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Processo nº 607/2015
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 14 de Abril de 2016
Descritores:
-Autorização de residência
-Reagrupamento familiar
-Antecedentes criminais
-Direitos civis individuais
-Reabilitação
-Poderes discricionários

SUMÁRIO:

I. A circunstância de o certificado de registo criminal não contemplar já a punição criminal imposta ao recorrente, por força de reabilitação (cfr. fls. 39 do p.a.), em nada constitui obstáculo ao indeferimento da pretensão relativa à autorização de residência, na medida em que esta decisão administrativa se move por critérios que não coincidem necessariamente com aqueles que avultam no universo penal. Isto mesmo, aliás, se deve dizer da circunstância de o certificado não fazer menção à condenação por efeito do decurso de um prazo de suspensão da execução da pena sem nova condenação.

II. Tanto num caso, como no outro, o que conta para o decisor administrativo é o mundo da realidade material (aquele que se extrai dos factos ocorridos no passado temporal), não o da realidade formal (aquele que emerge de documento registral sobre o passado do indivíduo).

III. Os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo.

IV. Quando o legislador da Lei nº 4/2003 incluiu no art. 9º, nº2, al. 1), a expressão “antecedentes criminais” fê-lo num plano amplo de modo a abranger quaisquer condutas tipificadas criminalmente tanto na RAEM como no exterior. É esse passado do indivíduo que o legislador quer que a entidade administrativa competente leve em consideração, de forma a poder tomar uma decisão de acordo com os objectivos e valores plasmados no diploma, nomeadamente os de segurança e ordem pública.

V. Os direitos civis do indivíduo, nomeadamente o de constituir família e de a proteger - arts. 38º da Lei Básica, a Lei nº 6/94/M, de 1 de Agosto (Lei de Bases da Política Familiar), o art. 17º da Lei nº 29/78 (Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos), e Aviso do Chefe do Executivo nº 16/2001 - só podem ser realizados sem compressão, desde que não contendam com as regras que a sociedade tenha imposto perante agressões a valores e direitos de todos, como é o caso das que conferem ao elemento competente do Governo, tendentes a defender a ordem e a segurança públicas em cada momento.

VI. Razoabilidade, justiça, adequação e proporcionalidade são limites internos à actuação discricionária, que apenas permitem uma sindicância do tribunal ao acto administrativo sindicado em casos de erro grosseiro, manifesto e intolerável.










Proc. nº 607/2015

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, casado, titular do HKID nº XXX, residente em Hong Kong e com domicílio temporário em Macau, -----
Recorre contenciosamente do despacho exarado pelo Exmo Senhor Secretário para a Segurança, datado de 21 de Abril de 2015, que lhe indeferiu o pedido de autorização de residência na RAEM com o intuito de reunião familiar.
Na petição inicial, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
«A) Ao fundamentar-se o Despacho recorrido num único alegado delito cometido pelo Recorrente em data remota, caso assim se entenda, pois o que aí se refere é a mera existência de uma alegada condenação, como integrador do conceito de “ameaça e perigo para segurança interna e intranquilidade da RAEM”, a Autoridade recorrida viola o disposto no art. 8º, do Código Civil e no art.5º, nº 2 do CPA e, em consequência, viola claramente o Princípio da Legalidade porque sempre se devia nortear, incorrendo deste modo no vício de violação de lei, o que o torna nulo nos termos do art. 122º, nº 2 alínea d), do CPA.
B) O Despacho recorrido incorre no vício de violação de lei pois fere, no seu núcleo essencial, Direitos Liberdades e Garantias do Recorrente e do seu agregado familiar, consagrados na Lei Básica da RA.E.M., bem como o art. 17º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, designadamente o Princípio da Legalidade, com o que, desde já, em função deste vício, se considera o Acto ferido de nulidade - cfr. art. 122º, nº 2, alínea d) e 123º, do C.P.A..
