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Processo n.º 83/2015 Recurso jurisdicional em matéria penal
Recorrente: Arguida A.
Recorrido: Ministério Público e assistente B.
Assunto: Omissão, na acusação, do local onde foi praticado o crime. Aplicação da lei penal de Macau. Artigo 339.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Relegar a decisão sobre a jurisdição dos tribunais de Macau para a sentença.
Data do Acórdão: 22 de Janeiro de 2016.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
I – A omissão, na acusação, do local onde foi praticado o crime de falsificação, é susceptível de ser suprida na sentença, desde que, oportunamente, se tenha dado cumprimento ao disposto no artigo 339.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se tal for relevante para aplicação da lei penal de Macau, face ao disposto no artigo 4.º do Código Penal.
II – Havendo controvérsia sobre se o crime foi praticado em Macau, deve a decisão sobre a jurisdição dos tribunais de Macau ser relegada para a sentença, após produção de prova na audiência de julgamento.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
I – Relatório
O Ex.mo Juiz do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), por despacho de 19 de Janeiro de 2015, decidiu:
1 – Convolar a acusação da arguida A da prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, previsto e punível pelos artigos 244.º n.º 1, alíneas a) e b) e 245.º do Código Penal e de um crime de uso de documento falso, previsto e punível pelos artigos 244.º, n.º 1, alínea c) e 245.º do Código Penal, para a prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, previsto e punível pelos artigos 244.º n.º 1, alíneas a) e b) e 245.º do Código Penal, por existência de concurso aparente de normas;
2 - Declarar a incompetência do Tribunal de Macau quanto ao julgamento dos factos de falsificação de documento de especial valor, porque ocorridos em Hong Kong, por não verificação das condições da aplicação da lei de Macau reguladas no artigo 5.º do Código Penal, e o consequente arquivamento dos autos nos termos do artigo 22.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Recorreram o Ministério Público e o assistente B para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), que, por Acórdão de 25 de Junho de 2015, revogou o despacho recorrido e determinou o julgamento pelos dois crimes da acusação, tendo entendido que na acusação não se refere que a falsificação do testamento (o documento em causa) ocorreu em Hong Kong e que, mesmo que os tribunais de Macau não fossem competentes para o julgamento dos factos praticados em Hong Kong, relativos à falsificação do documento, sempre teria a arguida de ser julgada pelo uso do documento falso, factos ocorridos em Macau.
Mais decidiu o acórdão recorrido ter sido prematura a convolação operada.
Recorre, agora, a arguida A, para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões e/ou argumentos:
- Nenhum resultado típico do crime de falsificação de documento de especial valor, previsto e punível pelos artigos 244.º, n.º 1, alíneas a), b) ou c) e 245.º do Código Penal, ocorreu ou se produziu em Macau.
- Quanto ao decidido sobre a prematura convolação da qualificação jurídico-penal feita no despacho de fls. 2618-2620 v. do Tribunal Judicial de Base, impõe-se dizer que tal entendimento do Tribunal a quo não reflecte o sentido e alcance das normas que impõem tal dever de convolução em tempo útil, ou seja, antes do julgamento, e se afasta do que tem sido decidido no TSI sobre o princípio da economia processual e da proibição de actos inúteis no processo penal.
- Por outro lado, não há qualquer perigo de no caso concreto se deixar impune a alegada conduta delituosa praticada em Macau: uso do documento falsificado.
- Como resulta dos autos, o arguido C foi julgado e absolvido, por decisão transitada em julgado, no processo CR1-09-0203-PCC, dos crimes de falsificação e de uso de documento de especial valor ( certidão de fls. 2613 a 2617).
- O despacho de fls. 495 do Ex.mo Delegado do Procurador sobre o arquivamento do inquérito por inadmissibilidade do procedimento criminal pressupõe que a procuração de fls. 192-194 foi lavrada por instrumento público no Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong pelo Cônsul-Geral D no exercício de funções consulares.
- O mesmo é pressuposto da acusação pública, quando imputa à arguida a prática do crime de falsificação na modalidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal, ou seja, quando a acusa de fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante.
- Nos presentes autos não é possível configurar uma situação de co-autoria ou de autoria mediata, pela simples razão de que o processo já não comporta uma pluralidade de agentes do crime de falsificação de documento por o arguido C já ter sido absolvido, por decisão transitada em julgado, no processo CR1-09-0203-PCC, dos crimes de que foi acusado em co-autoria com a ora recorrente.
O Ex.mo Procurador-Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso.
  
