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Processo n.º 86/2015
Recurso penal
Recorrente: A e B
Recorridos: C, D, E, F, G, H, I e J
Data da conferência: 13 de Abril de 2016
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima


Assuntos: - Acidente de viação mortal
- O quantum indemnizatório por danos não patrimoniais

SUMÁRIO
1. A lei limita os danos não patrimoniais àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2. E a reparação obedecerá ao critério de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada caso, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, aos patrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, etc..

A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 22 de Maio de 2015, o arguido C foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de:
- um crime de homicídio por negligência grosseira p.p. pelo art.º 134.º n.º 2 do Código Penal, conjugado com o art.º 93.º n.º 2 e n.º 3, al. 1) da Lei do Trânsito Rodoviário, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão;
- um crime de abandono de sinistrados p.p. pelo art.º 88.º n.º 2 da Lei do Trânsito Rodoviário e art.º 128.º do Código Penal, na pena de 12 anos de prisão;
- um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p.p. pelo art.º 279.º n.º 1, al.s a) e b) do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena de 13 anos e 6 meses de prisão.
Em relação ao pedido civil deduzido por D, E, F, G, H, I e J, foi a 5.ª demandada K condenada a pagar MOP$1.500.000,00, que corresponde ao limite da sua responsabilidade.
E os 3.º e 4.º demandados civis A e B foram condenados no pagamento, solidário com o arguido, de MOP$1.261.426,00.
Inconformados com a decisão, recorreram o arguido e os 3.º e 4.º demandados civis para o Tribunal de Segunda Instância, que por sua vez julgou parcialmente procedente o recurso do arguido (alterando a qualificação jurídica penal da sua conduta e ficando o mesmo condenado numa pena única de 4 anos e 6 meses de prisão) e improcedente o recurso interposto pelos 3.º e 4.º demandados civis.
Vêm agora os 3.º e 4.º demandados civis recorrer para o Tribunal de Última Instância, formulando na sua motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. O acórdão recorrido violou o art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPPM, incorrendo no vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
2. O acórdão recorrido manteve o entendimento do tribunal a quo no sentido de que o ofendido tinha sofrido de dores desde o acidente até a morte, fundamentando-se principalmente nos factos relevantes para o pedido de indemnização cível e nas declarações prestadas pelas testemunhas, que o tribunal a quo deu como provados nas fls. 6, 7, 9 e 10 da sua decisão.
3. São seguintes os factos provados e o juízo acima referidos:
- o 7º parágrafo nas fls. 6: “após o acidente, o ofendido sofreu de ferimento grave e encontrava-se em estado de coma, foi levado ao [Hospital] para socorro e tratamento.”
- o 10º parágrafo nas fls. 6: “após o acidente, o ofendido ainda tinha o sinal de vida, os sentidos e a reacção, pelo que era consciente e sentiu as dores imensas causadas pelo ferimento grave, bem como o medo intenso e a forte ameaça para a sua vida, trazida pelo ferimento.”
- o 1º parágrafo nas fls. 7: “tais dores, medo e ameaça continuaram a existir desde o acidente até a morte do ofendido.”
- o 10º parágrafo nas fls. 9 e o 1º parágrafo nas fls. 10: “de acordo com os depoimentos prestados pelas testemunhas L e M (ambos guardas do CPSP, n.º XXXXXX e n.º XXXXXX), que na altura se encontravam no local do acidente, estas ouviram um som muito alto, e a seguir viram que um automóvel de marca Audi saiu do local com alta velocidade.”
“no local do acidente, viu-se que o ofendido ficava deitado no chão, sem ter reacção.”
4. Dos factos provados e juízo acima referidos, pode-se observar claramente uma flagrante contradição entre os factos provados, que são incompatíveis entre si, porque por um lado, disse que “após o acidente, o ofendido sofreu de ferimento grave e encontrava-se em estado de coma” e “no local do acidente, viu-se que o ofendido ficava deitado no chão, sem ter reacção”, mas por outro lado, indicou-se que “após o acidente, o ofendido ainda tinha o sinal de vida, os sentidos e a reacção, pelo que era consciente e sentiu as dores imensas causadas pelo ferimento grave, bem como o medo intenso e a forte ameaça para a sua vida, trazida pelo ferimento” e “tais dores, medo e ameaça continuaram a existir desde o acidente até à morte do ofendido”.
5. Conforme as regras de experiência comum, quem se encontre em estado de coma não sente dores, medo ou ameaça, pelo que os referidos factos não podem resultar na conclusão do tribunal a quo no sentido de que o ofendido sentiu dores e medo e em consequência, devia ser indemnizado.
6. Por isso, esta parte do acórdão recorrido incorreu no vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista pelo art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPPM, e deve ser anulada.