C) Ao não respeitar as regras de interpretação das Leis, previstas no art. 8º, do Código Civil, e interpretando e aplicando erroneamente o disposto nos arts. 8º e 9º da Lei nº 4/2003, de 17 de Março - sem atender quer ao conteúdo da Lei Básica, quer ao conteúdo da Lei de Bases da Política Familiar nº 6/94/M, de 1 de Agosto - a Autoridade recorrida incorreu, uma vez mais, no vício de violação de lei, pois violou todas as disposições legais citadas, designadamente, o art. 8º do Código Civil, os arts. 4º e 38º da Lei Básica, os arts. 2º, nºs 1 e 7, nº1 e nº 4, da Lei de Bases da Política Familiar constante da Lei nº 6/94/M, de 1 de Agosto, e os arts. 3º, 4º, 5º e 7º, do CPA, o que torna nulo e de nenhum efeito o despacho recorrido, nos termos do art. 122º, nº 2, alínea d) e 123º, ambos do CPA.
D) O Despacho recorrido, negando ao Recorrente autorização de residência na RAEM, sendo que já nem sequer consta que foi criminalmente punido na RAEM, muito menos com pena privativa da liberdade, viola os arts. 8º e 9º, da Lei nº 4/2003, pois o Recorrente reúne todos os requisitos ali previstos para que lhe seja concedida essa autorização de residência e, portanto, interpretou e aplicou erroneamente estes normativos, violando deste modo Princípios de carácter constitucional no seu núcleo essencial, designadamente, os Princípios, da Legalidade, da Prossecução do Interesse Público e da Protecção dos Direitos e Interesses dos Residentes, o Princípio da Proporcionalidade e o Princípio da Justiça, com o que, em função destes vícios, padece de nulidade - cfr. art. 122º, nº 2 alínea d) e 123º do CPA».
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Após a contestação da entidade recorrida, cujo teor aqui se dá por reproduzido, apenas o recorrente apresentou alegações facultativas, reiterando no essencial o teor das conclusões da petição inicial.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
«Assaca o recorrente ao acto impugnado - despacho do Secretário para a Segurança de 21/4/15, que lhe indeferiu pedido de autorização de fixação de residência, fundado no disposto no artº 9º, nº 2, als 1), 3), 5) e 6) da Lei 4/2003, por ter sido condenado no T.J.B. de Macau pela prática de um crime de acolhimento - uma vasta panóplia de vícios, todos reconduzidos a suposta violação de lei (artº 8º, C.C., artºs 4º e 38º da LBRAEM, artºs 2º, nºs 1 e 7º, nºs 1 e 4 da Lei de Bases de Política Familiar, artºs 3º, 4º, 5º e 7º do CPA, artºs 8º e 9º da Lei 4/2003, pretextando, além do mais, a ofensa, no seu núcleo essencial, dos Direitos, Liberdades e Garantias consagradas na Lei Fundamental e o atropelo dos princípios da Legalidade, Prossecução do Interesse Público, Protecção dos Direitos e Interesses dos Residentes, da Proporcionalidade e da Justiça) e almejando, por todos eles, a forma mais extrema de invalidade, ou seja, nada mais, nada menos que a nulidade do acto.
Sendo certo que na sua quase totalidade, não vemos como minimamente configurados, caracterizados e consubstanciados os vícios adiantados, tomando-se, assim, penosa uma análise circunstanciada dos mesmos, não nos esquivaremos, se bem que de forma telegráfica, a expressar que:
- Resulta inequívoco (e, nem sequer questionado) que o recorrente foi condenado criminalmente, em 2001, pelo T.J.B., pela prática de crime de acolhimento, na pena de 5 meses de prisão, suspensa por 2 anos;
- Tal facto configura, perfeitamente, a previsão da fundamentação jurídica do acto questionado;
- Nos termos já consagrados na jurisprudência da Região (cfr, a título de exemplo, ac. do TUI in proc. 36/2006), os antecedentes criminais, seja qual for o período decorrido depois da condenação, são sempre factor a considerar na apreciação do pedido de autorização de residência, constituindo tais condenações sempre motivo de alarme para a ordem e segurança públicas da Região, independentemente da eventual reabilitação penal, dado que são diferentes os interesses a prosseguir a tal nível e no que agora nos ocupa.
Razão por que, a nível dos pressupostos, nada de anormal haverá a registar.
