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Processo n.º 34/2016. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrida: B.
Assunto: Cheque de garantia. Fiança.
Data do Acórdão: 13 de Julho de 2016.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
   I - O cheque de garantia é aquele que é emitido em favor de uma pessoa para assegurar o cumprimento de uma obrigação, sendo sacado em branco, destinando-se a ser preenchido posteriormente, se a obrigação garantida não for adequadamente cumprida, ou é pós-datado, isto é, sacado completo, mas com indicação de data posterior à da sua efectiva criação.
II – O cheque de garantia não é fiança, pelo que não tem de obedecer aos requisitos da fiança.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe foi movida por B, veio A, deduzir embargos de executada.
A sentença de 1.ª Instância julgou procedentes os embargos e declarou extinta a execução.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 21 de Janeiro de 2016, julgou parcialmente procedente o recurso interposto pela exequente/embargada e improcedentes os embargos, estes excepto na parte respeitante a pagamento parcial da dívida, no montante de HKD$500.000,00.
Recorre agora para este Tribunal de Última Instância (TUI) a executada/embargante A, suscitando as seguintes questões:
1.ª - O Tribunal recorrido logrou vislumbrar factualidade provada, e em particular na emissão pela recorrente do cheque sub iudicio, um reconhecimento condicional do dever de pagar uma dívida que tinha como efectiva devedora a sociedade C, e não a recorrente;
- Tal reconhecimento constituiria, assim, a relação subjacente à emissão do cheque dos autos;
- Sucede que a prova efectivamente feita nos autos indica que nenhuma das partes pretendeu que o cheque em causa se destinasse a titular o pagamento da dívida da sociedade C;
2.ª - A proceder o entendimento do Tribunal recorrido de que a recorrente teria garantido a obrigação da C, estaríamos então, no que ao enquadramento jurídico dessa garantia diz respeito, perante uma fiança;
- Dispõe o art. 624.º, n.º 1 Código Civil que a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada;
- A declaração negocial que consubstanciaria a prestação de fiança foi corporizada num cheque, utilizado para o efeito enquanto forma convencional, nos termos do art. 215.º, n.º 1 do Código Civil;
- Como é patente, esse cheque contém apenas e só as menções a que alude o art 1212º do Código Comercial, não se faz nele qualquer alusão à existência da obrigação garantida, não se menciona sequer o nome do devedor principal e muito menos se faz referência a qualquer vontade da recorrente, emitente do cheque, de garantir a dívida da sociedade C e de ficar pessoalmente obrigada por tal dívida perante o credor;
- Acresce que, ainda que pudessem valer nesta matéria as declarações negociais da recorrente exteriores ao cheque o certo é que elas não revelam a expressa vontade que a lei reclama para que a fiança seja válida;
- Assim, também por falta de forma da suposta fiança prestada pela recorrente teria que concluir-se pela inexistência de qualquer obrigação de pagamento da mesma relativamente à dívida da C.

