打印全文
 1. O arguido interpôs recurso da decisão de aplicação da medida de prisão preventiva, da autoria do signatário, Juiz de Instrução do Tribunal de Última Instância (TUI) da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), a exercer as funções jurisdicionais relativas ao Inquérito n.º 1530/2015, em processo por crime alegadamente praticado pelo arguido enquanto Procurador da RAEM (e não enquanto Procurador-Adjunto), nos termos do artigo 44.º, n.º 2, alínea 9), conjugada com a alínea 8), da Lei de Bases da Organização Judiciária1.
A propósito desta competência em que o signatário está investido, convém tecer algumas considerações.
Na vigência da Lei de Bases da Organização Judiciária, que coincide temporalmente com a própria RAEM, esta é a segunda vez que tem lugar o exercício da competência em causa, a prevista na alínea 9) do artigo 44.º, n.º 2.
Aquando da primeira vez em que esteve em causa o exercício destas funções jurisdicionais relativas ao Inquérito, atinente a um Secretário do Governo e, posteriormente o seu julgamento pelo TUI, tendo aquele Alto Titular de um dos Principais Cargos sido imediatamente demitido aquando da detenção, ao signatário, pessoalmente, suscitaram-se alguma dúvidas sobre o tribunal competente para o julgamento, dado que o então arguido praticara os crimes de que vinha acusado como Secretário das Obras Públicas e Transportes, mas aquando do seu julgamento já não tinha aquela qualidade.
Prevaleceu, então, o entendimento de que a norma de competência se referia à qualidade da pessoa à data da prática do crime e não à data do julgamento em 1.ª instância.
Sobre a questão não houve, então, qualquer controvérsia. Nem o arguido, nem o Ministério Público tiveram entendimento diverso, nem mesmo nos meios de comunicação social se lembra o signatário de alguém ter questionado a competência do TUI para o julgamento em 1.ª instância.
De qualquer maneira, dado o precedente anterior e atendendo a que a lei se mantém, afigurou-se prudente manter o mesmo entendimento sobre esta matéria, esperando que o órgão com competência legislativa possa, eventual e oportunamente, tomar posição para o futuro.
Ninguém compreenderia que, agora, o TUI fosse rejeitar a competência para julgar o ex-Procurador quando, nas mesmas condições, tinha aceitado anteriormente julgar um ex-Secretário. Seria até, susceptível de provocar algum alarme social.
Eis porque se afigura que deve ser o TUI a exercer as funções jurisdicionais relativas ao Inquérito do ex-Procurador e, se for o caso, a proceder à instrução, à pronúncia e ao julgamento.

2. Quanto à admissibilidade do recurso da decisão de aplicação da medida de prisão preventiva.
Como é claro, a decisão impugnada não se refere ao fundo da causa, isto é, à absolvição ou condenação do arguido, mas apenas a matéria atinente à aplicação de medida de coacção.
Como já o signatário se pronunciou no mencionado caso anterior, no nosso sistema jurídico o recurso é um pedido de reponderação de certa decisão judicial, apresentado a um órgão hierárquica e judiciariamente superior.
Em processo penal, a regra geral é a da recorribilidade das decisões judiciais. A irrecorribilidade é a excepção (artigo 389.º do Código de Processo Penal).
Não obstante, há decisões em processo penal que não admitem recurso. Os artigos 390.º, 31.º, n.º 1, 128.º, n.º 7, 140.º, n.º 3, 263.º, n.º 5, 273.º, n.º 2, 292.º e 371.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, expressamente estatuem sobre decisões que não são passíveis de recurso. Mas há outros casos de irrecorribilidade, como aqueles em que a lei dispõe que a decisão é definitiva (v. g. os artigos 36.º, n.º 2, 43.º, n.º 2, 395.º, n.º 4 e 415.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Das decisões proferidas pelo Tribunal de Última Instância não cabe recurso, por força de um princípio de direito processual óbvio, segundo o qual não é admissível recurso das decisões proferidas pelo tribunal supremo de uma dada organização judiciária, por não haver para quem interpor o recurso.
