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Processo nº 1067/2015 Data: 14.01.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “abuso de confiança”.
Erro notório na apreciação da prova.
Unidade e pluralidade de infracções.
Crime continuado.
Atenuação especial.


SUMÁRIO

1. A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.

2. Se da matéria de facto se retira que aquando do planeamento do crime, tinham os arguidos em mente dedicaram-se ao mesmo com “regularidade” e “estabilidade”, não se tratando de planear um (só) “acto isolado”, (pontual), mas sim de desenvolver uma “actividade duradoura” que lhes iria proporcionar uma situação de “desafogamento financeiro durante um certo período de tempo”, havendo, assim, uma só resolução criminosa e um só tipo legal violado, embora por várias vezes, (tantas quantos os actos através das quais o facto se realiza) adequado é considerar-se estar perante uma “unidade criminosa”.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 1067/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em audiência colectiva no T.J.B. responderam A e B, vindo a ser condenados como co-autores de 6 crimes de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 e 4 – dois pela alínea a) e os restantes 4 pela al. b) –, fixando-se-lhes a pena única de 4 anos e 9 meses de prisão

Os mesmos arguidos foram ainda condenados a pagar ao ofendido a quantia de MOP$1.062.754,00 e juros; (cfr., fls. 356 a 367-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformados, vieram os arguidos recorrer.

Na sua motivação de recurso e em sede das suas conclusões assacam ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”, considerando ainda que a sua conduta devia integrar à prática de um “crime continuado”, devendo também beneficiar de uma “atenuação especial da pena” nos termos do art. 66° e 201° do C.P.M.; (cfr., fls. 380 a 390-v).

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Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 361 a 362, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Resulta do que se deixou relatado que vem os arguidos recorrer do Acórdão do T.J.B. que os condenou nos termos já explicitados, considerando que o mesmo padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”, que a sua conduta devia integrar à prática de um “crime continuado”, devendo também beneficiar de uma “atenuação especial da pena” nos termos do art. 66° e 201° do C.P.M..

Sendo estas as “questões” colocadas, e, inexistindo outras de conhecimento oficioso, sobre as mesmas se passa a emitir pronúncia.

–– No que toca ao “erro notório na apreciação da prova”.

Ora, sobre este vício da decisão da matéria de facto tem este T.S.I. considerado que, “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 08.10.2015, Proc. n.° 746/2015 do ora relator).

Como também já tivemos oportunidade de consignar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 23.04.2015, Proc. n.° 216/2015, de 07.05.2015, Proc. n.° 162/2015 e 08.10.2015, Proc. n.° 746/2015).

Dito isto, e – cremos nós – esclarecido o sentido e alcance do vício em questão, vejamos.

No caso, a questão coloca-se em relação a uma “afirmação” feita no Acórdão recorrido, em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto, e em que o Colectivo a quo, referindo-se ao depoimento de uma testemunha que terá relatado sobre a dificuldade de se contabilizar o exacto número de fichas (empilhadas e) envolvidas em algumas (poucas) das situações que integram a conduta criminal dos arguidos descrita na acusação, faz a referência no sentido de considerar ser de “1%”; (cfr., fls. 362-v).

E, centrando o seu inconformismo neste “1%”, dizem os recorrentes que o que se devia considerar era “10%”.

Nesta conformidade, evidente se nos apresenta inexistir o assacado vício.

Com efeito, resulta claro do Acórdão recorrido que a referência ao dito “1%” não passa de um mero lapso de escrita, pois que em sede da decisão, não deixou o Colectivo de subtrair aos montantes que constavam da acusação quantias que correspondem aos tais “10%”, explicitando mesmo que da quantia total de MOP$1.135.300,00 se descontava MOP$103.500,00; (cfr., fls. 361-v).

Quanto a pretendida condenação na “forma continuada”, vejamos.

Sobre a matéria, teve já este T.S.I. oportunidade de considerar que:

“O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 21.07.2005, Proc. n.°135/2005, de 23.10.2014, Proc. n.° 531/2014 e mais recentemente de 12.02.2015, Proc. n.° 847/2014).

Também recentemente, por douto Acórdão de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, (e com abundante doutrina sobre a questão), voltou o Vdo T.U.I. a afirmar que:

“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”.

Por sua vez, e como também já decidiu este T.S.I.:

“A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.
Não obstante haver uma pluralidade de lesados, se provado não estiver que houve uma pluralidade de resoluções criminosas, nem sobre a existência de pressões exteriores a explicar as ulteriores condutas, e assim, a mostrar a menor censurabilidade destas, e que o que existiu foi uma única resolução assumida por ambos os arguidos dos autos de enganar (“burlar”) todos os que se apresentassem como interessados nos seus “serviços”, adequada não é a qualificação da sua conduta como a prática de 1 “crime continuado” ou como a prática de vários crimes “em concurso real””; (cfr., v.g., o Ac. de 28.02.2013, Proc. n.° 1006/2012, do ora relator).

E, nesta conformidade, ponderando no que se deixou exposto, e atentando-se na factualidade dada como provada, cremos que há que alterar a decisão prolatada.