- Posto isto, é um facto que as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, só podem afectar essas posições em termos necessários, adequados e equilibrados, o mesmo é dizer proporcionais aos objectivos a alcançar, proibindo-se, assim, o excesso, devendo existir uma relação de adequação entre o fim pretendido e o meio utilizado para o efeito, impondo-se, pois, que este seja idóneo à prossecução do objectivo a prosseguir, que entre todos os meios alternativos deva ser escolhido o que implique lesão menos grave para os interesses sacrificados, devendo existir justa medida entre os interesses presentes na ponderação, não se podendo impor aos particulares um sacrifício de direitos infundado ou desnecessário, sob pena de a decisão administrativa se revelar injusta.
Encontramo-nos, no caso, em domínio em que a Administração actua no exercício de poderes discricionários, pelo que a decisão controvertida só poderia ser alvo de controle jurisdicional se de um modo intolerável atropelasse tal princípio, constatando-se que, manifestamente, ostensivamente, as limitações dos direitos ou interesses dos particulares se não revelam idóneas e necessárias para garantir os fins visados pelo acto.
Sendo certo que a mera constatação da existência de condenação criminal ai não vincula a Administração à denegação do pedido de fixação de residência, a verdade é que também se não descortina, no caso vertente, que a entidade recorrida, ao decidir como decidiu, verificando-se os necessários pressupostos, se tenha desviado do objecto legislativo pertinente, ou que, no exercício dos poderes discricionários conferidos pelos normativos aí contidos, tenha cometido erro grosseiro ou manifesto, sabendo-se que só tal erro ou a total desrazoabilidade no exercício daqueles poderes podem constituir forma de violação de lei judicialmente sindicável.
De resto, encontrando-nos, no caso, face a simples decisão de não renovação de autorização de residência na RAEM, não se vê que outra ou outras medidas pudessem ser tomadas: ou era a denegação do pretendido, ou o seu oposto, inexistindo a esse respeito qualquer espécie de gradação, pelo que visando o acto prosseguir a defesa do interesse público securitário da RAEM, não se descortina que os valores ou interesses adiantados pelo recorrente, de ordem pessoal, familiar e profissional, ainda que estimáveis, se lhes pudessem sobrepor.
- Da mesma forma que não se vislumbra que, com a medida, se possa ferir a união e estabilidade familiares, ou quaisquer direitos das crianças, já que o acto não interfere sobre tal área de direitos (estabelecida e sedimentada no espaço político/administrativo da RAEM), da mesma forma que a Administração não impede o exercício desses direitos, conquanto não no seu domínio, onde não lhe deixa de competir, como é óbvio, a prossecução da paz, segurança e tranquilidade sociais, não se descortinando que com tal postura se ofendam seja a lei fundamental de Macau, seja quaisquer pactos do direito internacional, seja quaisquer princípios a que o recorrente apela, repete-se, sem concretização e consubstanciação minimamente exigíveis
Donde, por não ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, entender-se não merecer provimento o presente recurso.»
*
Cumpre decidir.
***
II – Pressupostos processuais
O tribunal é competente em razão da matéria, nacionalidade e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
***
III – Os Factos
1 - No dia 28 de Janeiro de 2015 o recorrente requereu autorização de residência com o fim de se reunir com o seu filho e esposa (fls. 24-36 do p.a.).
2 - Em 12/03/2015 foi efectuado um relatório nº 300104/CESMFR/2015P, com o seguinte teor:
«Assunto: pedido de autorização de fixação de residência
Relatório complementar n.º 300104/CESMFR/2015P
Data: 12/03/2015
1. Com referência ao pedido de fixação de residência em Macau apresentado pelo requerente Sr. A aos 28 de Janeiro de 2015, para poder reunir-se com o filho de tenra idade B (agora de 7 meses), portador do BIRM permanente, redigimos o relatório n.º 200203/CESMFR/2015P aos 05 de Fevereiro de 2015.
.../...