Na verdade, o Tribunal de Última Instância não só é o tribunal supremo da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) (artigo 84.º, 2.º parágrafo, da Lei Básica da RAEM, doravante designada apenas por Lei Básica), como também a RAEM goza de poder judicial independente, incluindo o de julgamento em última instância (artigo 19.º, 1.º parágrafo, da Lei Básica).
Ora, daqui decorre que o Tribunal de Última Instância tem a última palavra nos casos que lhe sejam submetidos. As suas decisões são definitivas. Não há, portanto, recurso de nenhuma das decisões do Tribunal de Última Instância para outro órgão judicial ou político, da RAEM ou nacional, sem prejuízo de o Tribunal de Última Instância não ter jurisdição sobre actos do Estado (artigo 19.º da Lei Básica) e de estar sujeito à interpretação da Lei Básica por parte do Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular, mas apenas nas matérias que sejam da responsabilidade do Governo Popular Central ou do relacionamento entre as Autoridades Centrais e a RAEM (artigo 143.º da Lei Básica).
Não estando em causa nenhuma destas matérias, é evidente que as decisões do Tribunal de Última Instância são definitivas.
É certo que no caso de uniformização de jurisprudência, isto é naqueles casos em que existem duas decisões contraditórias do Tribunal de Última Instância ou quando o Tribunal de Segunda Instância contradiz uma decisão do Tribunal de Última Instância, sobre a mesma questão de direito, pode haver um recurso para o Tribunal de Última Instância. Este intervém com uma formação alargada excepcional de cinco juízes, sendo para tal chamados o presidente e o juiz mais antigo do Tribunal de Segunda Instância, que acrescem aos três juízes do Tribunal de Última Instância [artigos 44.º, n.º 2, alínea 1) e 46.º da Lei de Bases da Organização Judiciária e 419.º e 425.º do Código de Processo Penal].
E compreende-se esta opção do legislador, designadamente quando as duas decisões contraditórias são do Tribunal de Última Instância. Como este é o Tribunal Supremo da RAEM prevê-se um recurso, mas ainda para o Tribunal de Última Instância, a que são chamados juízes de outro Tribunal Superior, para resolver o conflito de jurisprudência.
Mas na lei só existe esta possibilidade de um recurso de uma decisão do Tribunal de Última Instância para o Tribunal de Última Instância. E mais nenhuma. E só o legislador pode estabelecer a possibilidade de recursos e criar tribunais.
Este princípio também vale para os juízes do TUI, actuando como juízes singulares em 1.ª instância, visto que a lei não prevê nunca um recurso de uma decisão de um juiz singular para o próprio Tribunal de que faz parte. O que existe é, no âmbito de um recurso, a reclamação de despacho do relator para a conferência (artigo 620.º do Código de Processo Civil). Mas a decisão ora impugnada não foi proferida no âmbito de qualquer recurso, sendo que o signatário actua como juiz de instrução e não como relator em recurso.
Por outro lado, não se diga que o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aplicável em Macau por força do artigo 40.º da Lei Básica, prevê sempre a possibilidade de recurso em processo penal. Não é assim.
Dispõe o artigo 14.º. n.º 5 deste Pacto:
“Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei”.
Ora, a norma só estabelece um duplo grau de jurisdição quanto às sentenças condenatórias em processo penal, mas não em relação a quaisquer outras decisões tomadas por um tribunal num processo de natureza criminal, como é o caso das decisões que o arguido pretende impugnar. É o que ensina A. RIBEIRO MENDES2: “Neste Pacto estabelece-se a garantia do duplo grau de jurisdição apenas em processo penal, quanto às sentenças condenatórias”. E também vai no mesmo sentido IRENEU CABRAL BARRETO3 em anotação a disposição semelhante, do artigo 2.º do Protocolo n.º 7 Adicional à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, do Conselho da Europa 4: “ O condenado em processo penal tem o direito de recorrer para um tribunal superior que examinará a declaração de culpabilidade ou a condenação; pressupõe, por isso, uma decisão condenatória, pelo que este artigo é inaplicável a um processo que não contenha uma decisão sobre o bem-fundado de uma acusação em matéria penal”.
