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Proc. nº 23/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 25 de Fevereiro de 2016
Descritores:
-Quotas sociais
-Direitos patrimoniais
-Arrolamento de quotas

SUMÁRIO:

I. Direitos patrimoniais inerentes às quotas sociais são o direito de quinhoar nos lucros (art. 195º, nº1, al. a), e 377º do CSC), o de participar no acervo social (saldo de liquidação) na sequência da dissolução da sociedade, nos termos do art. 323º, CSC, e até mesmo, certos direitos especiais (desde que especialmente previstos nos estatutos) como os de uso de certos bens sociais, mas já não, durante a vida da sociedade, o direito sobre os bens da sociedade, uma vez que a quota é apenas uma participação no capital social, mas não no patrimônio social.

II. O arrolamento de quota engloba os direitos patrimoniais a ela inerentes, mas não se estende ao património social da sociedade.



Proc. nº 23/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, casada, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na Estrada de XX n.º XX, XX XX, “XX”, XX.º andar, requereu no Juízo de Família e Menores do TJB um procedimento cautelar especificado de arrolamento, contra o seu marido, B, casado, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na Avenida XX XX, XX, Bloco XX, XX.º andar XX, Macau.
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Foi, na oportunidade, decretado sem oposição o arrolamento dos bens da requerente e do requerido, incluindo quotas sociais detidas por este em três sociedades devidamente identificadas.
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A fls. 587 a requerente requereu que, com o arrolamento das quotas deveriam ser arrolados – por alegadamente serem um direito patrimonial inerente e integrante das quotas – deveriam ser também arrolados os bens das referidas sociedades, especificamente quotas indivisas de ¾ dos prédios que identifica.
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Por despacho de 11/06/2015 foi este pedido indeferido (fls. 590).
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Dessa decisão foi interposto recurso jurisdicional pela requerente, cujas alegações concluiu pelo seguinte modo:
«1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls. 590 na parte em que se indeferiu o arrolamento de uma quota indivisa de 3/4 dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs XXX35, XXX36, XXX37, XXX38, XXX39 e XXX40 (os “Imóveis”), de que é proprietária a Companhia de Fomento Predial C Limitada, quota indivisa que corresponde aos direitos patrimoniais inerentes à quota social que o Requerido detém na Companhia de Fomento Predial C Limitada, cujo arrolamento foi decretado a fls. 292 e seguintes dos autos (a “Quota”).
2. As razões do mencionado indeferimento constam do parágrafo 2 do despacho de fls. 590, consistindo basicamente no facto de o Tribunal recorrido entender que apenas a participação social em si pode ser objecto do arrolamento uma vez que este “não pode prejudicar as operações das sociedades, nem pode ser deduzido contra os imóveis que se encontram registados a favor destas”.
3. O n.º 6 do artigo 365.º do CPC dispõe que são “aplicáveis ao arrolamento as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrarie o estabelecido nesta secção ou a própria natureza daquela providência” pelo que em matéria de arrolamento de uma quota social é aplicável a alínea b) do n.º 4 do artigo 750.º do CPC.
4. Resulta do artigo 750.º n.º 4 al. b) do CPC que o arrolamento abrange “os direitos patrimoniais inerentes à quota, com ressalva dos lucros já atribuídos por deliberação dos sócios à data da penhora e sem prejuízo da penhora [arrolamento] deste crédito” ou seja abrange todas as partes integrantes da quota.
5. Ora, de entre os direitos patrimoniais inerentes a uma quota estão naturalmente aqueles que se reportam aos bens e/ou activos que são propriedade da sociedade cujo capital social a quota representa, nomeadamente os bens imóveis de que esta seja titular.
6. Consequentemente, os Imóveis, porque são a expressão dos direitos/activos patrimoniais inerentes à Quota encontram-se forçosamente abrangidos pelo arrolamento decretado a fls. 290 e, como tal, podem e devem ser destacados para efeitos de serem arrolados isoladamente, conforme requereu a Recorrente a fls. 587, atenta a finalidade desta providência cautelar como único meio efectivo de se evitar a diminuição drástica do valor dos bens comuns a partilhar entre os cônjuges.