2. Este Serviço tenciona “indeferir” o pedido; pelo que aos 16 de Fevereiro de 2015, nos termos dos artigos 93.º e 94.º do Código do Procedimento Administrativo (audiência escrita), demos a conhecer ao requerente formalmente os motivos concretos conducentes à nossa proposta de indeferimento; podendo eles, no prazo de 10 dias após a recepção do aviso, pronunciar-se por escrito sobre o conteúdo da proposta. Vd. em mais detalhes o aviso de audiência n.º 200203/CESMFR/2015P. (documento 14)
3. Aos 26/02/2015, o advogado do requerente apresentou os seguintes documentos:
- a procuração do requerente, em que declara que constitui a Dra. Advogada Sílvia Mendonça, o Dr. Advogado Paulo Ramalho Gonçalves, e a Dra. Advogada Estagiária Che Sok Ha como os seus procuradores, outorgando-lhes os poderes gerais permitidos pela lei, incluindo o de subdelegação, para o representar no tratamento dos respectivos processo legais em Macau e apresentarem-se neles. (Data de emissão: 28/01/2015) (documento 15)
- A declaração escrita do advogado do requerente, declarando que é por “normalmente, o que as autoridades de segurança, encarregadas da execução das políticas de imigração, autorizam, é meramente os pedidos de fixação de residência para que os filhos menores possam reunir-se com os pais, ao invés dos casos contrários, i.e. os pedidos de fixação de residência para que os pais possam tomar cuidado dos filhos menor, a não ser os casos especiais e provados”, que se indefere a fixação de residência do requerente; o requerente quer reunir-se, não apenas com o filho portador do BIRM, como também com a mãe deste filho (ou seja, o cônjuge do requerente). Embora haja registo criminal dele, isso aconteceu já há 14 anos. O crime foi praticado há muito tempo, portanto, não deve continuar a ser punido. Além disso, o requerente agora já não tem registo criminal. Por fim, o pedido de fixação de residência foi indeferido também porque “o requerente é residente permanente de Hong Kong, podendo permanecer no Território quase sem qualquer restrição. Portanto, não há qualquer factor que ponha em causa a sua reunião com o filho de tenra idade”. Mas a lei não dispõe sobre o fim de pedido de direito à residência. Demais a mais, anexaram-se alguns documentos para referência. (Documento 16)
- A certidão de nascimento em Macau do filho do requerente. (Documento 17)
- A certidão de narrativa do registo de casamento em Macau do requerente (data de casamento: 08/07/2011, data de emissão: 27/01/2015); (Documento 18)
4. Faz-se uma análise sintética do presente caso:
- O pedido de reunião com o filho menor do requerente não está em conformidade com os requisitos prescritos pelo Secretário para a Segurança para apreciar e autorizar os casos do mesmo género. Além disso, tomando em conta as circunstâncias concretas do requerente, não há qualquer situação a que se possa dar uma consideração especial.
- Em 2001, o requerente foi condenado à pena de prisão de 5 meses, executada com suspensão de 2 anos, por ter cometido um crime de acolhimento de indivíduos ilegais.
5. À decisão superior.
(nota: ainda faltam a cópia dos documentos comprovativos de identidade de Hong Kong/Macau dos familiares do requerente, o documento comprovativo da morada, o documento comprovativo da capacidade de subsistência, o certificado de registo criminal de Hong Kong, o cartão de impressões digitais do Departamento de Informações)
A elaboradora, O Chefe do Comissariado de Estrangeiro,
(ass.: vd. o original) (ass.: vd. o original)
XXX XXX
120570 Comissário » (fls. 10 -12 do apenso “traduções”).
3 – A Chefe Substituta do Serviço de Emigração elaborou, em 20/03/2015, o seguinte parecer:
«1. O requerente, do sexo masculino, casado, 45 anos, nascido em I Hong Kong, portador do BIR HK permanente, ora requer autorização para poder fixar residência em Macau, a fim de poder reunir-se com o filho de tenra idade (agora 7 meses), portador do BIRM permanente.
2. Normalmente, o que as autoridades de segurança, encarregadas da execução das políticas de imigração, autorizam, é meramente os pedidos de fixação de residência para que os filhos menores possam reunir-se com os pais, ao invés dos casos contrários, i.e. os pedidos de fixação de residência para que os pais possam tomar cuidado dos filhos menor, a não ser os casos especiais e provados.
3. Além disso, segundo a sentença n.º PSM-011-01-03 do TJB, em 2001, o requerente foi condenado à pena de prisão de 5 meses, executada com suspensão de 2 anos, por ter cometido um crime de acolhimento de indivíduos ilegais.
4. Portanto, nos termos da Lei n.º 4/2003, art.º 9, n.º 2, alíneas 1), 5), 3), 6), é de indeferir o presente requerimento de fixação de residência.
