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Processo nº 998/2015 Data: 26.05.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “falsas declarações sobre a identidade”.
Dolo.
Erro notório na apreciação da prova.


SUMÁRIO

1. Existe erro notório na apreciação da prova – por desrespeito às regras de experiência – se se dá como “não provado” que o arguido tenha agido com “dolo” em relação a 1 imputado crime de “falsas declarações sobre a identidade”, e se dos autos resultar que o mesmo prestou duas “declarações de identidade” com elementos diferentes, que aquelas foram prestadas nas instalações da P.S.P., em 10.09.2014 e 03.02.2015, (portanto, dentro de um período inferior a 6 meses), que foram ambas as declarações prestadas (por escrito e) pelo próprio punho do arguido, e que em ambas elas, junto do local onde o arguido apôs a sua assinatura, consta uma “nota” com a referência que o declarante (declara e) “confirma” que a identidade declarada é a correcta e verdadeira.
Com efeito, o normal de (uma situação de) uma pessoa adulta, (com 25 anos), solicitada para preencher e assinar uma “declaração de identidade” numa instalação policial, é proceder com (um mínimo de) atenção e cautelas, incompatíveis com os (vários) “erros” – divergências – existentes nas declarações que prestou, não se mostrando de acolher a conclusão a que chegou o T.J.B. no sentido de se considerar que o que ocorreu – as divergências várias entre os elementos fornecidos nas duas declarações – terão sido o resultado de um (mero) “lapso involuntário” do arguido.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 998/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público vem recorrer da sentença proferida pela Mma Juiz do T.J.B. que absolveu o arguido A da imputada prática de 1 crime de “falsas declarações sobre a identidade”, p. e p. pelo art. 19°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004.

No seu recurso, e em sede de conclusões que a final da motivação apresentada produz, considera que a decisão recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 56 a 60-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Respondendo, pugna o arguido pela confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 62 a 67).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.56 a 60v. dos autos, a ilustre colega assacou, à sentença recorrida, o erro notório na apreciação de prova previsto na alínea c) do n.°2 do art.400° do CPP, alegando que infringiu a regra de experiência tal douta sentença nas partes respeitantes à verdadeira identidade do arguido e ao elemento subjectivo do crime indicado na acusação.
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Note-se que a MMa Juiz a quo deu como provado que a identidade declarada pelo recorrente em 3/2/2015 na PSP está em desconformidade com a declarada pelo mesmo em 10/9/2014 também na PSP (2015年2月3日,嫌犯在治安警察局接受調查,經治安警察局核對後揭發嫌犯曾提供不同的身份資料).
E na parte «定罪 (Subsunção Jurídica)» da aludida sentença, a MMa Juiz a quo decidiu: 根據已審理查明的事實,由於未能證實嫌犯 A故意向警務機關提供不實姓名及身份資料,以妨礙澳門警方對其真實身份的審查,因此,未能證實其行為已符合有關罪狀的主觀要件。基於此,法院裁定嫌犯被控以直接正犯及既遂行為處罰一項第6/2004號法律第19條第1款規定及處罰的「關於身份的虛假聲明罪」,罪名不成立。Eis o único fundamento que levou a MMa Juiz à decisão de absolver o arguido da acusação, pois ela não pôs em dúvida os elementos objectivos do aludido crime.
 Com efeito, o percurso atencioso dos doutos arestas do Venerando TSI semeia-nos a impressão de ser adquirido e pacífico que a verificação do crime de falsas declarações sobre a identidade não depende de ser previamente apurado pelo M.°P.° qual seja identidade verdadeira e exacta do arguido, e qual seja falsa, bastando seguramente provar que o arguido tenha prestado falsas declarações sobre a sua identidade.
Nesta linha de vista e de acordo com o raciocínio da MMa Juiz a quo, afigura-se-nos irrelevante, para o recurso em apreço, o «facto não provado» de ser falsa a declaração do arguido na PSP em 10/09/2014 (嫌犯在2014年9月10日向治安警察局申報的上述身份資料是虛假的).
Nestes termos, o que importa é que se aprecia se in casu se padecer de qualquer erro ou vício a convicção da MMa Juiz a quo de «未能證實其行為已符合有關罪狀的主觀要件».
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Para os devidos efeitos, importa, antes de mais, apontar que no que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica e consolidada, no actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência (cfr. a título exemplificativo, os Acórdãos do Venerando TUI nos Processos n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014):
O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
No caso sub iudice, convém recordar-se que a MMa Juiz a quo deu como provado que a identidade declarada pelo recorrente em 3/2/2015 está em desconformidade com a declarada em 10/9/2014 também na PSP pelo mesmo. E é manifesta tal desconformidade, em virtude de existir no nome próprio dele, na sua data de nascimento e nos nomes dos seus pais.
Ora bem, está ainda provado que em data não apurada o arguido entrou em Macau clandestinamente (在不確定日期,嫌犯偷渡進入澳門). Com efeito, o arguido encontrava na situação clandestina ao ser interceptado em 10/9/2014 por agentes da PSP.
Ressalvado respeito pela opinião em sentido contrário, parece-nos que os factos provados ficam notoriamente incompatíveis com seguintes factos não provados, quais são: «嫌犯為逃避本澳規範非法入境及逗留的法律對其產生效力,隱暪其非法身份及逃避澳門當局追查,向澳門公共當局及執行職務的公務員虛報其身份資料。» «嫌犯是在自由、自願及有意識的情況下故意作出上述行為» e «其明知法律禁止及處罰上述行為。»
À luz da razão humana normal e da regra de experiência, aqueles factos provados conduzem a que o arguido prestasse dolosamente falsas declarações sobre a identidade, destinadas a evitar fraudulentamente as sanções prescritas no n.°1 do art.19° da Lei n.°6/2004.
 Daí flui que, além da apontada incompatibilidade notória, infringe a regra de experiência e é logicamente inaceitável a conclusão (da MMa Juiz a quo), traduzida em «根據已審理查明的事實,由於未能證實嫌犯 A 故意向警務機關提供不實姓名及身份資料,以妨礙澳門警方對其真實身份的審查,因此,未能證實其行為已符合有關罪狀的主觀要件。»
Nesta linha de perspectiva e em esteira da brilhante jurisprudência supra citada, sufragamos a posição defendida pela ilustre Colega na referida Motivação, no sentido de o arguido cometer o crime de falsas declarações sobre a identidade p.p. pelo art.19° da Lei n.°6/2004.
Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência do presente recurso”; (cfr., fls. 75 a 76-v).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 48-v a 49, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o Ministério Público recorrer da sentença que absolveu o arguido A da imputada prática de 1 crime de “falsas declarações sobre a identidade”, p. e p. pelo art. 19°, n.° 1 da Lei n.° 6/2004.