Se os Venerandos Juízes do TUI não concordarem com o supracitado entendimento dos recorrentes, estes vêm apresentar o seguinte fundamento:
7. Os recorrentes entenderam manifestamente excessivo o montante da indemnização pelos danos não patrimoniais, fixado pelo tribunal a quo e mantido pelo acórdão recorrido. Na decisão feita pelo tribunal a quo, fixou-se o montante da indemnização pelos danos não patrimoniais: MOP$1.200.000,00 para a morte do ofendido; MOP$100.000,00 para as dores sofridas pelo ofendido desde o acidente até a morte; MOP$300.000,00 para os danos não patrimoniais sofridos pela esposa do ofendido; MOP$200.000,00 para os danos não patrimoniais sofridos por cada um dos 6 filhos do ofendido.
8. O acórdão recorrido não considerou plenamente as situações do agente (ou seja o arguido) e do ofendido de acordo com o art.º 489.º do Código Civil.
9. In casu, ficou provado que após o acidente, o agente (arguido) tinha pago ao ofendido a indemnização relativa às despesas médicas e de funeral no montante de MOP$100.000,00.
10. Ainda ficou provado que o agente (arguido) era condutor e auferia mensalmente cerca de MOP$14.400,00, tendo a seu cargo os pais. Na altura do acidente, o ofendido tinha 69 anos de idade e estava aposentado. Não se provou que o ofendido continuou a trabalhar depois da aposentação ou ter qualquer rendimento, nem que a cônjuge do ofendido precisava ser alimentada por este.
11. De acordo com tais situações do agente (arguido) e do ofendido, e comparando a fixação da indemnização pela perda do direito à vida nos anteriores assentos do TUI com a neste caso concreto, a decisão do acórdão recorrido no sentido de manter o montante fixo pelo tribunal a quo revela-se, sem dúvida, excessiva.
12. Quanto à indemnização pela perda do direito à vida, o TUI fixou os respectivos montantes em MOP$1.000.000,00 (Acórdãos de 05/25/2011 e de 28/01/2015, nos processos n.º 15/2011 e n.º 122/2014), MOP$900.000,00 (Acórdãos de 11/03/2008 e de 21/01/2009, nos processos n.º 6/2007 e n.º 54/2008) e MOP$800.000,00 (Acórdão de 27/06/2008 no processo n.º 15/2008).
13. É de reparar que, nos processos de recurso n.º 15/2011 e n.º 122/2014, as 2 vítimas tinham respectivamente 22 e 27 anos de idade, e a indemnização pela perda do direito à vida foi fixada em MOP$1.000.000,00 em ambos os processos. E nos processos de recurso n.º 54/2008 e n.º 15/2008, as 2 vítimas tinham 41 anos de idade, e tendo em consideração as circunstâncias concretas nos processos, a indemnização pela perda do direito à vida foi fixada respectivamente em MOP$900.000,00 e MOP$800.000,00.
14. De acordo com os diversos assentos do TUI atrás mencionados, quanto à indemnização pela perda do direito à vida, atende-se sempre à idade da vítima, aos critérios legais (art.º 489.º do Código Civil) e aos casos paralelos.
15. Por isso, no caso vertente, considerando que o ofendido tinha 69 anos de idade quando morreu, conjugando com o art.º 489.º do Código Civil, os recorrentes entenderam adequado o montante de MOP$500.000,00.
16. Em relação ao montante da indemnização pelos danos não patrimoniais, mostra-se manifestamente excessivo o montante de MOP$100.000,00, fixado pelo tribunal a quo para as dores sofridas pelo ofendido antes de morrer.
17. Segundo os dados constantes dos autos, desde o acidente até a morte do ofendido (o acidente ocorreu às 05h52, e foi verificado o óbito do ofendido às 06h20), decorreram cerca de 30 minutos, sensivelmente.
18. Por outro lado, de acordo com os factos provados e o juízo dos factos no acórdão recorrido e na decisão do tribunal a quo, e atenta a condição do ofendido após o acidente (o ofendido estava em estado de coma e não tinha reacção), segundo as regras de experiência comum, quem se encontre em estado de coma não sente dores e medo.
19. Assim, atendendo às referidas circunstâncias concretas do ofendido e à equidade, os recorrentes entenderam adequado um montante de MOP$50.000,00.
20. No respeitante à indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela cônjuge e pelos 6 filhos do ofendido, o tribunal a quo fixou um montante de MOP$300.000,00 para a esposa do ofendido; e um montante de MOP$200.000,00 para cada um dos 6 filhos do ofendido, valores esses que se mostraram obviamente excessivos e irrazoáveis.
21. De acordo com os factos dados como provados, nomeadamente a idade da cônjuge do ofendido, e considerando que a cônjuge não precisa ser alimentada pelo ofendido, que este não é o pilar para sustentar a família, que os 6 filhos do ofendido já atingem a maioridade e não precisam ser cuidados pelo ofendido, e que não foi provada a coabitação do ofendido com os 6 filhos.
22. Atento ainda o montante usualmente fixado pelo TUI, segundo a equidade e face às supracitadas situações dos diversos herdeiros do ofendido, os recorrentes entenderam que é o mais adequado fixar o montante da indemnização à cônjuge do ofendido em MOP$200.000,00, e em MOP$100.000,00 a cada um dos filhos, em total de MOP$800.000,00.