II - Os Factos
São os seguintes os factos provados:
A executada ora embargante emitiu o cheque que consta de folhas 42 da execução de que estes são apenso e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (alínea a) dos factos assentes).
- A exequente apresentou o cheque referido na alínea anterior a pagamento em 08/11/2012. (alínea b) dos factos assentes).
- A executada dedica-se à exploração da indústria hoteleira e é titular de um estabelecimento de hotel denominado “[Hotel (1)]”, sito em Taipa, Macau, o qual explora na prossecução daquela actividade (alínea c) dos factos assentes).
- No mesmo edifício em que se encontra instalado o estabelecimento de hotel da executada, opera também um estabelecimento de casino denominada “C” (resposta ao quesito 1 da base instrutória).
- O casino referido no item anterior é explorado pela sociedade “C” (“C”) (resposta ao quesito 2 da base instrutória).
- A executada e a referida C possuem uma estratégia de gestão conjunta e integrada (resposta ao quesito 3 da base instrutória).
- As duas sociedades referidas supra têm tido, ao longo dos anos, uma administração comum, sendo que os cargos de gerente-geral da executada e de presidente do conselho de administração da C são exercidos pela mesma pessoa, a D, pelo menos, até à data do registo da presente acção (resposta ao quesito 4 da base instrutória).
- Os aludidos estabelecimentos de casino e hotel, ainda que explorados por sociedades distintas, são, na prática, geridos numa lógica de complementaridade funcional, o que sucede em virtude da quase identidade de espaços físicos ocupados por ambos os estabelecimentos, e da circunstância de as valências de cada um deles serem aptas a beneficiar e exponenciar a actividade do outro (resposta ao quesito 5 da base instrutória).
- No contexto da gestão integrada e complementar da executada e da C, é prática corrente a existência de fluxos financeiros entre ambas (resposta ao quesito 6 da base instrutória).
- No casino C operam diversas denominadas "salas VIP" (resposta ao quesito 7 da base instrutória).
- A promoção da actividade de jogo numa dessas salas VIP, que opera sob a designação Sala E, é exercida, pelo menos, pelo F (resposta ao quesito 8 da base instrutória).
- No âmbito da relação que mantém com os promotores da referidas sala VIP, existem fluxos financeiros entre a C e os referidos promotores, a título de comissões (resposta ao quesito 9 da base instrutória).
- Em Outubro de 2012, a C não possuía meios financeiros suficientes para liquidar os montantes que, a esse título, seriam devidos ao F (resposta ao quesito 10 da base instrutória).
- O F exigiu que a C liquidasse de imediato os valores que lhes seriam devidos (resposta ao quesito 11 da base instrutória).
- Não possuindo disponibilidades de tesouraria para o efeito, a C solicitou-lhes um prazo para tentar recuperar a sua situação financeira, após o que, as partes voltariam a reunir para tentarem estabelecer um plano de pagamento (resposta ao quesito 12 da base instrutória).
- A exequente e o Sr. F anuíram ao pedido da C, mas exigiram que esta apresentasse uma garantia de pagamento (resposta ao quesito 13 da base instrutória).
- Nunca a executada adquiriu à exequente e ao F, qualquer produto, ou lhes solicitou a prestação de qualquer serviço, no montante peticionada na acção executiva ou em qualquer outro (resposta ao quesito 13-A da base instrutória).
- A C não tinha possibilidade de apresentar a garantia exigida (resposta ao quesito 14 da base instrutória).
- No seguimento do referido nos dois itens anteriores a C solicitou à executada a emissão de um cheque pós-datado para a data de 05/11/2012 (resposta ao quesito 15 da base instrutória).
- Anuindo ao pedido referido no item anterior a executada emitiu o cheque referido em a) (resposta ao quesito 16 da base instrutória).
- A executada fez o referido no item anterior porque o F assumiu que o cheque lhe seria devolvido quando a C estivesse em condição a pagar (resposta ao quesito 17 da base instrutória).
- Por indicação do F, apenas o nome da exequente foi aposto no cheque dado à execução (resposta ao quesito 18 da base instrutória).
- Na data 5 de Novembro de 2012 a exequente e o F não devolveram à executada o cheque por ela emitido (resposta ao quesito 20 da base instrutória).
- A exequente e o F fizeram seu o cheque que lhes fora entregue pela executada, recusado a sua restituição (resposta ao quesito 21 da base instrutória).
- Em 25/02/2013, a C efectuou um primeiro pagamento parcial da dívida no montante de HKD$500.000,00, que correspondem a MOP$515.000,00 (resposta ao quesito 22 da base instrutória).

III – O Direito
1. As questões a resolver
São duas as questões a apreciar e decidir:
1.ª – Se, ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido, não se provou que o cheque dos autos tivesse sido emitido por A, em garantia do pagamento da dívida do C, também referido como C, para com F;
2.ª – Se, a proceder o entendimento do acórdão recorrido de que a recorrente teria garantido a obrigação da C, estaríamos então, no que ao enquadramento jurídico dessa garantia diz respeito, perante uma fiança, cuja vontade de prestar fiança não teria sido expressamente declarada, nem se fazendo alusão à existência da obrigação garantida e ao nome do devedor principal.

