitamente na previsão da al. i) do n.º 2 do art.º 238.º do EMFSM.
Repare-se que a mesma situação – “a ausência ilegítima durante 5 dias seguidos ou 10 interpolados, dentro do mesmo ano civil”, é também prevista na al. c) do art.º 240.º do EMFSM como uma das circunstâncias que legitimam a aplicação da pena de demissão.
E se se concluir pela “incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções”, é especialmente aplicável a pena de aposentação compulsiva, desde que o militarizado reúna, pelo menos, 15 anos de tempo de serviço.
Ora, tendo em consideração as disposições que prevêem respectivamente a “aposentação compulsiva e demissão” (art.º 238.º), a “aposentação compulsiva” (art.º 239.º) e a “demissão” (art.º 240.º), cuja regulamentação se diverge da consagrada no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau sobre a mesma matéria, que tem apenas uma única norma (art.º 315.º) a reger em conjunto o pressuposto e as situações de aplicação de “aposentação compulsiva ou demissão”, parece se poder tirar conclusão de que é intenção do legislador mandar aplicar a pena de demissão, e não aposentação compulsiva, aos casos referidos nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do art.º 238.ºdo EMFSM.
Até se pode pensar que no art.º 240.º do EMFSM são previstas situações às quais cabe necessariamente a pena de demissão, independentemente de a conduta do militarizado integrar ou não a cláusula geral de inviabilidade de manutenção da relação funcional estabelecida no n.º 1 do art. 238.º”.
Enfrentemos as questões em apreço:
- Às condutas previstas no artigo 240.º é aplicável a pena de demissão e não já, em alternativa, as penas de aposentação compulsiva ou demissão?
- Suposta a resposta afirmativa à primeira questão, tem a Administração de provar os factos que mostrem estar inviabilizada a manutenção da relação funcional?
Quanto à primeira questão.
A lei formula quatro regras.
Na primeira (artigo 238.º, n.º 1) estatui que as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional.
Na segunda (artigo 238.º, n.º 2), exemplifica (“nomeadamente”) condutas a que cabem as mesmas penalidades.
Na terceira (artigo 239.º, n.º 1), dispõe que a pena de aposentação compulsiva é especialmente aplicável nos casos em que se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
Na quarta (artigo 240.º) especifica, em três alíneas, condutas a que cabe a pena de demissão. Nas duas primeiras alíneas do artigo 240.º prevê a prática de crimes dolosos. Na alínea c) prevê apenas algumas das condutas previstas no artigo 238.º n.º 2 [alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º].
Ora, isto só pode significar que aos factos previstos no artigo 240.º é aplicável apenas a pena de demissão e não já, em alternativa, as penas de aposentação compulsiva ou demissão.
Já quanto às restantes alíneas do artigo 238.º n.º 2 [alíneas a), b), d), h), m) e n)] cabe, em alternativa, as penas de aposentação compulsiva ou demissão, conforma a gravidade dos factos.
Mas haverá algum princípio que inviabilize que, no direito disciplinar, se prevejam penas fixas?
Não há.
De acordo com ao artigo 232.º do EMFSM na aplicação das penas atender-se-á à natureza e gravidade da infracção, à categoria ou posto do infractor, ao grau de culpa, à sua personalidade, ao seu nível cultural e a todas as circunstâncias que militem contra ou a favor do arguido.
Por outro lado, nos artigos 200.º e 201.º estabelecem-se circunstâncias que atenuam a responsabilidade disciplinar por enfraquecerem a culpabilidade do arguido ou diminuírem a gravidade do facto e que agravam a mesma responsabilidade, por aumentarem a culpabilidade do arguido ou o grau de ilicitude do facto. Evidentemente, que, no caso de penalidades fixas as circunstâncias atenuantes ou agravantes são inoperativas no sentido de graduação das penas, sem prejuízo de, poder ocorrer atenuação especial da pena, impondo-se penalidade inferior se houver diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do arguido ou da necessidade da pena (artigo 66.º, n.º 1, do Código Penal).
Há, ainda, circunstâncias que dirimem ou excluem a responsabilidade disciplinar (artigos 202.º e 203.º).
Ora, nenhuma destas prescrições excluem a possibilidade de a certas condutas só poder ser imposta uma penalidade (fixa), sem prejuízo de poder ser imposta outra, inferior, por atenuação especial ou até nenhuma, por dirimição ou exclusão da responsabilidade disciplinar.