5. Após o processo de audiência escrita (documento 14), o advogado do requerente apresentou as alegações escritas e os documentos respeitantes ao nosso Serviço. (vd. em mais detalhes os documentos 15 a 18)
6. Tendo em conta que os documentos apresentados e os motivos alegados pelo requerente na fase de audiência são insuficientes (vd. pontos 3 e 4 do Relatório), e nos termos da Lei n.º 4/2003, art.º 9, n.º 2, alíneas 1), 5), 3), 6), propõe-se indeferir o presente pedido de fixação de residência.
7. À apreciação e consideração do Sr. Comandante.
Aos 20/03/2015
A chefe substituta do Serviço de Migração
XXX (ass.: vd. o original) Subintendente »
(fls. 8 e 9 do apenso “traduções”).
4 – O Comandante da PSP, em 23/03/2015, pronunciou-se do seguinte modo:
« Concordo.
À apreciação do Sr. Secretário para a Segurança» (fls. 8 do apenso “traduções”).
5 – O Secretário para a Segurança proferiu em 21/04/2015 o seguinte despacho (a.a.):
« Assunto: Pedido de residência
Interessado: A
Referência: Informação complementar nº 300104/CESMFR/2015P
Inicialmente o interessado pediu a autorização de residência para efeitos de reagrupamento familiar com o seu filho menor. Tendo-se realizado a audiência escrita, explicou que o seu pedido foi formalizado por motivo de reagrupamento familiar com o filho e a mulher.
De acordo com o ponto 3 da informação acima referida, o interessado foi condenado por ter praticado o crime de acolhimento em Macau.
Tal facto manifesta que o requerente não é cumpridor da lei. Além de falta de confiança quanto ao cumprimento da lei por parte do interessado, o mesmo não merece possuir a qualidade de residente de Macau. Atendendo à segurança pública e nos termos do artº 9º, nº 2, al. 1) da Lei nº 4/2003, decide-se indeferir o pedido de autorização de residência do interessado.» (fls. 4 do apenso “traduções”).
6 – O recorrente contraiu casamento em Macau no dia 16 de Junho de 2011 com C (fls. 49 do p.a.).
7 – Do casamento adveio o nascimento de um filho em 11 de Julho de 2014, de nome B (fls. 48 do p.a.).
8 – O recorrente foi condenado por sentença datada de 17/01/2001, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 anos, pela prática de um crime de acolhimento de indivíduos entrados ilegalmente em Macau (fls. 61-63 vº do p.a.).
9 – Nada consta dos certificados de registo criminal do recorrente de Hong Kong e de Macau (fls. 21 e 37, respectivamente, do p.a.)
***
IV – O Direito
1 – Introdução
Depois de uma crítica geral que o recorrente dirige contra o acto em crise - por vezes com um carácter marcadamente sócio-filosófico a que o tribunal só pode evidentemente ficar alheio, porque fora do quadro jurídico – inúmeros foram os vícios invalidantes imputados.
E se, como é claro, a quantidade não pode merecer a mais leve censura por parte do tribunal, pois que é um direito inquestionável do recorrente atacar o acto de todos os pontos de vista e em todas as frentes disponíveis, a verdade é que o modo por que tal foi feito nos deixa reservas sérias a propósito de uma apreciação jurisdicional bem conduzida. É que, sem uma correspondência enxuta e exacta entre a “causa do mal” e o remédio invalidante, quase nem os princípios da cooperação e do anti-formalismo e pro-actione deixam espaço ao julgador para uma atitude de melhor colaboração.
Mesmo assim, procuraremos dar resposta a todos os vícios expostos na petição inicial e que nas alegações facultativas tenham sido reconduzidos (excluindo destas aqueles que não tenham sido invocados inicialmente e que não tenham surgido por causa de conhecimento superveniente: cfr. art. 68º, nº3, do CPAC).
*
2 – Começa o recorrente por defender que a condenação de que foi alvo já não existe.
Efectivamente, do certificado de registo criminal de Macau nada consta.
Todavia, e como é posição unânime dos tribunais da RAEM, “Os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo” (Ac. TSI, de 19/11/2015, Proc. nº 827/2014; 5/12/2013, Proc. nº 340/2013).
Daí que igualmente se afirme que “Os nºs 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração.” E ainda que “A reabilitação de direito não tem natureza vinculativa para a Administração na decisão quanto à autorização de residência, tomada ao abrigo do disposto no art. 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, que permite a Administração indeferir o pedido de autorização de residência do interessado, tendo em consideração os seus antecedentes criminais” (Ac. TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014).