Entende que está a mesma inquinada com o vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Vejamos se tem razão.

Pois bem, “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 14.01.2016, Proc. n.° 1053/2015, de 25.02.2016, Proc. n.° 94/2016 e de 03.03.2016, Proc. n.° 82/2016).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 14.01.2016, Proc. n.° 863/2015 e de 25.02.2016, Proc. n.° 87/2016).

Prevendo o crime de “falsas declarações sobre a identidade” preceitua o art. 19° da Lei n.° 6/2004 que:

“1. Quem, com a intenção de se eximir aos efeitos da presente lei, declarar ou atestar falsamente, perante autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos.
2. Quem, com a mesma intenção, induzir em erro autoridade pública ou funcionário no exercício das suas funções, atribuindo falsamente a si ou a terceiro, nome, estado ou qualidade a que a lei reconheça efeitos jurídicos, é punido com a mesma pena”.

No caso, entendeu a Mma Juiz a quo que não obstante tenha o arguido declarado uma identidade não (totalmente) coincidente com uma outra, antes declarada, provado não estava o seu “dolo” em tal conduta, ou seja, que assim tenha agido para se “furtar aos efeitos” a que se refere o preceito do art. 19°.

E, então, quid iuris?

Ainda que à primeira vista se possa considerar tal decisão uma “solução (algo) natural”, cremos que in casu não se mostra de confirmar o decidido.

Eis os motivos deste nosso entendimento.

Desde já, há que notar que as “declarações” em questão foram prestadas nas instalações da P.S.P., em 10.09.2014 e 03.02.2015, (portanto, dentro de um período inferior a 6 meses), que foram ambas as declarações prestadas (por escrito e) pelo próprio punho do arguido, e que em ambas elas, junto do local onde o arguido apôs a sua assinatura, consta uma “nota” com a referência que o declarante (declara e) “confirma” que a identidade declarada é a correcta e verdadeira; (cfr., fls. 3 a 7).

E, nesta conformidade, tendo presente as regras de experiência e da normalidade das situações, não se mostra de acolher a conclusão a que chegou o T.J.B. no sentido de se considerar que o que ocorreu – as divergências várias entre os elementos fornecidos nas duas declarações – terão sido o resultado de um (mero) “lapso involuntário” do arguido.

Com efeito, o normal de (uma situação de) uma pessoa adulta, (com 25 anos), solicitada para preencher e assinar uma “declaração de identidade” numa instalação policial, é proceder com (um mínimo de) atenção e cautelas, incompatíveis com os (vários) “erros” – divergências – existentes nas declarações que prestou, mostrando-se assim de concluir que incorreu o Tribunal a quo no imputado vício de erro notório que, nos termos do art. 418° do C.P.P.M., impõe o reenvio para novo julgamento na parte em questão.

Decisão

4. Em face do exposto, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso.

Custas pelo arguido, com taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor do arguido no montante de MOP$1.800,00.

Macau, aos 26 de Maio de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 998/2015 Pág. 14

Proc. 998/2015 Pág. 15