Não responderam os demandantes civis.
Foram corridos vistos.

2. Factos
Nos autos foram apurados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
- No dia 14 de Outubro de 2013, por volta das 04H00, o arguido pediu emprestado o automóvel, de matrícula MQ-XX-XX, a N.
- O arguido conduzia o referido automóvel em alta velocidade na noite profunda e com o grau de visibilidade insuficiente. Chegando à Avenida da República em direcção à Barra, o arguido viu uma bicicleta conduzida pela vítima O que estava a circular na sua frente.
- O arguido não controlou adequadamente a velocidade do veículo, conduziu em velocidade excessiva e não conseguiu fazer parar o veículo, causando, assim, colisão entre o automóvel conduzido pelo mesmo e a bicicleta conduzida pela vítima.
- Pela colisão, a vítima foi arremessada contra o pára-brisas do automóvel conduzido pelo arguido e seguida caiu no chão.
- A colisão em apreço causou, directa e necessariamente, morte da vítima depois de ter sido encaminhada para hospital (vide relatório do exame de fls. 35 dos autos).
- Contudo, após a colisão, o arguido abandonou imediatamente o local onde ocorreu o acidente, em vez de ficar lá a tratar dos assuntos relativos ao acidente e chamar uma ambulância para levar a vítima para hospital.
- O arguido não cumpriu o dever de condução prudente, consagrado no n.º 1 do art.º 90.º, n.º 1 do art.º 30.º e art.º 22.º da Lei do Trânsito Rodoviário, causando, portanto, acidente de viação, no entanto, após a colisão, o arguido sabia muito bem que a vítima caiu no chão e ficou lesada. O arguido tinha perfeito conhecimento de que a vítima podia morrer se não lhe prestasse socorro tempestivo. Porém, o arguido ainda abandonou voluntariamente a vítima, fugindo do local de acidente, com o intuito de se furtar às responsabilidades civis e criminais em que eventualmente tenha incorrido. Enfim, a vítima morreu por falta de socorro.
- Posteriormente, os guardas policiais detectaram forte cheiro de álcool no corpo do arguido e, em consequência, ao arguido foi exigida a submissão ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, cujo resultado foi de 1,63g/l. O arguido conduzia o veículo na via pública após a ingestão de álcool, com uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2g/l.
- O arguido conduzia o automóvel sob influência de álcool, na noite profunda e com o grau de visibilidade insuficiente, bem como em alta velocidade, de forma a violar, deliberada e manifestamente, as regras de condução na via pública, que causa perigo sincero à vida e integridade física de outrem.
- O arguido agiu, de forma livre, voluntária e consciente, ao praticar o aludido acto, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
***
Mais se provaram os seguintes factos:
- O arguido pagou uma quantia de MOP100.000,00, como parte das despesas médicas e fúnebres da vítima.
- Declara o arguido que é motorista, auferindo um salário mensal de cerca de MOP14.400,00.
- Tem como habilitações académicas o ensino secundário geral e tem os pais a seu cargo.
- Conforme o certificado de registo criminal, o arguido não é primário.
- No Processo Comum Colectivo n.º CR4-13-0188-PCC, o arguido foi condenado, em 10 de Janeiro de 2014, pela prática de um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, p. e p. pelo art.º 14.º da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto, na pena de 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, sob condição de ser sujeito ao regime de prova, no sentido de se submeter à terapia de desintoxicação durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, bem como no pagamento, no prazo de 10 dias contados a partir do trânsito em julgado do acórdão, de uma quantia de MOP8.000,00 a favor da RAEM, destinada à reparação dos impactos negativos emergentes do crime cometido pelo mesmo.