7. A suportar o referido entendimento - isto é da possibilidade de se arrolarem os Imóveis isoladamente - está ainda o facto de, em virtude do disposto no artigo 809.º do Código Civil (CC) (aplicável ao arrolamento também por força da remissão contida no n.º 6 do artigo 360.º do CPC), serem ineficazes em relação à Recorrente e ao arrolamento de bens comuns quaisquer actos ou deliberações que viessem a implicar a diminuição do valor da Quota, como sucederia com a deliberação social que aprovasse a venda dos Imóveis.
8. A Recorrente, como titular meeira da Quota, tem inclusive legitimidade para a prática de todos os actos que se mostrem indispensáveis à conservação da participação social em apreço, mormente os meios de conservação da garantia patrimonial previstos nos artigos 600.º e seguintes do CC, o que mais uma vez vem demonstrar a inexistência de qualquer impedimento legal ao arrolamento dos Imóveis.
9. Destarte, atento o âmbito legal do arrolamento de participações sociais, previsto na aludida alínea b) do n.º 4 do artigo 750.º do CPC e que, como se disse, atinge todos os direitos patrimoniais que lhe são inerentes - ou seja os bens e activos da sociedade cujo capital social tal quota representa - resulta claro que os Imóveis pertença da Companhia de Fomento Predial C Limitada, sociedade cujo capital a Quota representa, correspondendo a 75% do mesmo, são susceptíveis de serem arrolados isoladamente, obviamente na proporção da participação social que o Requerido detém no respectivo capital social.
10. O entendimento que supra se preconizou não encontra suporte legal apenas no disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 750.º do CPC. Em abono da tese da Recorrente estão também a natureza do direito que a mesma tem em relação à Quota e os fins subjacentes ao arrolamento como procedimento cautelar preliminar de uma acção de divórcio.
11. Desde logo porque a Recorrente é, por força do regime de bens a que o seu casamento com o Requerido se encontra sujeito, co-titular da Quota, sendo meeira num direito sobre tal participação social que é um bem que se integra na comunhão conjugal.
12. Com efeito, conforme resulta dos artigos 1724.º, alínea b), 1732.º e 1733.º do CC de 1966 (equivalentes aos artigos 1603.º,1609.º e 1610.º do diploma actualmente em vigor) o valor patrimonial da Quota (que compreende todo o acervo de bens à mesma inerentes) ingressou no património comum do casal, pelo que enquanto não se fizer a partilha (como é o caso dos autos em que foi requerida a dissolução da sociedade conjugal por divórcio o qual ainda se encontra a correr) está-se perante uma situação de comunhão a que se aplicam as regras da compropriedade por força do disposto no artigo 1300.º do CC.
13. Assim, uma vez que “o arrolamento não produz qualquer diminuição da capacidade do titular dos bens arrolados, apenas o priva de alienar tais bens” (Moitinho de Almeida, Anulação e Suspensão de Deliberações Sociais, pág. 61), no caso de incidir sobre participações sociais este fim do arrolamento apenas poderá ser assegurado arrolando-se isoladamente os bens/direitos patrimoniais inerentes à quota (bem comum), pois só deste modo ficará efectivamente garantida a privação do titular da participação social de deliberar a alienação de tais bens e direitos.
14. Efectivamente, atento os fins do arrolamento como preliminar ou incidente de uma acção de divórcio, “como forma de garantir a conservação de bens comuns ou de bens próprios do cônjuge que estejam sob a administração do outro” a fim de assegurar “a justa partilha dos bens, logo que o divórcio ou a separação judicial sejam concretizados” dúvidas não pode haver da justeza da posição da Recorrente, pois só assim se garantirá o valor patrimonial da Quota ou seja que esta não diminua de valor.