2. Falta de prova de cheque emitido em garantia
A tese da ora recorrente/executada/embargante é a de que, ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido, não se provou que o cheque dos autos tivesse sido emitido por A, em garantia do pagamento da dívida do C, também referido como C, para com F.
Só que este TUI, quando julga em recurso jurisdicional, em 3.º grau de jurisdição, apenas conhece de matéria de direito (n.º 2 do artigo 47.º da Lei de Bases da Organização Judiciária), sendo que não se alegou, no que toca ao julgamento da matéria de facto, qualquer ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (n.º 2 do artigo 649.º do Código de Processo Civil).
Logo, não se apreciará esta questão.

3. Cheque em garantia e fiança
Resta saber se a proceder o entendimento do acórdão recorrido, de que a recorrente teria garantido a obrigação da C, estaríamos então, no que ao enquadramento jurídico dessa garantia diz respeito, perante uma fiança, cuja vontade de prestar fiança não teria sido expressamente declarada, nem se fazendo alusão à existência da obrigação garantida e ao nome do devedor principal.
Mas não é o caso.
Há muito que a prática comercial conhece o cheque em garantia, não se tendo suscitado questões quanto à sua validade. Como explica PAULO OLAVO CUNHA1, “Um cheque pode ser sacado para garantir antecipadamente o pagamento de um bem ou serviço, destinando-se a ser depositado ou rebatido (só) em caso de falta de pagamento oportuno desse bem ou serviço. O cheque de garantia é aquele que é emitido em favor de uma pessoa para assegurar o cumprimento de uma obrigação.
Nessa medida, ele é sacado em branco, destinando-se a ser preenchido posteriormente – se a obrigação garantida não for (adequadamente) cumprida –, ou é simplesmente pós-datado, isto é, sacado completo, mas com indicação de data posterior à da sua efectiva criação. Também neste caso, como veremos, o cheque pode constituir instrumento de garantia de uma obrigação”.
Em Outubro de 2012 a C não possuía meios financeiros suficientes para liquidar os montantes que, a título de comissões, seriam devidos ao F. (resposta ao quesito 10 da base instrutória).
O F exigiu que a C liquidasse de imediato os valores que lhes seriam devidos (resposta ao quesito 11 da base instrutória).
Não possuindo disponibilidades de tesouraria para o efeito, a C solicitou-lhes um prazo para tentar recuperar a sua situação financeira, após o que, as partes voltariam a reunir para tentarem estabelecer um plano de pagamento (resposta ao quesito 12 da base instrutória).
A exequente e o Sr. F anuíram ao pedido da C, mas exigiram que esta apresentasse uma garantia de pagamento (resposta ao quesito 13 da base instrutória).
A C solicitou à executada a emissão de um cheque pós-datado para a data de 05/11/2012 (resposta ao quesito 15 da base instrutória).
Anuindo ao pedido referido a executada emitiu o cheque (resposta ao quesito 16 da base instrutória).
A executada fez o referido porque o F assumiu que o cheque lhe seria devolvido quando a C estivesse em condição a pagar (resposta ao quesito 17 da base instrutória).
A exequente apresentou o cheque referido na alínea anterior a pagamento em 08/11/2012 (alínea b) dos factos assentes).
Os factos descritos apontam para a emissão de cheque de garantia, na modalidade de pós-datação, obedecendo a todos os requisitos legais. Logo, não é fiança, pelo que não tem de obedecer aos requisitos da fiança.
Improcede a questão suscitada.

IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Macau, 13 de Julho de 2016.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai


     1 PAULO OLAVO CUNHA, Cheque e Convenção de Cheque, Almedina, Coimbra, 2009, p. 331 e 333. Suprimiram-se as notas de rodapé.

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