Ou seja, o facto de o certificado não contemplar já a punição criminal imposta ao recorrente, por força de reabilitação (cfr. fls. 39 do p.a.), em nada constitui obstáculo ao indeferimento da pretensão relativa à autorização de residência, na medida em que esta decisão administrativa se move por critérios que não coincidem necessariamente com aqueles que avultam no universo penal.
Isto mesmo, aliás, se deve dizer da circunstância de o certificado não fazer menção à condenação por efeito do decurso de um prazo de suspensão da execução da pena sem nova condenação.
Tanto num caso, como no outro, o que conta para o decisor administrativo é o mundo da realidade material (aquele que se extrai dos factos ocorridos no passado temporal), não o da realidade formal (aquele que emerge de documento registral sobre o passado do indivíduo).
Assim sendo, a argumentação aduzida a este respeito não procede,
*
3 – Prossegue o recorrente, dizendo que se aquela condenação foi tida em conta, não entende como o deixaram entrar em Macau para contrair o seu casamento!
Este é, porém, um argumento não jurídico sobre o qual o tribunal não pode debruçar o seu olhar, como o recorrente bem compreenderá.
É que esse facto, por muito que se apele à unidade do sistema jurídico, não pode impedir a Administração de exercer os seus poderes quando tem que resolver uma pretensão específica e com requisitos próprios e autónomos, como é esta a de obter a residência em Macau.
*
4 – O recorrente entende, depois, que o sistema jurídico de Macau obriga a uma interpretação que leve em consideração os legítimos interesses e direitos do cidadão. E no que a este assunto concreto respeita, apela à Nota Justificativa da Lei nº 4/2003.
Cremos, porém, que da Nota não resulta nenhum quadro que atente contra a decisão administrativa aqui sindicada. A Nota vale por si e por mais nada, não tem a força de comando normativo e apenas serve de auxílio à compreensão das normas do diploma a que se refere. Os objectivos do diploma, que a Nota de uma maneira ou outra evidencia, são programáticos.
Não se nega que se devam ter sempre presentes os direitos fundamentais, que se procure garantir um desenvolvimento sócio-económico que traga mais valia para as condições de vida da população, que se não apouquem os direitos liberdades e garantias das pessoas. Mas, nada disso está em causa se é a própria Nota do diploma a explicar que os direitos fundamentais têm que ser conciliados com os interesses em presença, nomeadamente o da segurança interna da RAEM.
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5 – Na mesma senda, o recorrente destaca a alínea 1), do nº2 (citou o nº1, por engano), do art. 9º da Lei nº 4/2003, que preceitua que “Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos…antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4º da presente lei”.
Em sua opinião, não pode confundir-se “antecedentes criminais” com “registo criminal” e que o legislador aplicou a expressão “antecedentes criminais” e não “registo criminal”. E seria, por isso mesmo, que na melhor hermenêutica tendente ao apuramento do pensamento do legislador não pode deixar de ter-se em conta o disposto no art. 8º do CC.
Pois bem. Quanto a nós, o regime de entrada, permanência e autorização de residência constante da Lei nº 4/2003, é muito claro e das suas normas não decorre fatalmente, à luz do citado art. 8º do CC, a impossibilidade de uma interpretação diversa da efectuada pelo acto sindicado.
Se o legislador incluiu a expressão “antecedentes criminais” fê-lo num pano de fundo muito amplo de modo a abranger quaisquer condutas tipificadas criminalmente tanto na RAEM como no exterior (Ac. do TUI, de 14/12/2012, Proc. nº 76/2012). É esse passado do indivíduo que o legislador quer que a entidade administrativa competente leve em consideração, de forma a poder tomar uma decisão de acordo com os valores e objectivos plasmados no diploma em apreço, nomeadamente os de segurança e ordem pública.
É evidente que o exemplo que o recorrente nos oferece, ainda que ilustrativo, é falacioso. Evidentemente, a mulher árabe com um registo criminal manchado por ter sido surpreendida com a cara descoberta em Bagdad, ao contrário do que sugere o recorrente, não constitui, por si só, ameça e perigo para a segurança pública interna de Macau. Para os efeitos da nossa lei, o perigo e ameaça em causa deverão ater-se ao tipo de ilícito cometido, capaz de revelar uma personalidade mal formada ou que induza a uma ideia de ameaça em qualquer espaço geográfico do mundo, incluindo a RAEM.