15. Ao contrário do entendimento subjacente ao despacho recorrido o arrolamento sobre os Imóveis não vai colidir com ou impedir o exercício dos direitos sociais por parte do Requerido (aliás salvaguardados pelo disposto na alínea c) do n.º 4 do artigo 750.º do CPC), nem tão pouco viola tais direitos uma vez que a administração da Quota vai continuar a ser exercida pelo Requerido.
16. Mas ainda que assim fosse, em nada o arrolamento dos Imóveis poderia contribuir para a violação de quaisquer direitos do Requerido enquanto sócio da dita sociedade.
17. É que, no caso das quotas integradas no património conjugal, sendo este um património autónomo que deve ser partilhado uma vez dissolvida a sociedade matrimonial (pois, conforme é consabido, os “bens comuns do casal constituem um património autónomo de afectação especial aos encargos da sociedade conjugal, envolvendo co-titularidade num único direito, em termos de comunhão una, indivisível, sem quotas, à margem da compropriedade” - acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.02.2002 (Proc. 779/02 6ª Secção), é a própria lei que estabelece que em relação às participações sociais comuns o exercício de direitos sociais inerentes às mesmas tem se ser feita através de um representante comum (vide n.º 1 do referido artigo) a quem cabe “exercer, perante a sociedade, todos os direitos e cumprir todas as obrigações inerentes à quota indivisa” (vide n.º 5 do artigo 365.º do Código Comerciai).
18. Assim sendo, nada impede que seja ordenado o arrolamento sobre os imóveis em questão o qual, além do mais tem ainda o mérito de garantir a segurança jurídica ao proteger terceiros de boa fé que sem o referido arrolamento (mormente através da menção que ao mesmo se fará incluir no registo dos Imóveis): ficariam sempre desprotegidos face à ineficácia de uma possível aquisição de tais bens em relação à Recorrente, conforme acima já se explicou.
19. Ao ter indeferido o pedido de arrolamento dos Imóveis formulado a fls. 587 e seguintes o douto despacho recorrido fez uma errada interpretação do direito aplicável e violou as seguintes disposições legais: artigos 360.º, n.º 6 e 750.º, n.º 4 do CPC e artigos 809.º, 1300.º, 1603.º, 1609.º e 1610.º todos do CC.
Termos em que, deverá o douto despacho de fls. 590 na parte em que se recorreu do mesmo ser revogado e substituído por outra decisão que decrete o arrolamento de uma quota indivisa de 3/4 dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs XXX35, XXX36, XXX37, XXX38, XXX39 e XXX40, de que é proprietária a Companhia de Fomento Predial C Limitada, quota indivisa essa que corresponde aos direitos patrimoniais inerentes à quota social, cujo arrolamento foi já decretado a fls. 292 e seguintes dos autos, que o Requerido detém na Companhia de Fomento Predial C Limitada, só assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!»
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Respondeu ao recurso o requerido, em termos que sintetizou da seguinte maneira:
«I. Nas próprias palavras da Recorrente, vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls. 590 na parte em que no mesmo se indeferiu o arrolamento de uma quota indivisa de 3/4 dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob os n.ºs XXX35, XXX36, XXX37, XXX38, XXX39 e XXX40 (os “Imóveis”), de que é PROPRIETÁRIA a Companhia de Fomento Predial C Limitada.
II. A Companhia de Fomento Predial C Limitada não é parte nos presentes autos.
III. Pretende a Recorrente que o arrolamento incida directamente sobre os bens da Requerida sociedade que, nas próprias palavras da Recorrente, é proprietária, e não o Recorrido.
IV. …
V. Sumariamente, a Recorrente funda o seu recurso nos seguintes singelos armumentos: Que os bens da sociedade comercial Companhia de Fomento Predial C Limitada constituem direitos patrimoniais inerentes à quota nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 750.º do CPC; O direito sobre as participações sociais reporta-se ao quinhão social, com todos os direitos patrimoniais que o integram, e, consequentemente, dos direitos patrimoniais inerentes à mesma onde se incluem 3/4 dos Imóveis.