O artigo 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos é, portanto, estranho à questão da recorribilidade da decisão ora em causa, que não condenou o arguido pela prática de qualquer crime.
De qualquer maneira, adiantamos já, mesmo que a decisão do Tribunal de Última Instância fosse uma sentença de condenação do arguido pela prática de crime, também não seria passível de recurso pelas razões já indicadas.
As decisões do Tribunal de Última Instância são definitivas e não admitem recurso.
Em nossa opinião não há, no sistema legal da RAEM, qualquer violação do artigo 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, que prevê genericamente um recurso das sentenças condenatórias penais, em primeira instância.
Vejamos porquê.
Por via de regra, os tribunais superiores, o Tribunal de Última Instância e o Tribunal de Segunda Instância não julgam em primeira instância. Mas, por vezes, fazem-no [Cfr. os artigos 44.º, n.º 2, alíneas 5), 6), 7), 8), 11) e 36.º, alíneas 2), 3), 4), 5), 8), da Lei de Bases da Organização Judiciária].
O legislador, ao estatuir no artigo 44.º, n.º 2, alínea 6), da Lei de Bases da Organização Judiciária que o Tribunal de Última Instância é o Tribunal competente para “Excepto disposição da lei em contrário, julgar processos por crimes e contravenções cometidos no exercício das suas funções pelo Chefe do Executivo, pelo Presidente da Assembleia Legislativa e pelos Secretários”, certamente teve em conta que este Tribunal, sendo o mais elevado da Hierarquia da RAEM, tem os Juízes mais preparados e experientes, como se deve presumir. E por isso, não lhe repugnou que, decidindo em primeira instância, decide em última instância.
Por outro lado, como escrevem ANDRÉS DE LA OLIVA e MIGUEL ANGEL FERNÁNDEZ 5, citados por FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA6, “a primeira instância nasce com clara vocação de definitividade, inclui todas as actuações processuais que garantem a justiça da decisão, e está regulada pensando na possibilidade de ser a única que se efective”.
É que, ao contrário do que se pode pensar, o estabelecimento de uma ou mais instâncias de recurso, não tem como sua fundamentação a ideia de que se não se ganhou à primeira, vamos fazer mais uma tentativa, para ver se ganhamos. Não é disso que se trata. Ou melhor, não deve ser disso que se trata.
Como explica MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA7 “A impugnação da decisão perante um tribunal de hierarquia superior ... assenta no pressuposto de que aquele tribunal se encontra em melhores condições de apreciar o caso sub iudice do que o tribunal recorrido. Tal deve-se, entre outros factores, quer à experiência e maturidade dos juízes que o compõem, quer à colegialibilidade dos tribunais superiores ... quer ainda à concentração dos seus esforços em aspectos específicos da causa”.
Ora, sendo o Tribunal Supremo a julgar em primeira instância, deve entender-se que, neste caso, não só se não se justifica um recurso, como em muitos casos isso não é possível, por o Tribunal não ter número suficiente de juízes. É que num caso de recurso, os juízes que julgam em primeira instância não podem intervir no recurso da sua decisão. E o Tribunal de Última Instância tem apenas três juízes, que intervêm no julgamento em primeira instância. Só uma lei absurda preveria um recurso de decisões do Tribunal de Última Instância para o Tribunal de Segunda Instância... Ora, a lei não pode ser absurda.
Por esta razão, o artigo 2.º do Protocolo n.º 7 Adicional à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, do Conselho da Europa, que prevê – como se viu atrás – um recurso das sentenças condenatórias em processo penal, admite no seu n.º 2 que:
“Este direito pode ser objecto de excepções ... quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ...”.
Trata-se de uma aplicação do princípio que atrás explicitámos, segundo qual não é admissível recurso das decisões proferidas pelo tribunal supremo de uma dada organização judiciária, por não haver para quem interpor o recurso.