É por isso que o facto de o recorrente ser casado com uma residente local e ser pai de uma filha também residente da RAEM não conduz, face à lei, a uma decisão necessariamente favorável à sua pretensão, nem obsta ao indeferimento desta. O que vale por dizer que, em caso nenhum, a reunião familiar pode ultrapassar os limites dos requisitos essenciais, situados a montante, à concessão da autorização de residência.
Portanto, não cremos que o art. 8º do CC acuda ao recorrente ou que o art. 9º, nº2, al. 1), citado tenha sido mal interpretado.
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6 – O recorrente defende ainda que o acto em causa terá ofendido o disposto nos arts. 38º da Lei Básica (onde é consagrada a liberdade de contrair casamento e constituir família), a Lei nº 6/94/M, de 1 de Agosto (Lei de Bases da Política Familiar), o art. 17º da Lei nº 29/78 (Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos), e Aviso do Chefe do Executivo nº 16/2001 (que determina a manutenção da aplicação em Macau do referido Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos).
Porém, nenhum dos direitos em apreço, nomeadamente o de casar, de contrair família, de exercer os direitos/deveres de protecção aos filhos menores, etc., etc., foi posto em risco.
Cada coisa no seu lugar! O que se passa é que por vezes há conflitos de direitos. De um lado, direitos fundamentais do indivíduo; do outro, direitos e valores colectivos e societários.
Os direitos do indivíduo só podem ser realizados sem compressão desde que não contendam com as regras que a sociedade tenha imposto perante agressões a valores e direitos de todos.
Se assim não fosse de entender, isto é, se o direito individual, mesmo que fundamental, pudesse sobrepor-se sempre e em todos os casos ao direito de todos à ordem e segurança públicas, por exemplo, poderíamos cair em situações extremas de ter que se conceder autorização de residência a um criminoso perigoso por homicídios cometidos em África, sempre que ele pretendesse o reagrupamento familiar dessa pessoa com residentes de Macau.
Como bem sabe o recorrente, as coisas não funcionam assim, não obstante estarem em discussão aspectos de grande sensibilidade social e familiar, como é o caso do direito à família, do dever de protecção e educação dos filhos. Amor e carinho que na célula familiar todos devem nutrir uns pelos outros são importantes; contudo, não podemos deixar de reconhecer que, constituindo eles aspectos de grande melindre, pertencem, porém, ao foro não jurídico.
Juridicamente, o que há a dizer é que cada instrumento normativo, cada grupo de normas e cada norma em si mesma têm o seu campo específico de acção, no respeito sempre presente por outros instrumentos, por outros grupos de normas, por outras normas. Ora, o que o recorrente pretenderá é sobrelevar os direitos que invoca (que não dizemos serem ilegítimos), colocando-os num plano superior ou de anterioridade superlativa, em detrimento dos direitos da sociedade no seu conjunto, conferidos ao elemento do Governo competente, tendentes a defender a ordem e a segurança públicas em cada momento.
Não estamos a dizer que o recorrente é um perigo para a ordem ou para a segurança pública, entenda-se, mas sim que a lei confere à entidade competente o direito de decidir pretensões como a aqui discutida tendo em mente aqueles valores sociais de ordem e segurança públicas.
A esta conclusão, por estas ou outras semelhantes palavras, já este TSI chegou noutras ocasiões (v.g., Acs. de 14/12/2006, Proc. nº 317/2006;26/07/2012, Proc. nº 766/2011; 6/12/2012, Proc. nº 269/2012).
Quer isto dizer, então, que aqueles diplomas e disposições não podem ser dados por violados.
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7 – É claro que decorreram largos anos sobre a condenação. Sim. Todavia, nem aí podemos intervir. Porquê?
Porque «… Para a lei não é particularmente relevante o tempo decorrido desde a prática de crimes e as condenações. Na óptica do legislador, as condenações criminais anteriores, bem como os fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes susceptíveis de ser motivo de recusa da entrada dos não residentes na RAEM (art.º 4.º, n.º 2, al. d) da Lei n.º 4/2003), constituem sempre motivo de alarme para a ordem e segurança públicas da Região.