***
Além dos supracitados factos descritos na acusação, provaram-se ainda os seguintes factos relevantes mencionados no pedido cível de indemnização constante de fls. 329 a 343:
- Na ocorrência do acidente, a vítima tinha 69 anos de idade e era saudável.
- A 1ª demandante civil é o cônjuge da vítima e os 2º a 7º demandantes civis são filhos da vítima, sendo todos herdeiros legítimos da vítima.
- Os 3º e 4º demandados civis são proprietários do automóvel envolvido no acidente.
- A Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego efectuou a inspecção do automóvel em causa e elaborou o relatório de inspecção do veículo envolvido no acidente, apontando que os tamanhos dos pneus do automóvel, de matrícula MQ-XX-XX, são diferentes aos constantes do livrete, ora, medem 225/45-18 os pneus dianteiros e 245/40-18 os pneus traseiros.
- Alguns dias antes da ocorrência do acidente, o 3º demandado civil emprestou o automóvel, de matrícula MQ-XX-XX, ao 2º demandado civil.
- Antes da ocorrência do acidente, em 14 de Outubro de 2014, na madrugada, o 2º e o 1º demandados civis foram tomar bebida alcoólica num bar. O 2º demandado civil emprestou o automóvel, de matrícula MQ-XX-XX, ao 1º demandado civil, mesmo que soubesse que o 1º demandado civil tinha tomado bebida alcoólica.
- Após a ocorrência do acidente, a vítima sofreu graves lesões e entrou em coma, sendo encaminhada ao [Hospital] para ser socorrida e submetida a tratamento, cujas despesas médicas abrangem: despesas de exames, de medicamentos, de consultas e de assistências médicas, pelo que os demandantes civis pagaram um valor global de MOP216,00 ao hospital.
- Os demandantes civis gastaram uma quantia global de MOP61.210,00 com o funeral da vítima, incluindo: despesas da cerimónia fúnebre e da sepultura, no valor de MOP46.500,00, pagas a XX Funeral Services; despesas com aquisição e transporte de caixão, no valor de MOP12.100,00, pagas a XX; despesas das mortalhas, no valor de MOP2.160,00; e despesas da refeição fúnebre, no valor de MOP450,00.
- Antes de ser morta, a vítima encontrava-se aposentada e suas despesas diárias eram suportadas pelas pensões de velhice atribuídas pelo Governo.
- Após o acidente, a vítima ainda tinha sinal de vida, estava consciente e tinha reacção, pelo que ela tinha consciência e sentia a dor enorme provocada pelas lesões graves sofridas, bem como os fortes receio e ameaça causados pelas referidas lesões à vida.
- A vítima sofria dor, receio e ameaça desde a ocorrência do acidente até a sua morte.
- No dia em que ocorreu o acidente, os demandantes civis deslocaram-se ao hospital logo após serem comunicados, bem como estavam cheios de preocupação e com medo.
- Quando chegaram ao hospital e receberam a notícia da morte da vítima por lesões graves, os demandantes civis não conseguiram reconhecer essa realidade e sofreram intranquilidade emocional durante um longo período de tempo.
- Antes da ocorrência do acidente, os oito membros familiares da vítima tinham uma boa relação entre si.
- No dia em que ocorreu o acidente, a responsabilidade civil proveniente de acidente de viação causado pelo automóvel, de matrícula MQ-XX-XX, foi transmitida para a 5.ª demandada civil, K, através da apólice de seguro n.º XXXXXXXX, com o limite máximo da quantia do seguro por acidente de MOP1.500.000,00.