VI. Nestas alegações de Resposta, o Recorrente demonstrará os argumentos que importam necessariamente a improcedência do recurso, a saber:
VII. Na própria perspectiva da Recorrente os bens que pretende arrolar são da propriedade de uma sociedade comercial que não é parte nos presentes autos;
VIII. O Princípio Legal da Separação Entre a Sociedade e os Seus Sócios.
IX. A Companhia de Fomento Predial C Limitada tem cinco sócios, de acordo com as quotas que seguem: A, titular de uma quota de Mop. 2000.00; B, titular de uma quota de Mop. 30000.00; D, titular de uma quota de Mop. 4000.00; E, titular de uma quota de Mop. 4000.00.
X. Actualmente, a personificação das sociedades comerciais é uma questão pacificada no direito, estando consagrado no artigo 176º do Código Comercial que: “As sociedades comerciais adquirem personalidade jurídica com o registo do seu acto constitutivo.”
XI. Este princípio vinha já da sua fonte, ou seja, o artigo art. 5º do Código das Sociedades Comerciais português, que dispõe que sociedades comerciais: “…gozam de personalidade jurídica e existem corno tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem...”.
XII. Com a atribuição ou reconhecimento da personalidade jurídica, a sociedade passa a constituir um sujeito, capaz de direito e de obrigações, pelo que é a sociedade, e não os sócios quem adquire a qualidade de comerciante, e mantém a sua individualidade.
XIII. A sociedade comercial goza de autonomia patrimonial, e responde (a sociedade) ilimitadamente por seu passivo. Da mesma forma, com a personalidade jurídica, e nos limites da sua capacidade delimitada na lei (essencialmente nos actos que visem o lucro com as excepções nela mencionadas) e nos estatutos (o objecto social), a sociedade passa a dispor de autonomia, possuindo uma esfera jurídica independente da dos sócios que a criaram.
XIV. Assim, é a sociedade quem adquire a qualidade de comerciante em consequência do exercício da actividade social e não os sócios.
XV. É a sociedade quem está sujeita às obrigações impostas aos comerciantes e não os seus sócios.
XVI. A sociedade pode até ter direitos contra os seus sócios.
XVII. Com a constituição da sociedade, os bens com que os sócios entram para esta revertem para o seu património (o da sociedade) e os credores pessoais dos sócios apenas poderão penhorar as respectivas participações sociais a partir do momento em que as sociedades adquirem personalidade jurídica.
XVIII. Em momento nenhum se viu que um Tribunal pudesse, em desobediência a toda a estrutura do direito societário consagrado na Lei e aceite na Ordem Jurídica, violar o véu social e penhorar ou arrolar bens da sociedade por conta de obrigações dos sócios desta, fora das situações de manifesto abuso que levam à desconsideração da personalidade jurídica, não alegada nem discutida nos presentes autos.
XIX. No plano inverso, pelas dívidas da sociedade, apenas responde em princípio o património social, e não o dos sócios, tratando-se de sociedade de responsabilidade limitada. Nas sociedades em nome colectivo é que os sócios respondem solidariamente e subsidiariamente pelas dívidas da sociedade.
xx. “A personificação das sociedades comerciais tem como implicações a separação de patrimónios entre a sociedade e os seus membros, bem como a limitação da responsabilidade dos sócios (por ex., das sociedades por quotas e anónimas).” ARMANDO FARIA MENEZES in A Tutela Do Credor Tributário e a Doutrina Da Desconsideração Da Personalidade Colectiva das Sociedades Comerciais
XXI. A Recorrente confunde o património da sociedade com o património dos sócios, contra o Direito instituído na RAEM, o que desde logo impede a viabilidade do recurso interposto.
XXII. Os direitos inerentes à quota são os direitos que resultam da titularidade da participação social, ou seja, o direito que cada sócio tem por essa qualidade.
XXIII. Ora, o Código do Processo Civil apenas faz referência aos direitos patrimoniais inerentes à quota. Os principais direitos patrimoniais inerentes à quota são: o direito ao Lucro; o direito à quota de liquidação e direito ao contravalor da participação “pendente societate”.