É certo que o artigo 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos não prevê expressamente esta excepção, o que, provavelmente, se deve ao facto de ser uma Convenção já de 1966, enquanto o mencionado Protocolo é bastante mais recente, de 1984, portanto, mais actualizado.
Mas isto não invalida o facto de o mencionado artigo 14.º, n.º 5, ter de ser interpretado como o fazemos. Isto é, não há violação do artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos quando o tribunal que julga em primeira instância é o Tribunal de Última Instância.
De resto, se se considerasse que as leis da RAEM violavam este Pacto, daí não resultaria a necessidade de admitir um recurso de quaisquer decisões tomadas pelo Tribunal de Última Instância, em primeira instância, em processo penal, que a lei não prevê, mas apenas de extrair as consequências que o Direito Internacional prevê para a violação de tratados: a eventual responsabilidade internacional8.
Em conclusão, face às normas vigentes em Macau, não é possível recorrer das decisões tomadas pelo Tribunal de Última Instância, em primeira instância, mesmo que por juiz singular, em processo penal, salvo nos casos previstos na lei.
Nada obsta, no entanto, a que a lei seja alterada, para possibilitar a existência de um recurso jurisdicional, como é regra no nosso sistema jurídico, cometendo-se o julgamento, em primeira instância, de Titulares de Altos Cargos e magistrados, a um tribunal que não o TUI, como sucede, aliás, no Interior da China e na vizinha Região Administrativa Especial de Hong Kong, em que o julgamento de tais entidades não compete aos tribunais supremos.

3. Por último, umas breves considerações adicionais sobre o nosso entendimento de que a norma do artigo 33.º do Estatuto dos Magistrados, segundo o qual “Os magistrados não podem ser detidos ou preventivamente presos antes de pronunciados ou de designado dia para a audiência, excepto em flagrante delito por crime punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos”, não se aplica a magistrado que esteja a exercer outras funções públicas, em comissão de serviço e não esteja efectivamente no exercício de funções de juiz ou de magistrado do Ministério Público.
Se quanto à questão abordada no n.º 1 deste despacho, se mantêm dúvidas sobre a melhor interpretação do disposto no artigo 44.º, n. 2, alíneas 6) e 8) da Lei de Bases da Organização Judiciária, sobre a interpretação deste artigo 33.º do Estatuto dos Magistrados não se podem levantar quaisquer dúvidas sérias a quem se debruce sobre o estudo da questão (e não de quem diga a primeira coisa que lhe vem à cabeça), com honestidade intelectual.
Para simplificar, os juízes e os magistrados do Ministério Público, de nomeação definitiva (artigo 14.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados), podem estar em quatro situações fundamentais, no que concerne ao exercício de funções:
- No exercício efectivo da função de juiz ou de magistrado do Ministério Público;
- No exercício de outras funções públicas, em comissão de serviço, mantendo a titularidade da categoria de origem, autorizados pelo Conselho dos Magistrados Judiciais ou pelo Procurador, nos termos dos artigos 19.º do Estatuto dos Magistrados e 23.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública (ETAPM);
- Na situação de licença sem vencimento de curta ou de longa duração ou por interesse público (artigos 27.º do Estatuto dos Magistrados e 136.º e seguintes do ETAPM);
- Na situação de aposentação.
Como é evidente, os direitos, os deveres, os impedimentos, as regalias e as imunidades previstas na lei, em particular no Estatuto dos Magistrados, dos juízes e magistrados do Ministério Público, variam em função da sua situação profissional concreta, designadamente, numa das quatro situações acima mencionadas.
Alguns desses direitos e deveres, impedimentos, regalias e imunidades aplicam-se a todas as situações funcionais. Outros e outras, apenas a algumas destas situações profissionais.
Só por interpretação da lei é possível chegar a conclusões.
Por exemplo, a nomeação definitiva, isto é, vitalícia, dos juízes e magistrados do Ministério Público que tenham frequentado com aproveitamento o curso e estágio de formação para provimento nas categorias de juiz e delegado do procurador (artigo 14.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados), aplica-se a todas as situações funcionais, salvo aos aposentados.
