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Processo n.º 81/2015
Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência
Recorrente: A
Recorrido: Ministério Público
Data da conferência: 22 de Janeiro de 2016
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Fixação de jurisprudência
 - Oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito

SUMÁRIO
No que concerne à existência de dois acórdão que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, um dos requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, são exigidos:
- As questões decididas em dois acórdãos são idênticas;
- A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental, que versa sobre a matéria de direito, e não de facto;
- A oposição de acórdãos deve ser expressa e não apenas tácita, não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro.

A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão de 17 de Julho de 2015, proferido pelo Tribunal de Segunda Instância nos autos de recurso penal n.º 368/2014, alegando que esta decisão judicial adoptou uma solução que está em oposição com a solução adoptada, relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, no Acórdão do mesmo Tribunal de 19 de Março de 2009, proferido no processo n.º 572/2008, sendo este último o Acórdão fundamento do recurso.
Na tese do recorrente, em dois acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, que tinham por objecto circunstâncias de facto e de direito idênticas, verificam-se duas soluções opostas sobre a mesma questão de direito que é a seguinte: para efeitos de imputação do crime de branqueamento de capitais previsto no art.º 3.º da Lei n.º 2/2006 ao agente que realiza, de forma dissimulada, o pagamento de um suborno a um funcionário, pode o crime precedente ser o crime de corrupção passiva para acto ilícito praticado pelo funcionário? Uma vez que:
- No Acórdão recorrido entendeu-se que sim, considerando o Tribunal de Segunda Instância que, para efeitos de imputação do crime de branqueamento de capitais ao recorrente, o crime precedente deve ser o crime de corrupção passiva para acto ilícito praticado por C, e não o crime de corrupção activa para acto ilícito praticado pelo recorrente.
- Diversamente, no Acórdão fundamento entendeu-se que não, opinando que, para efeitos de imputação do crime de branqueamento de capitais a uma arguida, o crime precedente não pode ser o crime de corrupção passiva para acto ilícito praticado pelo funcionário, devendo antes ser o crime de corrupção activa para acto ilícito praticado por outro arguido.
E pede que seja admitido o recurso, pois se mostram preenchidos todos os pressupostos de que depende a sua admissibilidade, nos termos do art.º 419.º e 420.º do Código de Processo Penal.

Respondeu o Ministério Público, entendendo que se deve rejeitar o recurso, em virtude da inadmissibilidade do mesmo, já que:
1. Nos termos do art.º 423.º n.º 1 do Código de Processo Penal, o requerimento para recurso extraordinário pode ser rejeitado por se ocorrer motivo de inadmissibilidade do recurso ou se verificar a não oposição de julgados.
2. No acórdão proferido pelo TSI nos Autos de Recurso em Processo Penal n.º 572/2008, como fundamento do recurso, de acordo com os factos mencionados na motivação do recurso apresentada pela recorrente B ao TSI, entendeu a recorrente que a mera colaboração com o patrão – arguido D que tinha sido condenado pela prática do “crime de corrupção activa para acto ilícito”, p. e p. pelo art.º 339.º n.º 1 do Código Penal, no pagamento, em forma sinuosa, dos subornos ao arguido C, não era um “crime de branqueamento de capitais”, p. e p. pelo art.º 3.º n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 2/2006, de 3 de Abril, já que o crime precedente era o “crime de corrupção activa para acto ilícito” com a moldura penal não superior a 3 anos de prisão. Tal recurso foi julgado procedente pelo TSI.
3. No acórdão recorrido que foi proferido pelo TSI nos Autos de Recurso em Processo Penal n.º 368/2014, de acordo com os factos mencionados na motivação do recurso apresentada pelo recorrente A ao TSI, entendeu o recorrente que, por ter sido condenado pela prática do “crime de corrupção activa para acto ilícito”, p. e p. pelo art.º 339.º, n.º 1 do Código Penal, o acto de pagamento dos subornos ao arguido C praticado pelo mesmo já não era um “crime de branqueamento de capitais”, p. e p. pelo art.º 3.º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 2/2006, de 3 de Abril, visto que o crime precedente era o “crime de corrupção activa para acto ilícito” com a moldura penal não superior a 3 anos de prisão.
4. No acórdão recorrido do TSI foram ponderados os motivos do recurso exposto pelo recorrente A, tomando-se expressamente a posição: “Os ora recorrentes não só cometeram corrupção activa por objectivos mencionados no n.º 1 do art.º 337.º do Código Penal, mas também aceitaram a solicitação do corrupto passivo, no sentido de efectuar o pagamento, em forma sinuosa, dos subornos, com vista a prestarem colaboração na dissimulação da origem do crime, consequentemente, os recorrentes são punidos com pena de 1 a 8 anos de prisão, pela prática, em comum com o corrupto passivo, do “crime de branqueamento de capitais”, p. e p. pelo art.º 3.º, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei n.º 2/2006, cujo crime precedente é o crime cometido pelo corrupto passivo (n.º 1 do art.º 337.º do Código Penal)”.
5. Ora, dos dois autos de recurso penal envolvidos neste recurso extraordinário se vêem apenas dois factos completamente diferentes. No primeiro caso, o recorrente B colaborou com o corruptor, enquanto o recorrente do segundo caso (ora recurso extraordinário), A, colaborou com o corrupto passivo.
6. Assim sendo, pode afirmar-se que são diferentes as matérias de facto em que se fundamentam os dois acórdãos mencionados pelo recorrente A no presente recurso extraordinário, de que resulta evidentemente a diferença na aplicação da lei, não existe comparabilidade entre os dois acórdãos e não se verifica neste requerimento para recurso extraordinário qualquer um dos requisitos vedados pelo art.º 419.º do Código de Processo Penal, mormente as questões decididas em dois acórdãos não são idênticas.
7. Sem margem de dúvidas, o ora requerimento para recurso extraordinário formulado com base no acórdão que serve de fundamento e no acórdão recorrido não preenche os pressupostos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previstos no art.º 419.º do Código de Processo Penal.
8. Por conseguinte, o requerimento para recurso extraordinário formulado pelo recorrente A deve ser imediatamente rejeitado por se ocorrer motivo de inadmissibilidade do recurso.