XXIV. Tais direitos patrimoniais poderão ainda resultar de eventuais cláusulas compensatórias e o direito a partilhar quaisquer outros valores que venham a ser distribuídos aos sócios. Outros direitos patrimoniais poderão ainda consistir no direito ao reembolso de prestações suplementares ou acessórias, o direi to de subscrição e aquisição preferencial de novas quotas e direitos de incorporação, eventuais direitos utilização de bens sociais.
XXV. Em nenhum momento o legislador, com a norma prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 750.º do CPC quis ultrapassar o véu societário e afectar o património social para fazer face às obrigações civis do seu sócio, ainda que se tratasse de obrigações matrimoniais.
XXVI. Não faz sentido a tese da Recorrente pela qual o direito sobre as participações sociais reporta-se ao quinhão social, com todos os direitos patrimoniais que o integram, e, consequentemente, dos direitos patrimoniais inerentes à mesma onde se incluem 3/4 dos Imóveis.
XXVII. Por tudo o exposto, deverá ser mantida a decisão recorrida, devendo improceder o pedido da Recorrente qual seja o arrolamento de uma quota indivisa de 3/4 dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs XXX35, XXX36, XXX37, XXX38, XXX39 e XXX40, de que é proprietária a Companhia de Fomento Predial C Limitada, quota indivisa essa que corresponde aos direitos patrimoniais inerentes à quota social, cujo arrolamento foi já decretado a fls. 292 e seguintes dos autos, que o Requerido detém na referida Companhia de Fomento Predial C Limitada.
Do exposto extraem-se as seguintes:
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o Recurso apresentado pela Recorrente A ser julgado improcedente.».
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 – Nos autos de arrolamento que corriam no Juízo de Família e Menores do TJB (Proc. nº FM1-15-0105-CDL-A) foi decretado o arrolamento de quotas sociais que o requerido (ora recorrido) detém em três sociedades, “Companhia de Fomento Predial C, Limitada”, “Sociedade de Investimento e Desenvolvimento F, Limitada” e “Empresa de Construção e Fomento Predial G Limitada”.
2 – Posteriormente, a interessada (ora recorrente) requereu que fosse decretado o arrolamento de uma quota indivisa de 3/4 dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial (CRP) sob os n.ºs XXX35, XXX36, XXX37, XXX38, XXX39 e XXX40 (os “Imóveis”), de que é proprietária a “Companhia de Fomento Predial C Limitada”, quota que alegadamente corresponderia aos direitos patrimoniais inerentes à quota social que o requerido detém na aludida empresa.
3 – O juiz titular do processo proferiu, então, o seguinte despacho:
« Fls. 587 a 589: Visto.
Considerando o facto de que a Requerente A tinha pedido à Direcção de Serviços de Finanças (DSF) a avaliação dos valores das quotas sociais e pedido o arrolamento dos bens imóveis da Companhia de Fomento Predial C, Limitada, da qual o Requerido é sócio, este Juízo decide o seguinte:
1) Enviar ofício à DSF para designar um perito com vista a determinar o valor das quotas sociais detidas pelo Requerido;
2) O procedimento cautelar de arrolamento tem como objectivo listar os bens comuns do casal, arrolando apenas as quotas sociais possuídas pelo Requerido e o valor real das quotas, ou seja, os lucros ou direitos patrimoniais inerentes às quotas do Requerido. O procedimento cautelar não pode afectar de qualquer maneira o funcionamento da sociedade limitada, nem os bens imóveis desta. Nestes termos, indefere-se o pedido de arrolamento dos bens imóveis da Companhia de Fomento Predial C, Limitada, da qual o Requerido B é sócio.
Notifique nos termos da lei e D.N.
Aos 11 de Junho de 2015.».
4 – Após oposição do requerido e da produção de prova, foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição e manteve a providência cautelar decretada em 22 de Maio de 2015.