II – Os factos
Factos provados nos autos:
A) A acusação dos autos é do seguinte teor quanto aos elementos objectivos do crime:
“1)
A 1ª arguida A teve uma relação conjugal com E, tendo com ele 4 filhos, ou seja F, G, B e H (vide as fls. 79, 82, 153 e 166).
O 2º arguido C era chefia de administração da fábrica de vestuário I aberta por E (vide as fls. 168).
E faleceu por doença em Junho de 2004 (vide as fls. 153 e 164).
2)
Para vender os bens imóveis do seu marido E, a 1ª arguida A e o 2º arguido C, em data não determinada, fabricaram uma procuração, com 19 de Maio de 2003 como data de outorga e com o Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong como local de outorga, tendo a procuração por conteúdo a atribuição, ao 2º arguido C, os poderes de gestão e venda dos seguintes bens imóveis em momento que lhe parecia próprio (vide as fls. 509 a 511):
- 2 fracções para uso industrial, sitas na [Endereço (1)] e [Endereço (2)];
- 4 fracções habitacionais, sitas na [Endereço (3)], e [Endereço (4)].
- a loja “B1CC1” no R/C, junto com a sobreloja, na [Endereço (5)].
Dessa procuração constam as assinaturas e rubricas dos dois constituintes E e da 1ª arguida A (vide as fls. 509 a 511).
Em 29 de Maio de 2003, sob indicação da 1ª arguida A, o 2º arguido C, munido daquela procuração, deslocou-se a um escritório forense em Macau, e sob testemunho do Notário Privado K, representou E e a 1ª arguido A na assinatura de uma escritura de compra e venda, vendendo para a sociedade “J”, pelo preço global de MOP$3.800.000,00, as fracções para uso industrial, fracções habitacionais e loja junto com a sobreloja identificadas na procuração (vide as fls. 168v, 202 a 204v).
3)
Conforme as conclusões da perícia caligráfica realizada pelo Departamento de Ciências Forenses da PJ, as assinaturas “xxx” e “E” constantes da procuração acima referida não foram feitas pela própria pessoa de “E” (vide as fls. 478 a 483 e 496 a 497).
Segundo o registo de Hong Kong Hospital, em 14 de Maio de 2003, por doença, E foi levado por ambulância para a Unidade de Cuidados Intensivos deste Hospital (vide as fls. 419).
Além disso, segundo a declaração prestada pelo Hong Kong Hospital, durante o período de internamento entre 14 de Maio e 22 de Maio de 2003, E nunca saiu do hospital (vide as fls. 21, 49, 417 a 418 e 420 a 425).
Em 19 de Maio de 2003, cerca das 13h00, deu-se de comer a E, e pelas 13h00, E submeteu-se ao exame no hospital (vide as fls. 418, 431 e 434)”.
B) O Ex.mo Juiz do 4.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base (TJB), por despacho de 19 de Janeiro de 2015, decidiu:
1 – Convolar a acusação da arguida A da prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, previsto e punível pelos artigos 244.º n.º 1, alíneas a) e b) e 245.º e de um crime de uso de documento falso, previsto e punível pelos artigos 244.º, n.º 1, alínea c) e 245.º, para a prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, previsto e punível pelos artigos 244.º n.º 1, alíneas a) e b) e 245.º todos do Código Penal, por existência de concurso aparente de normas;
2 - Declarar a incompetência do Tribunal de Macau quanto ao julgamento dos factos de falsificação de documento de especial valor, porque ocorridos em Hong Kong, por não verificação das condições da aplicação da lei de Macau reguladas no artigo 5.º do Código Penal, e o consequente arquivamento dos autos nos termos do artigo 22.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
C) O arguido C foi julgado e absolvido, por decisão transitada em julgado, no processo CR1-09-0203-PCC, dos crimes de falsificação e de uso de documento de especial valor, a que se refere a acusação transcrita em A) (certidão de fls. 2613 a 2617).

III - O Direito
1. As questões a resolver
Trata-se de saber se o acórdão recorrido violou as regras dos artigos 4.º e 5.º do Código Penal, no que concerne à jurisdição dos tribunais de Macau para julgar a arguida pela prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, previsto e punível pelos artigos 244.º n.º 1, alíneas a) e b) e 245.º do Código Penal.
O conhecimento do presente recurso jurisdicional tem lugar ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 583.º do Código de Processo Civil (infracção das regras de competência dos tribunais), aplicável subsidiariamente nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal, pelo que não se conhecerão de outras questões conhecidas pelo acórdão recorrido, designadamente da decidida prematuridade da decisão sobre convolação, a que se refere o despacho do Ex.mo Juiz do 4.º Juízo Criminal.