No seu parecer, a Exma. Procuradora-Adjunta manteve a posição já assumida na resposta à motivação do recurso.

2. Fundamentos
Cabe agora decidir se o recurso deve ser rejeitado, tal como opina o Ministério Público, ou se deve prosseguir, nos termos do art.º 423.º do Código de Processo Penal.

2.1. Os requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal
O art.º 419.º do Código de Processo Penal de Macau, na redacção introduzida pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20 de Dezembro, prevê os fundamentos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, dispondo o seguinte:
“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.”

Daí decorre que são requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência:
- Existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- As decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado;
- Não é admissível recurso ordinário do acórdão recorrido;
- O recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (n.º 1 do art.º 420.º do Código de Processo Penal de Macau).

Analisando o caso ora em apreciação, constata-se que o único requisito cuja verificação foi posta em causa se refere à existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o que implica que há de ver se, no nosso caso concreto, o Acórdão fundamento e o Acórdão recorrido abordam a mesma questão de direito e, no caso positivo, se encontram soluções opostas.

2.2. Existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas
Relativamente ao pressuposto em questão, é de salientar, desde logo, que tanto a doutrina como a jurisprudência apontam para a identidade da questão decidida em dois acórdãos.
Como escrevem Manuel Leal-Henriques e Simas Santos, deve existir uma identidade “entre as questões debatidas em ambos os acórdãos”, que “tanto se pode traduzir em mesma questão ou em questões diversas se, neste último caso, se puder afirmar que para a sua decisão os dois acórdãos assacados de contraditórios se pronunciaram de maneira oposta àcerca de qualquer ponto jurídico neles discutido (isto é, verifica-se oposição ainda quando os casos concretos apreciados apresentam particularidades diferentes, se tal não impede que a questão de direito em apreço nos dois acórdãos seja a mesma e haja sido decidida de modo oposto)”.1
Para além disso, a questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental, que versa sobre a matéria de direito, e não de facto, não obstante a identidade da questão decidida em dois acórdãos pressupõe que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões sejam também idênticos.
A oposição de acórdãos deve ser expressa e não apenas tácita, “não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em ambos os acórdãos”.2
E este Tribunal de Última Instância tem decidido que para efeitos de uniformização de jurisprudência a oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita. Não basta que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.3
Ao mesmo tempo, “a questão sobre a qual há oposição tem de ser uma questão de direito. Não pode ser uma questão de facto, até porque o TUI não aprecia, normalmente, matéria de facto”4, sendo certo que “os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos”.5