5- O requerido apresentou recurso jurisdicional contra esta sentença, mas posteriormente dele desistiu.
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III – O Direito
1 – Pretendia a recorrente, como se viu, que, além do arrolamento das quotas sociais de que o recorrido, seu marido, é detentor em três sociedades comerciais, viesse a ser igualmente decretado o arrolamento da quota indivisa de ¾ nos bens imóveis correspondentes à participação social do recorrido numa dessas sociedades.
O tribunal “a quo” não acolheu esta pretensão com o argumento de que o arrolamento consiste apenas numa mera listagem de bens, sem que isso possa afectar o funcionamento da sociedade.
Vejamos.
A recorrente considera que ao caso se aplica o disposto no art. 750º, nº 4, al. b), do CPC (penhora de quota em sociedade), face ao que consta do art. 365º, nº6, do mesmo Código.
Este último preceito, com efeito, dispõe que “são aplicáveis ao arrolamento as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrarie o estabelecido nesta secção ou a própria natureza daquela providências”.
E o primeiro reza que “A penhora abrange os direitos patrimoniais inerentes à quota, com ressalva do direito a lucros já atribuídos por deliberação dos sócios à data da penhora e sem prejuízo da penhora deste crédito”.
Também o art. 862º, nº6, do CPC português (que manda aplicar à penhora de quota em sociedade o disposto no Código das Sociedades Comerciais), acaba por remeter para o art. 239º deste último Código, que determina, igualmente, no nº1 que “A penhora de uma quota abrange os direitos patrimoniais a ela inerentes, com ressalva do direito a lucros já atribuídos por deliberação dos sócios à data da penhora e sem prejuízo da penhora deste crédito;…”. Ou seja, o regime é equivalente em ambos os ordenamentos.
Ora, a propósito deste art. 239º António Menezes Cordeiro afirmou o seguinte: “Salvo melhor entendimento, o que está em causa no art. 239º é a penhora de uma participação social – a quota – com toda a complexidade, isto é, direitos patrimoniais e não patrimoniais. Assim, não podem tais realidades deixar de estar abrangidas na penhora. Nestes termos, a referência a direitos patrimoniais terá apenas o sentido de esclarecer que há certos direitos patrimoniais que não se encontram contemplados pela penhora e não o sentido de excluir da penhora os direitos não patrimoniais” (Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2009, pág. 626). No sentido de que o nº1 exclui os direitos extra-patrimoniais, ver Armando Braga, in Código das Sociedades Comerciais Anotado e Comentado, Almeida e Leitão, Lda, 2ª ed., pág. 303).
Também a obra colectiva do Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Vol. III, pág. 546-547, defende que a penhora abrange os direitos patrimoniais e, em certas condições, os não patrimoniais ou direitos administrativos (como é o direito de voto).
Raul Ventura vai mais longe e, entendendo que a penhora de quota abrange os direitos patrimoniais e não patrimoniais, acaba por admitir ser possível que se destaquem os direitos patrimoniais da quota, até mesmo para poderem ser isoladamente penhorados (Sociedade por Quotas, Vol. I, 2ª ed., pág. 767). É por isso que, em caso de venda ou adjudicação de quota, todos os direitos patrimoniais ou não patrimoniais são atingidos por ela (“Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, cit., nota 16, pág. 546; Raul Ventura, Sociedade por Quotas, pág. 769).
Estamos, então, de acordo: se o arrolamento equivale à penhora, então o arrolamento das quotas deve abranger todos os direitos inerentes, incluindo os de carácter patrimonial que lhe andam associados.
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2 – Avancemos um pouco mais, porém.
Percebemos a intenção da recorrente.
O que ela pretende é que os direitos correspondentes à participação social do marido na sociedade em causa fiquem garantidos expressamente com o arrolamento. Talvez o seu receio seja o de que só o arrolamento da quota social pode não bastar se a sociedade se desfizer dos bens e activos que possui, alienando-os. É que nesse caso, o valor da quota ficará substancialmente reduzido. E, então, o que a recorrente ambiciona é que também os bens da sociedade (ou o direito a eles na proporção da quota) sejam considerados no arrolamento. O arrolamento destinar-se-ia, então, a prevenir o perigo de extravio ou dissipação dos bens.