3. Direito
São duas as questões suscitadas pelos recorrentes, referentes ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto e ao quantum arbitrado a título de indemnização por danos não patrimoniais.

3.1. Insuficiência para a decisão da matéria de facto
No seu recurso interposto para o Tribunal de Segunda Instância, invocaram também os recorrentes o mesmo vício, mas em termos muito diferentes.
Voltam agora a imputar o vício em causa, alegando que nos factos provados e na parte destinada à “convicção do tribunal” do Acórdão de 1.ª instância se observa uma flagrante contradição entre os factos provados, que são incompatíveis entre si.
Os factos indicados pelos recorrentes são seguintes:
- Após a ocorrência do acidente, a vítima sofreu graves lesões e entrou em coma, sendo encaminhada ao [Hospital] para ser socorrida e submetida a tratamento.
- Após o acidente, a vítima ainda tinha sinal de vida, estava consciente e tinha reacção, pelo que ela tinha consciência e sentia a dor enorme provocada pelas lesões graves sofridas, bem como os fortes receio e ameaça causados pelas referidas lesões à vida.
- A vítima sofria dor, receio e ameaça desde a ocorrência do acidente até a sua morte.
Referem ainda os recorrentes que, de acordo com os depoimentos prestados pelas testemunhas policiais que na altura se encontravam no local do acidente, “ o ofendido ficava deitado no chão, sem ter reacção”.
Sustentam os recorrentes que, conforme as regras de experiência comum, quem se encontre em estado de coma não sente dores, medo ou ameaça, pelo que não se pode concluir, como concluiu o Tribunal a quo, que o ofendido sentiu dores e medo e, em consequência, devia ser indemnizado.
Ora, não se nos afigura assistir razão aos recorrentes, para além de não concordância com a qualificação por si apontada do vício, já que, mesmo admitindo a hipótese de existir contradição entre os factos, o vício não seria a insuficiência para a decisão da matéria de facto, mas sim a contradição insanável da fundamentação.
De facto, não se pode dizer que uma pessoa que se encontre em estado de coma já não tem sentimento, não podendo sentir dor, receio nem ameaça.
A verdade é que, pese embora nesta situação, a vítima sofre, sofrimento este pode ser tanto físico como psíquico.
Daí que improcede o argumento dos recorrentes.