2.3. O caso dos presentes autos
Vistos os requisitos substanciais do recurso, resta decidir se, no nosso caso concreto, se verifica a existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas.
Ora, no Acórdão recorrido, de 17 de Julho de 2015 e no tocante ao crime de branqueamento de capitais, o Tribunal de Segunda Instância fez consignar o seguinte:
“Os recorrentes não só cometeram corrupção activa por objectivos mencionados no n.º 1 do art.º 337.º do código Penal, mas também aceitaram a solicitação do corrupto passivo, no sentido de efectuar o pagamento, em forma sinuosa, dos subornos, com vista a prestarem colaboração na dissimulação da origem do crime, consequentemente, os recorrentes são punidos com pena de 1 a 8 anos de prisão, pela prática, em comum com o corrupto passivo, do crime de branqueamento de capitais p.p. pelo art.º 3.º n.ºs 1, 2 e 3 da Lei n.º 2/2006, cujo crime precedente é o crime cometido pelo corrupto passivo (n.º 1 do art.º 337.º do Código Penal).”
E constata-se no Acórdão fundamento que, na apreciação do recurso interposto pela arguida B, que foi condenada pelo Tribunal Judicial de Base pela prática de um crime de branqueamento de capitais, o Tribunal de Segunda Instância tomou em consideração a factualidade dada como provada nos autos, da qual resulta que a arguida colaborou com o arguido D, de que era secretária, na dissimulação das vantagens por este prometidas pagar ao arguido C, por crimes de corrupção entre estes cometidos, bem como o facto de que foi o arguido D condenado como autor de 8 crimes de corrupção activa para acto ilícito e 7 crimes de corrupção activa para acto lícito, todos puníveis com pena de prisão de limite máximo não superior a 3 anos (cfr. art.º 339.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal), tendo concluído que, face ao estatuído no art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 2/2006, que exige que o crime antecedente (ao crime de branqueamento de capitais) seja punido com pena de limite máximo superior a 3 anos para que seja o (próprio) crime de branqueamento punível, ficou afastada a punibilidade da conduta da arguida B.
Na óptica do recorrente, está em causa a mesma questão de direito, sobre a qual o Acórdão recorrido se encontra em oposição com o Acórdão fundamento.
Não se nos afigura que assim seja.
É verdade que no Acórdão recorrido o Tribunal de Segunda Instância chegou a pronunciar expressamente que o crime de branqueamento de capitais tem como crime precedente a corrupção passiva para acto ilícito cometido pelo corrupto passivo.
E a condenação do ora recorrente pelo crime de branqueamento de capitais foi porque ele prestou colaboração na dissimulação da origem das vantagens pagas ao arguido C, efectuando o pagamento, em forma sinuosa, dos subornos.
No Acórdão fundamento, a arguida B foi absolvida do crime de branqueamento de capitais, pois ficou provado apenas que ela colaborou com o arguido D (corruptor activo), na dissimulação das vantagens por este prometidas pagar ao arguido C (corrupto passivo) e o arguido D foi condenado tão só pela prática de vários crimes de corrupção activa (e não pelo crime de corrupção passiva), todos puníveis com pena de prisão de limite máximo não superior a 3 anos.
É de salientar que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões em causa são distintas.
Por outro lado, não resulta do Acórdão fundamento que o Tribunal de Segunda Instância entendeu que o crime precedente do crime de branqueamento de capitais não pode ser o crime de corrupção passiva para acto ilícito praticado pelo funcionário, devendo antes ser o crime de corrupção activa para acto ilícito praticado por outro arguido.
Na realidade, o Tribunal de Segunda Instância absolveu a arguida B precisamente porque a punibilidade da sua conduta ficou afastada face ao limite máximo (não superior a 3 anos de prisão) da pena aplicável do “rime precedente”, que é corrupção activa.
Por outras palavras, o Tribunal de Segunda Instância considerou que, para efeitos de imputação do crime de branqueamento de capitais, o crime precedente não podia ser o crime de corrupção activa, afirmação esta contrária à alegação do ora recorrente.
Daí que o Acórdão recorrido (no sentido de afirmar que o crime de branqueamento de capitais tem como crime precedente a corrupção passiva para acto ilícito cometido pelo corrupto passivo) não se encontra, de modo algum, em oposição com o Acórdão fundamento (que negou a punibilidade do crime de branqueamento de capitais porque o crime precedente não pode ser o crime de corrupção activa).
Não se vislumbra nenhuma oposição, muito menos expressa, entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento sobre a mesma questão de direito
Pelo exposto, não se verifica um dos requisitos essenciais para que se mande prosseguir o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência (art.º 423.º n.º 1 do Código de Processo Penal de Macau), pelo que deve ser rejeitado o recurso.

3. Decisão
Face ao expendido, acordam em rejeitar o recurso.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC.

Macau, 22 de Janeiro de 2016

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 Código de Processo Penal de Macau, 1997, pág. 857.
2 Paulo Pinto de Albuquerque, citando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, no Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, pág. 1171.
3 Cfr. Ac. do TUI, de 14 de Maio de 2008 e de 11 de Março de 2009, nos Processos nºs 10/2008 e 6/2009.
4 Cfr. Ac. do TUI, de 23 de Setembro de 2015, no Processo nº 59/2015.
5 Cfr. Ac. do TUI, de 14 de Maio de 2008, no Processo n.º 10/2008.
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