Nesta tese, estamos perante um direito da recorrente à meação na quota social do marido (e nos direitos patrimoniais correspondentes).
E o fundamento para esse requerido fundamento poderia assentar no seguinte pensamento: o arrolamento da quota social abrange os direitos patrimoniais, sim, mas apenas e enquanto o património existir. O arrolamento da quota, singelamente, não garante o direito patrimonial se os bens e activos da sociedade deixarem de existir. Daí que se justifique, nesta perspectiva, que o interessado pretenda uma garantia, que é o de que a quota arrolada se estenda expressamente ao próprio património da sociedade.
É a perspectiva da recorrente.
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2.1 – Continuação.
É certo que o arrolamento pretendido não privaria o titular dos bens e dos direitos arrolados, apenas o impedria de os alienar (Moitinho de Almeida, Anulação e Suspensão de Deliberações Sociais, 4ª ed., pág. 76-77). E, assim sendo, em princípio nada impediria a satisfação da pretensão da recorrente.
Aliás, e sendo este arrolamento fundado no art. 368º do CC (arrolamento como preliminar ou incidente de acção de divórcio), pareceria que o objectivo dele, no caso em apreço, seria garantido com a abrangência dos direitos patrimoniais inerentes à quota do marido, na medida em que desse modo se preveniria a conservação destes direitos e a futura partilha por ocasião do divórcio ou de anulação do casamento. Assim o pensa a recorrente.
Só que este direito legítimo esbarra contra um outro direito, não menos legítimo, que é o da própria sociedade.
E, aqui chegados, já nós estamos em condições de aduzir alguns argumentos contra a tese da recorrente.
Em primeiro lugar, a quota pertence ao sócio. E os direitos patrimoniais correspondentes à quota só são “apendiculados” a ela enquanto eles mesmos existirem. Ou seja, os referidos direitos apenas perduram enquanto os bens, lucros, activos, etc., da sociedade existirem na esfera desta.
Deferir o pedido da recorrente significaria que se estaria a atingir, por esta via, os direitos da própria sociedade, sem que ela mesma tivesse sido chamada ao processo, para se opor à providência. A sociedade é, neste sentido elemento estranho à relação jurídica processual.
Em segundo lugar, o direito da sociedade à realização do seu objecto social, que conflitua com o da requerente, é de sobrevalorizar, na medida em que ela constitui uma entidade (pessoa colectiva) distinta da de qualquer dos sócios, a sociedade comercial é uma pessoa jurídica (Luis Brito Correia, Direito Comercial, Sociedades Comerciais, Vol. II, pág.227 e sgs.).
A sociedade, neste sentido, é estranha à relação jurídica substantiva que opõe requerente e requerido. “Na teoria da sociedade-pessoa jurídica, o património social não é um sujeito distinto de qualquer daqueles e do corpo por eles constituído: o património da pessoa jurídica pertence-lhe a ela mesma, não a qualquer outro sujeito que lhe seja exterior. O direito dos sócios não recai, portanto, nos bens sociais, mas só pode construir-se como um direito em face da corporação: direito ou, antes, posição jurídica complexa (conjunto de direitos e deveres), que exprime justamente a qualidade de ser membro do corpo social”.
Esta mesma ideia já o autor a expressara nas suas Lições de Direito Comercial, 2º volume, pág., 83 e ss onde sintetizou que se entende que o (antigo) artº 108º das sociedades comerciais obrigava a considerar toda e qualquer sociedade comercial, nas relações com terceiros, como individualidade jurídica distinta dos sócios, a mesma qualificação terá de valer também para a esfera das relações entre a sociedade e os sócios” (Ac. RP, de 3/11/2005, Proc. nº 0535673).