3.2. Quantum de indemnização
Discordam os recorrentes das quantias indemnizatórias arbitradas a título de danos não patrimoniais, a saber: pelo direito à vida da vítima, pelo sofrimento da própria vítima e pelo sofrimento dos demandantes civis, que são cônjuge e filhos da vítima.
A decisão de 1.ª instância fixou a indemnização pelo direito à vida e pelo sofrimento da própria vítima no montante de MOP$1,200,000.00 e MOP$100,000.00, respectivamente.
Em relação aos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes civis, fixou MOP$300,000.00 para cônjuge e MOP$200,000.00 para cada um dos filhos.
Todas as quantias foram mantidas pelo Tribunal de Segunda Instância.
Considerando estes montantes excessivos e exagerados, pretendem os recorrentes a sua redução para MOP$500.000,00, MOP$50,000.00, MOP$200,000.00 e MOP$100,000.00, respectivamente.
Vejamos.

Os ora recorrentes foram condenados com base na responsabilidade pelo risco, prevista no art.º 496.º do Código Civil.
Nos termos do art.º 492.º do Código Civil de Macau, “são extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos”.
Daí que, para determinar a quantia indemnizatória a título de danos não patrimoniais, á aplicável o disposto no art.º 489.º do Código Civil, que tem o seguinte teor:
“Artigo 489.º
(Danos não patrimoniais)
1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3. O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.”
Por sua vez, manda o art.º 487.º atender ao grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Ora, os danos não patrimoniais são os prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, mas que podem ser compensados com uma obrigação pecuniária imposta ao lesante, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.
A lei limita os danos não patrimoniais àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
E a reparação obedecerá ao critério de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada caso, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, aos patrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, etc..1

No caso em apreciação, a fixação da indemnização foi com base na responsabilidade objectiva ou pelo risco.
Tal facto não pode deixar de ser ponderado na fixação do montante dos danos não patrimoniais, tendo este Tribunal de Última Instância decidido que “a circunstância de o lesante responder a título de responsabilidade objectiva ou pelo risco, e não a título de responsabilidade por culpa, deve ser ponderada na fixação do montante dos danos não patrimoniais”.
Ao mesmo tempo, “de acordo com o disposto no artigo 487.º, quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que, além do mais previsto na norma, a situação económica do agente e do lesado o justifiquem”.
E na ponderação da situação económica do agente e do lesado, “a indemnização será tanto maior quanto melhor for a situação económica do agente e tanto menor quanto melhor for a situação económica do lesado”.2

Os factos a considerar são os seguintes:
- O arguido conduzia o referido automóvel em alta velocidade na noite profunda e com o grau de visibilidade insuficiente.
- Apesar de ter visto a bicicleta conduzida pela vítima que estava a circular na sua frente, o arguido não controlou adequadamente a velocidade do veículo, conduziu em velocidade excessiva e não conseguiu fazer parar o veículo, causando, assim, colisão.
- Pela colisão, a vítima foi arremessada contra o pára-brisas do automóvel conduzido pelo arguido e caiu no chão.
- A colisão em apreço causou, directa e necessariamente, morte da vítima depois de ter sido encaminhada para hospital.
- Os guardas policiais detectaram forte cheiro de álcool no corpo do arguido e, em consequência, ao arguido foi exigida a submissão ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, cujo resultado foi de 1,63g/l. O arguido conduzia o veículo na via pública após a ingestão de álcool, com uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2g/l.
- O arguido conduzia o automóvel sob influência de álcool, na noite profunda e com o grau de visibilidade insuficiente, bem como em alta velocidade, de forma a violar, deliberada e manifestamente, as regras de condução na via pública, que causa perigo sincero à vida e integridade física de outrem.
- Na ocorrência do acidente, a vítima tinha 69 anos de idade e era saudável.
- Após a ocorrência do acidente, a vítima sofreu graves lesões e entrou em coma, sendo encaminhada ao [Hospital] para ser socorrida e submetida a tratamento.
- Antes de morrer, a vítima encontrava-se aposentada e suas despesas diárias eram suportadas pelas pensões de velhice atribuídas pelo Governo.
- Após o acidente, a vítima ainda tinha sinal de vida, estava consciente e tinha reacção, pelo que ela tinha consciência e sentia a dor enorme provocada pelas lesões graves sofridas, bem como os fortes receio e ameaça causados pelas referidas lesões à vida.
- A vítima sofria dor, receio e ameaça desde a ocorrência do acidente até a sua morte.
- No dia em que ocorreu o acidente, os demandantes civis deslocaram-se ao hospital logo após serem comunicados e estavam cheios de preocupação e com medo.
- Quando chegaram ao hospital e receberam a notícia da morte da vítima por lesões graves, os demandantes civis não conseguiram reconhecer essa realidade e sofreram intranquilidade emocional durante um longo período de tempo.
- Antes da ocorrência do acidente, os membros familiares da vítima tinham uma boa relação entre si.
- O arguido é motorista, auferindo um salário mensal de cerca de MOP14.400,00, e tem os pais a seu cargo.