4. Inviabilização da manutenção da relação funcional
Tem a Administração de provar os factos que mostrem estar inviabilizada a manutenção da relação funcional no caso das condutas previstas no artigo 240.º?
Ou, provada uma das condutas previstas no artigo 240.º, cabe ao interessado a prova de que não há inviabilização da relação funcional?
Temos entendido que a inviabilização da manutenção da relação funcional, como um conceito indeterminado, é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva, sendo uma cláusula geral e não um facto que tenha de ser objecto de prova (acórdão de 21 de Janeiro de 2015, Processo n.º 26/2014, entre vários).
E também que o preenchimento da cláusula geral de inviabilidade da manutenção da relação funcional constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose efectuados com uma ampla margem de decisão (acórdão de 29 de Junho de 2005, Processo n.º15/2005, entre muitos).
Esta jurisprudência é de manter.
Assim, a conclusão da inviabilização da manutenção da relação funcional deve ser tirada pela Administração em todos os casos em que enquadre a conduta do arguido numa daquelas punidas com as penas de demissão ou aposentação compulsiva, a concretizar por juízos de prognose efectuados com uma ampla margem de decisão.
Concluindo o que atrás dissemos: o acórdão recorrido ao decidir que à falta disciplinar dos autos era aplicável as penas de aposentação compulsiva ou demissão violou a lei.

5. Princípio da proporcionalidade
Não obstante, vejamos se a Administração violou o princípio da proporcionalidade ao punir o arguido com a pena de demissão.
Este Tribunal já se pronunciou algumas vezes sobre os poderes da Administração no âmbito do seu poder disciplinar, designadamente na escolha da pena e da medida da pena.
Igualmente, já nos pronunciámos sobre o conteúdo dos poderes discricionários da Administração e dos poderes dos tribunais na sua sindicância.
Também já decidimos sobre o conteúdo do princípio da proporcionalidade e de que maneira a Administração pode afectar as posições dos particulares.
Vamos recordar alguns desses momentos, cuja pronúncia aqui reiteramos.
Em primeiro lugar, é jurisprudência firme deste Tribunal que a aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade (entre outros, os acórdãos de 28 de Julho de 2004 e 21 de Janeiro de 2015, respectivamente, nos Processos n. os 27/2003 e 26/2014).
Temos, também, entendido, sem discrepâncias, que no âmbito da discricionariedade ou, em geral, naqueles casos em que é reconhecida uma margem de livre apreciação e decisão à Administração, não cabe ao Tribunal dizer se a decisão da Administração foi aquela que o tribunal teria proferido se a lei lhe cometesse essa atribuição. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, por violação do princípio da proporcionalidade ou outro (acórdãos de 19 de Novembro de 2014 e 28 de Janeiro de 2015, respectivamente, nos Processos n. os 112/2014 e 123/2014).
Por outro lado, também em abundantíssima jurisprudência, temos reiterado que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem (entre muitos, os acórdãos de 21 de Janeiro de 2015, 13 de Novembro de 2013, 14 de Dezembro de 2012 e 25 de Julho de 2012respectivamente, nos Processos n. os 20/2014, 23/2013, 69/2012 e 8/2012).
Sobre o conteúdo do princípio da proporcionalidade, remetemos para o nosso acórdão de 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000.

6. Novamente, o caso dos autos
Salvo o devido respeito, o acórdão recorrido não atentou devidamente na gravidade da conduta do arguido, desvalorizou a necessidade de disciplina estrita nas forças de segurança e relevou aspectos pessoais e familiares do arguido de discutível interesse.
O arguido abandonou as fileiras do CPSP, sem ter apresentado qualquer justificação para tal. Nunca mais regressou.
Trata-se de um militarizado das forças policiais.
Não podemos comparar a gravidade das condutas de um qualquer funcionário que falta alguns dias ao serviço, sem justificação, punido com as penas de aposentação compulsiva ou demissão, com a de um membro das forças de segurança que deixa definitivamente de comparecer ao serviço, sem dizer nada.
É sabido que a deserção de um militar se reveste da maior gravidade, sendo severamente punida, em termos criminais, mesmo em tempo de paz.
Salvaguardadas as devidas proporções – por não se tratar de um militar – o abandono das fileiras não pode ser desvalorizado só porque o arguido tem três filhos menores a seu cargo e sofre de uma doença física, não mental.
Aliás, como se disse, o acórdão recorrido, nos factos provados, não estabelece uma relação de causa e efeito entre as faltas do arguido e a sua doença.
A lei protege os funcionários públicos na doença, desde que esta esteja devidamente comprovada.
O que mostram os autos é que o arguido, por razões que só ele sabe, quis deixar o serviço.
Mal andaríamos se os membros das forças policiais deixassem de comparecer ao serviço definitivamente e esperassem compreensão dos seus superiores.
Sem querer comparar situações diversas, sempre diremos que, num caso recente, não aceitámos que tivesse havido violação do princípio de proporcionalidade na punição com a demissão, de um polícia que faltou 11 dias ao serviço, sem justificação, estando de férias no exterior, confirmando decisão do TSI (acórdão de 21 de Janeiro de 2015, no Processo n.º 26/2014).
Não podemos censurar a punição, com a demissão, de militarizado que abandona definitivamente o serviço, sem qualquer justificação.
Não se vislumbra qualquer violação do princípio da proporcionalidade, muito menos em termos intoleráveis.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso jurisdicional, revogam o acórdão recorrido e negam provimento ao recurso contencioso.
Custas pelo recorrido, nas duas instâncias, com taxas de justiça fixadas em 8 e 6 UC, respectivamente, no TSI e no TUI.
Macau, 4 de Novembro de 2015.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho




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Processo n.º 71/2015