É por isso que se diz que os bens da sociedade comercial por quotas, como esta é, ainda que dela seja sócio um dos cônjuges desavindos, não são bens próprios, nem comuns deles, não podendo assim ser objecto de arrolamento ao abrigo do presente art. 368º (neste sentido, o Ac. da RP, de 15/04/1997, Proc. nº 9720306).
Em terceiro lugar, arrolar os bens da sociedade na prática poderia equivaler a impedir que ela exerça ou realize o seu objecto social.
Imaginemos que o seu objecto era a compra e venda de bens imobiliários. Se fosse possível arrolar os bens da sociedade, na proporção do valor da quota, então isso poderia, na prática, significar a paralisação ou o impedimento do funcionamento da empresa, já que ela ficaria impedida, através deste meio processual, de vender os bens que possui, e assim de concretizar o seu objecto social.
Em quarto lugar, os direitos do sócio são de dois tipos: pessoais e patrimoniais.
“O direito pessoal é o de participar da administração da sociedade diretamente como gerente ou como simples conselheiro, fiscalizando os atos de administração, ou seja, todos os que as leis asseguram aos sócios; O direito patrimonial é o direito de crédito consistente em perceber o quinhão de lucros durante a existência da sociedade e em participar na partilha do patrimônio líquido residual, depois de liquidada a sociedade” (J. Miguel Silva, Sociedades Limitadas – obrigações, responsabilidades e direitos dos sócios, in http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI27469,101048-Sociedades+Limitadas+obrigacoes+responsabilidades+e+direitos+dos).
Como alguém disse “Os direitos patrimoniais são direitos eventuais de crédito contra a sociedade, consistente na participação nos lucros e na participação no acervo social em caso de liquidação da sociedade. Trata-se de um direito eventual, condicionado1, na medida em que o seu exercício depende de fatos incertos, como a produção de lucros ou a dissolução da sociedade.
A participação no acervo social é uma decorrência da própria contribuição dos sócios. Se eles contribuíram para a formação do património social e ainda existe algum património após o pagamento de todos os credores da sociedade, nada mais lógico do que devolver aos sócios o equivalente à sua contribuição. Não haveria outro caminho a ser dado ao património social, a não ser a partilha entre os próprios sócios” (https://caximgoias.files.wordpress.com/2007/06/sociedade-limitada.doc).
Quer isto dizer que, dentro do conteúdo dos direitos patrimonais, se insere o direito de quinhoar nos lucros (art. 195º, nº1, al. a), e 377º do CSC), o de participar no acervo social (saldo de liquidação) na sequência da dissolução da sociedade, nos termos do art. 323º, CSC (neste sentido, ver Luis Brito Correia, ob. cit., págs. 308, 310, 314), e até mesmo, nele se incluem certos direitos especiais (desde que especialmente previstos nos estatutos) como os de uso de certos bens sociais (A. Menezes Cordeiro, in Código das Sociedades Comerciais anotado, 2009, pág. 146), mas já não, durante a vida da sociedade, o direito sobre os bens da sociedade, uma vez que a quota é apenas uma participação no capital social, e não no património social (são coisas distintas, como se sabe).
É por isso que a soma do valor nominal de todas as quotas de capital2 de uma sociedade nos dá o valor do capital social (art. 356º, nº1, do CSC; também a obra colectiva Código das Sociedades Comerciais em Comentário, do Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho, coordenada por Jorge Coutinho de Abreu, Vol. III, pág.172).
Com os fundamentos expostos, somos, assim, a acolher a decisão recorrida.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
TSI, 25 de Fevereiro de 2016
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
1 CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Tratado de direito comercial brasileiro. Atualizado por Ruymar de Lima Nucci. Campinas: Bookseller, 2001, v. 2, tomo 2, p. 84.
2 Sobre a distinção entre “quota de capital” e “quota de participação”, entendida esta como o conjunto de direitos e obrigações sociais do sócio, ver Raul Ventura, in Sociedade por Quotas, I, 2ª ed., pág. 375-377.
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23/2016 21