É de notar que, não obstante os recorrentes assumam responsabilidade objectiva, certo é que o arguido, o condutor do veículo, conduzia o automóvel com alta velocidade e sob influência de álcool, na noite profunda e com o grau de visibilidade insuficiente, tendo culpa grave no acidente de viação e a responsabilidade dos recorrentes é solidária com o arguido.
Em relação à indemnização a título de direito à vida, afigura-se-nos um pouco excessiva a quantia arbitrada pelo tribunal de 1.ª instância, julgando equilibrado reduzi-la para MOP$900,000.00, tendo em consideração a factualidade provada relativa à idade da vítima, à sua saúde e os valores fixados antes por este Tribunal de Última Instância, que normalmente não ultrapassam MOP$1,000,000.00,
No que tange ao montante arbitrado a título de danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima, deve ser mantido, pela sua razoabilidade, atenta a factualidade assente, pois a vítima não morreu imediatamente logo depois do acidente, tendo sofrido graves lesões resultantes da colisão muito forte.
Quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares, os respectivos montantes devem ser reduzidos para MOP$200,000.00 para a cônjuge e MOP$100,000.00 para cada um dos filhos, face à boa relação que os membros familiares tinham com a vítima, ao grau de sofrimento pelo falecimento da vítima e ainda à situação económica do arguido.
Repetindo, é de salientar que o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal.

Uma nota final: nos termos do art.º 501.º n.º 1 do Código Civil, no caso de morte ou lesão de uma ou mais pessoas e quando não haja culpa do responsável, a indemnização fundada em acidente de viação tem como limite máximo “o montante correspondente ao valor mínimo do seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel previsto na lei para a categoria do veículo causador do acidente”, que é, com se sabe, MOP$1,500,000.00.
Fica assim delimitada a responsabilidade de indemnização dos recorrentes, que não têm culpa na ocorrência do acidente de viação e transmitiram para a companhia de seguros a responsabilidade civil proveniente de acidente de viação causado pelo seu automóvel.
No entanto, como a questão não foi colocada e não é de conhecimento oficioso, este Tribunal de Última Instância não vai tomar decisão sobre a mesma.

4. Decisão
Face ao expendido, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos 3.º e 4.º demandados civis, reduzindo para MOP$900,000.00, MOP$200,000.00 e MOP$100,000.00 os montantes indemnizatórios arbitrados a título de direito à vida da próprio vítima, a título de danos não patrimoniais sofridos pela cônjuge e por cada um dos filhos, mantendo no entanto o montante fixado pelo Tribunal de Segunda Instância a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima, com juros legais a contar nos termos do Acórdão deste Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, no Processo n.º 69/2010.
Custas pelos recorrentes e pelos recorridos, na proporção do seu decaimento.

Macau, 13 de Abril de 2016
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima


1 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almeida, 10.ª edição, revista e actualizada, vol. I, p. 600 e seguintes.
2 Cfr. Acórdão deste Tribunal de Última Instância, de 17 de Dezembro de 2009, Proc. n.º 32/2009.
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Processo n.º 86/2015