Em princípio, os interesses públicos de tranquilidade prevalecem sobre os interesses individuais de interessados de entrar e residir na Região.
Ou seja, os antecedentes criminais, seja qual for o período já decorrido depois da condenação, são sempre o factor a considerar na apreciação do pedido de autorização de residência.» (Ac. do TUI, de 13/12/2007, Proc. nº 36/2006).
Porque a “ordem” e “segurança públicas” que o acto disse visar garantir não podem ser sindicados na zona de incerteza e de prognose sobre comportamento futuro das pessoas visadas, salvo em caso de manifesto e ostensivo erro grosseiro e tosco e, como também já se disse, intolerável (Ac. TSI, de 19/11/2015, Proc. nº 827/2014).
E isto vem, agora, a propósito, de mais dois vícios invocados: o da proporcionalidade e adequação do exercício dos poderes discricionários e o da injustiça que a decisão administrativa alegadamente para o recorrente representa.
Como teve este tribunal oportunidade de asseverar, “A total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários que serve de fundamento ao recurso contencioso (art. 21º, al. d), do CPAC) é aquela que tem o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. Decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional.” (Ac. TSI, de 5/12/2013, Proc. nº 340/2013).
E, por outro lado, “Um acto injusto é aquele que o administrado não merece, ou porque vai além do que o aconselha a natureza do caso e impõe sacrifícios infundados atendendo à matéria envolvida, ou porque não considera aspectos pessoais do destinatário que deveriam ter levado a outras ponderação e prudência administrativas. É injusto porque, podendo o seu objecto realizar-se com uma carga menor para o administrado, a este se lhe impõe, apesar disso, um gravame penoso demais” (Ac. TSI, de 5/12/2013, Proc. nº 340/2013).
Todavia, falar em desproporcionalidade, desrazoabilidade e injustiça, é falar em discricionariedade, constituindo aqueles limites a esta.
E sabemos que é actuação discricionária aquela em que a Administração actua em situações de autorização de residência (neste sentido, entre outros, Ac. do TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014; de 9/07/2014, Proc. nº 29/2014; do TSI citado de 19/11/2015, Proc. nº 827/2014).
E, sendo assim, entende-se que só em casos de erro grosseiro, manifesto e intolerável no exercício dos poderes discricionários o tribunal pode intervir.
Ora, nós não vislumbramos erro grosseiro e manifesto no exercício concreto dos poderes discricionários neste caso, para mais se tivermos presente o tipo de ilícito que o recorrente em tempos chegou a cometer, e que foi, como sabemos, o de auxílio ou acolhimento de imigrantes ilegais. Neste aspecto, portanto, ao tribunal não cabe fazer censura ao acto administrativo em apreço.
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8 – Da mesma maneira, e pelas razões acabadas de referir, igualmente não podemos dizer terem sido violados direitos fundamentais do recorrente, da esposa e da filha menor, assim como não podemos acompanhá-lo quando invoca a violação dos arts. 4º (violação do princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos) e 5º, nº2 (princípio da adequação e proporcionalidade) do CPA.
Repetimos: os direitos do recorrente à família, não foram violados. O que houve foi uma compressão deles, em face do seu próprio comportamento que levou a Administração a não lhe conceder autorização de residência. Todavia, o facto de não dispor de autorização para residir em Macau não significa que tenha sido violado o direito de manter a sua família e de dar à esposa e filha a protecção que elas merecem. O recorrente pode reunir com a família, pode prestar aos elementos do seu agregado auxílio e amparo, amor e carinho; apenas não pode fazê-lo residindo em Macau ao abrigo de uma autorização administrativa que confira um estatuto próprio. Mas, enquanto cidadão residente na RAEHK nada impede que venha a Macau com a frequência que ache conveniente e adequada.
Tal como não vemos que o princípio da legalidade (art. 3º, nº1 do CPA) tenha sido ofendido, pois, na verdade, a Administração agiu em obediência à lei e ao direito dentro dos limites dos poderes que lhe foram atribuídos e em conformidade com os fins securitários e de ordem pública para os quais os poderes lhe foram conferidos.
Eis, enfim, as razões para o inêxito do presente recurso contencioso.
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V – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente, com imposto de justiça em 4 UC.
TSI, 14 de Abril de 2016
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fui presente
Mai Man Ieng


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