Mas já a independência (artigo 4.º do Estatuto dos Magistrados) é apenas uma garantia dos juízes em exercício efectivo da função e não dos magistrados do Ministério Público, que estão sujeitos a obediência hierárquica.
E um magistrado em comissão de serviço não é independente, está sujeito ao poder de direcção do seu superior hierárquico, onde se inclui o poder de este dar ordens e o dever do magistrado obedecer. Porque um juiz ou um magistrado do Ministério Público a exercer funções na Administração Pública é, para este efeito, um funcionário público e não um magistrado. Nem se percebe bem como se pode defender o contrário …
Já o tempo de serviço dos magistrados em comissão de serviço é contado, para efeitos de antiguidade e aposentação, como se estivesse em exercício efectivo de funções de magistrado (artigo 19.º, n.º 4, do Estatuto dos Magistrados), sendo este um dos aspectos que distingue o magistrado em comissão de serviço daquele que está em licença sem vencimento, salvo esta no caso de interesse público, em que o tempo de serviço também pode contar para a aposentação se o interessado fizer os correspondentes descontos (artigo 144.º do ETAPM).
Já as incompatibilidades dos magistrados, que consistem em não poderem desempenhar qualquer outra função, pública ou privada, excepto as docentes, de formação ou de investigação científica de natureza jurídica, as de tratamento e análise legislativa, jurisprudencial ou doutrinária e as de árbitro no âmbito da arbitragem voluntária ou necessária (artigo 22.º do Estatuto dos Magistrados) ou a proibição de actividades políticas (artigo 24.º do Estatuto dos Magistrados), ou o domicílio necessário em Macau (artigo 26.º do Estatuto dos Magistrados), a proibição de ausência de Macau (artigo 28.º do Estatuto dos Magistrados), o gozo de férias apenas durante o período das férias dos tribunais (artigo 29.º do Estatuto dos Magistrados), só fazem sentido a sua aplicação aos juízes e magistrados do Ministério Público em exercício efectivo de funções.
E já não se aplicam aos magistrados em comissão de serviço, que estão sujeitos ao estatuto orgânico do serviço em que se insiram, nem aos que estejam na situação de licença sem vencimento ou na de aposentação.
E poderíamos continuar…
Examinemos, agora, em particular, a prerrogativa do artigo 33.º do Estatuto dos Magistrados e sua aplicação ao recorrente.
O arguido não exerce actualmente as funções de procurador-adjunto.
Na verdade, o arguido exerce, em comissão de serviço, as funções de Coordenador da Comissão de Estudos do Sistema Jurídico-Criminal, por nomeação do Chefe do Executivo (Boletim Oficial, II Série, de 1-2-2015).
Tal Comissão tem a natureza de equipa de projecto, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 85/84/M, de 11.8, e nem tem de ter por Coordenador um magistrado. Pode ser um magistrado ou não.
A Comissão tem como objectivos:
1) Acompanhar o desenvolvimento das reformas jurídica e judiciária no concernente à área jurídico-criminal, podendo efectuar propostas ou sugerir alterações;
2) Monitorizar a implementação das reformas referidas na alínea anterior;
3) Realizar projectos de investigação no domínio sócio-jurídico tendo em vista o contínuo aperfeiçoamento do sistema jurídico-criminal;
4) Realizar estudos de política criminal que possam auxiliar na respectiva definição pelos órgãos competentes;
5) Apresentar, anualmente, ao Procurador, um relatório global sobre a actividade desenvolvida.
Isto é, o recorrente exerce funções de Coordenador, em comissão de serviço de uma comissão de estudos, no âmbito da Administração, embora o apoio logístico e técnico à Comissão seja assegurado pelo Gabinete do Procurador.