2. Falta de menção na acusação do local da prática do crime de falsificação
Ao contrário do que entendeu o Ex.mo Juiz do 4.º Juízo Criminal, da acusação não consta que a procuração foi fabricada no Consulado Geral de Portugal em Hong Kong.
O que nela se diz é que “Para vender os bens imóveis do seu marido E, a 1ª arguida A e o 2º arguido C, em data não determinada, fabricaram uma procuração, com 19 de Maio de 2003 como data de outorga e com o Consulado-Geral de Portugal em Hong Kong como local de outorga …”.
Em nenhum local se diz na acusação que a falsificação ocorreu em Hong Kong.
Certo que também em nenhum local se diz que foi efectuada em Macau, conquanto tenha sido utilizada em Macau.
Não é possível deduzir da incriminação da acusação pela alínea b) do n.º 1 do artigo 244.º do Código Penal, que o Ministério Publico considera que a procuração foi outorgada no Consulado de Portugal em Hong Kong. Por um lado, a incriminação também refere a alínea a) do mesmo número e artigo, que prevê a falsificação material. Mas ainda que fosse de extrair alguma ilação da referência à alínea b) sobre o pensamento do autor da acusação, isso seria totalmente irrelevante, desde que não se traduzisse em factos da acusação sobre o local da prática do crime, como não se traduziu efectivamente.
O mesmo se diga de outros despachos do Ex.mo Delegado do Procurador.
Em conclusão, da acusação não consta expressamente qual o local da prática da falsificação da procuração, nem tal local é passível de ser inferido da mesma acusação.

3. Concretização do local da falsificação na audiência de julgamento
Não constando da acusação o local da prática do crime de falsificação de documento, pode a omissão ser suprida pelo tribunal de julgamento?
Se no decurso da audiência de julgamento resultar qual foi o local onde foi feita a falsificação, em Macau, em Hong Kong ou noutro local, deve o juiz que preside ao julgamento comunicar ao arguido o suprimento da omissão da acusação e conceder-lhe tempo necessário para a defesa, nos termos do artigo 339.º do Código de Processo Penal, onde se dispõe:
“Artigo 339.º
(Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos com relevo para a decisão da causa mas não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, e que não importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa”.

Não há aqui nenhuma violação do princípio acusatório. Trata-se de concretizar um elemento menor da acusação, de forma a decidir-se se os tribunais de Macau têm jurisdição sobre o caso.

4. Conhecimento do pressuposto da competência
Independentemente da qualificação doutrinal da aplicabilidade da lei penal pelos tribunais de Macau, a falta de jurisdição dos tribunais de Macau, em face do disposto nos artigos 4.º e 5.º do Código Penal, é tratada como excepção dilatória, por falta de um pressuposto processual, a jurisdição ou competência dos tribunais de Macau. É isso que resulta dos artigos 21.º e 22.º, designadamente do n.º 3, do Código de Processo Penal e 413.º, alínea a) do Código de Processo Civil.
Quando os factos atinentes ao pressuposto processual da jurisdição são controvertidos, deve relegar-se a apreciação dele para a sentença, após produção de prova da matéria da excepção juntamente com a da causa, nos termos do artigo 429.º, n.º 3, do Código de Processo Civil1, aplicável subsidiariamente nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Em conclusão, o acórdão recorrido tinha razão ao dizer que antes do julgamento não era possível dizer que o crime foi praticado em Hong Kong, tendo andado menos bem ao decidir que a lei penal de Macau é aplicável ao caso. Nada obsta a que se relegue o conhecimento da questão para a sentença, apesar de a recorrente pretender mais, o arquivamento do processo.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento parcial ao recurso, revogam o acórdão recorrido e relegam para a sentença a decisão sobre a jurisdição dos tribunais de Macau para o julgamento do crime de falsificação.
Custas pela arguida, com taxa de justiça fixada em 6 UC.
Macau, 22 de Janeiro de 2016.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 Neste sentido, CÂNDIDA PIRES e VIRIATO LIMA, Código de Processo Civil Anotado e Comentado, Macau, 2006, Volume I, p. 123. Para o Direito Português, face a evolução semelhante, J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, Volume 1.º, 2.ª edição, p. 203, no mesmo sentido.
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