Com efeito, colhe-se da matéria de facto dada como provada que (no caso dos autos) a conduta pelos arguidos desenvolvida em comparticipação – na forma de “co-autoria” – corresponde à execução de um plano préviamente engendrado, em que se definiu o “modus operandi” e respectivas tarefas individuais a levar a cabo com o objectivo conjunto de, à custa de terceiros, obter enriquecimento ilícito.

E, da descrição da mesma matéria de facto, resulta que logo aí, aquando do planeamento do crime, tinham os arguidos em mente dedicaram-se ao mesmo com “regularidade” e “estabilidade”, não se tratando de planear um (só) “acto isolado”, (pontual), mas sim de desenvolver uma “actividade duradoura” que lhes iria proporcionar uma situação de “desafogamento financeiro durante um certo período de tempo”, mostrando-se-nos, assim que o que existiu foi uma única resolução (inicial) pelos mesmos arguidos assumida.

Por sua vez, relevante também se mostra de atentar que a conduta se desenvolveu no período do 09.01.2015 a 02.02.2015, e mais concretamente, nos dias 09.01.2015, 10.01.2015, 11.01.2015, 12.01.2015, com apenas algumas horas de intervalo, e 01.02.2015 e 02.02.2015, também com poucas horas a intercalar.

Como se consignou no Ac. da Rel. de Lisboa de 20.01.1990, Proc. n.° 1258993, in B.M.J. 398°-575, “havendo uma só resolução e um só tipo legal violado, embora por várias vezes (tantas quantas os actos através das quais o facto se realiza), não se ultrapassa, em princípio, o domínio da unidade comum de infracções”.

Daí, e sem prejuízo do muito respeito por entendimento em sentido diverso, e ainda que de forma não totalmente coincidente com a pretensão apresentada, ser de conceder provimento aos recursos na parte em questão, alterando-se a qualificação jurídico-penal operada pelo T.J.B., ficando os arguidos condenados pela prática de 1 só crime de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 e 4, al. b) do C.P.M..

–– Quanto à “pena”.

Confrontando-nos assim com uma moldura penal de 1 a 8 anos de prisão, cabe agora ponderar da reclamada “atenuação especial da pena”.

Ora, tal atenuação da pena é peticionada invocando-se o art. 66° e 201° do C.P.M..

Em relação ao art. 66° temos vindo a considerar que “a atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais”, ou seja, quando a conduta em causa “se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”, (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 02.07.2015, Proc. n.° 601/2015 e de 08.10.2015, Proc. n.° 746/2015).

Por sua vez, prescreve o art. 201° do C.P.M. que:

“1. Quando a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for restituída, ou o agente reparar o prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
2. Se a restituição ou reparação for parcial, a pena pode ser especialmente atenuada”.

No caso, provado está que os arguidos são primários, que confessaram, na essência, os factos pelos quais estavam acusados, e que antes do início da audiência depositaram à ordem dos autos a quantia de HKD$708.000,00, destinando-a à reparação dos prejuízos causados ao ofendido.

Atento o que se expôs, (e tendo especialmente presente o total do prejuízo causado), adequado se nos apresenta uma atenuação especial da pena nos termos do transcrito art. 201°, n.° 2.

Nesta conformidade, e atento o estatuído no art. 67° do C.P.M., e ponderando o preceituado nos art°s 40° e 65° do mesmo código, considera-se justa e adequada a pena de 3 anos e 9 meses de prisão, nesta pena ficando assim os recorrentes condenados.

Decisão

4. Em face do exposto, julgam-se parcialmente procedentes os recursos, ficando os arguidos condenados pela prática como co-autores de 1 crime de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 e 4, al. b) do C.P.M., na pena de 3 anos e 9 meses de prisão.

Custas pelo seu decaimento por conta dos arguidos e ofendido/assistente com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs para os primeiros e 2 UCs para o segundo.

Macau, aos 14 de Janeiro de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa (Vencida com declaração do voto que se segue.)


Processo nº 1067/2015 (Autos de recurso penal)
Data: 14/01/2016

Declaração de voto

Vencida por seguintes razões:
Não concordo com a douta decisão de condenação dos arguidos num único crime de abuso de confiança, p.p. pelo art.199º nº1 e 4, al.b) do Código Penal, por entender que segundo a factualidade provada, os dois arguidos, após a subtracção ilícita das fichas do casino, foram já dividido o dinheiro ilicitamente obtido, e depois, decidiram a praticar novamente outras subtracções ilícitas. Daí, surgiu a renovação da resolução criminosa. Assim, não foram todas as práticas ilícitas surgidas duma só resolução criminosa. Factualidade desta é diferente do processo citado no douto acórdão (Ac. De 28.02.2013, Proc. nº 1006/2012).
Portanto, entendo que os dois arguidos devem ser condenados como co-autores, e em concurso efectivo de 6 crimes de abuso de confiança, p.p. pelo art.199º nº1 e 4, dois pela al.a) e restantes quatro pela al.b) do Código Penal, e devendo, nesta parte, ser mantido o decidido pelo Tribunal a quo.

A Segunda Adjunta

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Tam Hio Wa
Proc. 1067/2015 Pág. 16

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