Na verdade, o Decreto-Lei n.º 85/84/M estabelece as bases gerais da estrutura orgânica da Administração Pública de Macau. Por isso, evidentemente que as equipas de projecto criadas no âmbito do seu artigo 10.º, como é o caso desta, são estruturas da Administração Pública. Ora, pela própria natureza das coisas, um magistrado só pode exercer funções em tais equipas de projecto, em comissão de serviço, ou estando em licença sem vencimento.
Um magistrado, enquanto tal, não exerce funções na Administração Pública. Quando o faz, em comissão de serviço ou em licença sem vencimento, é, para a generalidade dos efeitos, um funcionário público e não um magistrado.
Logo, não beneficia das prerrogativas que o Estatuto dos Magistrados confere aos magistrados.
Isto é, o recorrente exerce funções em comissão de serviço fora da magistratura, como acontece com outros magistrados que estão em comissão de serviço, em funções públicas, no âmbito do Governo ou das direcções de serviços ou organismos equiparados, como são as equipas de projecto.
Por isso, quanto à matéria em questão, está o recorrente nas mesmas condições em que está um magistrado em licença sem vencimento.
A circunstância de o arguido constar da lista anual de antiguidade dos magistrados do Ministério Público não deve espantar, dado que mantém tal qualidade e, como vimos atrás, o tempo de serviço dos magistrados em comissão de serviço é contado, para efeitos de antiguidade e aposentação, como se estivesse em exercício efectivo de funções de magistrado.
Nestas condições, obviamente, não beneficia o recorrente da prerrogativa de não ser detido ou preso preventivamente antes de pronunciado ou de designado dia para a audiência, com excepção de crimes praticados em flagrante delito por crime punível de limite máximo superior a 3 anos, visto que tal prerrogativa inere a quem exerce efectivamente as funções de magistrado.
Trata-se da protecção e garantia das funções de magistrado e não um privilégio de casta, completamente injustificável, para quem tenha tal categoria profissional, mas não esteja a exercê-la efectivamente.
Na verdade, não estamos mais no ancien régime, em que prerrogativas como as mencionadas constituíam autênticos privilégios, como o privilégio do foro, que se comunicava às próprias viúvas dos magistrados9.
Por último, não há qualquer contradição em se aceitar a competência do TUI para se exercer as funções jurisdicionais relativas ao Inquérito do ex-Procurador e considerar que este não exerce funções como magistrado para efeitos de beneficiar da prerrogativa de não ser preso preventivamente, salvo casos especiais.
Uma coisa é a lei dispor que, para efeitos da competência criminal do Tribunal, o que releva é o cargo exercido à data dos factos indiciados. Outra, é a mesma ou outra lei dispor que só beneficia da prerrogativa de não ser preso preventivamente o magistrado que exerça efectivamente estas funções. Trata-se de normas diversas, com razões específicas para o respectivo conteúdo.

4. Face ao expendido, não se admite o recurso.
Juiz: Viriato Manuel Pinheiro de Lima
     1 “ Artigo 44.º

2. Compete ao Tribunal de Última Instância:
9) Proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito nos processos referidos nas alíneas 6) e 8)”.
2 A. RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, Lisboa, Lex, 1994, 2.ª edição, p. 100, nota (1).
3 IRENEU CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2005, p. 377.
4 O artigo 2.º, n.º 1 do Protocolo é do seguinte teor: “Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei”.
5 ANDRÉS DE LA OLIVA e MIGUEL ANGEL FERNÁNDEZ, Derecho Procesal Civil, II, 4.ª edição, p. 534.
6 FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2000, p. 55.
7 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, 2.ª edição, p. 376.
8 NGUYEN QUOC DINH, PATRICK DAILLIER e ALAIN PELLET, Direito Internacional Público, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 204, 205, 679 e seg. e JOAQUIM SILVA CUNHA, Manual de Direito Internacional Público, Coimbra, Almedina, 2.ª ed., 2004, p. 703 e segs.
     9 ANTÓNIO PEDRO BARBAS HOMEM, Judex Perfectus, Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal, 1640-1820, Almedina, Coimbra, 2003, p. 734, nota 3136.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




1
Processo n.º 60-A/2015