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Reclamação nº 2/2016/R


I – Relatório

A, arguido nos autos do processo comum colectivo nº CR3-14-0138-PCC do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, foi julgado à revelia consentida e condenado na primeira instância pelo Acórdão proferido em 24ABR2015 pela prática, em concurso real e efectivo, de um crime de usura para jogo, previsto e punido pela Lei nº 8/96/M e pelo artº 219º/1 do Código Penal, de um crime de retenção indevida de documento, previsto e punido pelo artº 6º da Lei nº 6/97/M, e de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artº 152º/2-a) do Código Penal, na pena única de 5 anos de prisão.

Em 14MAR2016, o arguido condenado A foi pessoalmente notificado do acórdão condenatório.

Mediante o requerimento motivado remetido em 06ABR2016 por fax ao TJB, o mesmo arguido interpôs recurso ordinário desse Acórdão condenatório para este TSI.

Por despacho da Exmª Juiz titular do processo de condenação, o recurso não foi admitido nos termos seguintes:
  第239-254頁:根據澳門《刑事訴訟法典》第315條第2款的規定被判刑人A表示同意在缺席的情況下進行審判(見第37頁)。
  鑑於一貫的司法見解及根據澳門《刑事訴訟法典》第315條第3款的規定,由於本案有罪判決已通知被判刑人A當時的公設辯護人但其沒有提出上訴,因此,有罪判決已於2015年5月14日轉為確定。
  基於此,由於判決已轉確定,被判刑人於2016年4月5日才提交上訴狀,已屬逾期,本庭不接納被判刑人A提出之上訴。
  作出通知。

Notificada do despacho que não admitiu o recurso por ele interposto do Acórdão vem, ao abrigo do disposto no artº 395º do CPP formular a presente reclamação dizendo que:

A, arguido recorrente já devidamente identificado nos autos à margem referenciados, notificado do despacho de V. Exa. de fls. 265, que não admitiu o recurso por si interposto para o Tribunal de Segunda Instância, vem deste despacho apresentar
RECLAMAÇÃO
O que faz, nos termos do art.º 395° do C.P.P., com a seguinte fundamentação:
Excelentíssimo Senhor Presidente do Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
1. O recurso de cuja não admissão ora se reclama foi interposto por A, ora reclamante, do acórdão proferido em 24/04/2015; que o condenou na pena única de 5 anos de prisão pela prática dos seguintes crimes:
• usura para jogo, p. e p. pelo art.º 13° da Lei n° 8/96/M e art.º 219°, n° 1 do C.P., na pena de 9 meses de prisão;
• retenção indevida de documento de viagem, p. e p. pelo art.º 6° do Lei n° 6/97/M, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão; e
• sequestro, p. e p. pelo art.º152°, n° 2, al. c) do C.P.. , na pena de 4 anos de prisão.
2. Entendeu a Mª Juiz titular do processo que aquele acórdão já havia transitado em 14/05/2015, porquanto o reclamante havia concordado que o julgamento a que foi sujeito fosse feito sem a sua presnça, nos termos do art.º 315°, n° 2 do C.P.P. (v. fls. 37).
Ora,
3. Entende o reclamante que o acórdão de que se interpôs recurso, salvo o devido respeito, não transitou em julgado, em 14/05/2015.
Isto porque,
4. O disposto no art.º 314°, nº 7, refere expressamente que, no caso da audiência ter tido lugar, “na ausência do arguido”, o prazo para interposição de recurso conta-se “... a partir da notificação ao defensor ou, caso este não o apresente, da data da notificação ao arguido.” (negrito nosso).
5. Trata-se de “norma especial” - que regula o prazo para a interposição dos recursos - que se aplica exactamente às situações em que o arguido, seja porque motivo for, não esteve presente em audiência de julgamento.
6. E este regime especial não se encontra em oposição com o regime do art.º 315°, nºs 2 e 3 quando se refere, neste último, que, na ausência do arguido, ele é “respresentado para todos os efeitos possíveis pelo defensor.”
Esta representação pelo defensor não impõe ao defensor a interposição de recurso, antes possibilita este recurso (“... o qual pode apresentar recurso em nome do arguido” – nº 6 do art.º 314°).
Pelo que,
7. Expressamente se refere naquele n° 7 do art.º 314° que, caso o defensor não tenha apresentado recurso, o respectivo prazo de interposição só se conta a partir da data da notificação da sentença ao arguido.
Como foi o caso.
8. A interpretação à lei processual penal feita pelo despacho reclamado choca, salvo o devido respeito, com o espírito da norma consagrada no nº 7 do art.º 314°.
Veja-se, quanto a esta questão, o Parecer da 3ª Comissão Permanente da Assembleis Legislativa (in “Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau” - Manuel Leal Henriques, pág. 595).
9. Acresce que, se assim fosse, a norma do art.° 314°, n° 7 deixaria de ter qualquer sentido, porquanto o disposto no art. ° 315º, n° 2 é a regra instituída nos Serviços do Ministério Público, para todos os “não-residentes da R.A.E.M.”.
Termos em que
Se requer a V. Exa. se digne deferir-lhe a presente RECLAMAÇÃO, ordenando a admissão do recurso oportunamente interposto pelo recorrente, A, ora reclamante, e a consequente subida imediata do recurso ao Tribunal que V. Exa. preside.



II – Fundamentação

Como vimos supra, a Exmª Juiz não admitiu o recurso com fundamento na extemporaneidade.

Para a Exmª Juiz titular do processo que não admitiu o recurso, tendo o arguido sido julgado à revelia consentida nos termos prescritos no artº 315º/2 e 3 do CPP, o Acórdão condenatório já transitou em julgado logo após o decurso do prazo legal para a interposição de recurso ordinário, cujo terminus a quo é o dia seguinte à notificação da condenação feita ao Defensor Oficioso, sem que tenha sido interposto recurso, por quem quer fosse.

Para o reclamante, às situações em que o arguido, seja por que motivo for, não esteve presente em audiência de julgamento, é de aplicar sempre o artº 314º/7 do CPP, à luz do qual “o prazo para a interposição de recurso conta-se a partir da notificação ao defensor ou, caso este não o apresente, da data da notificação ao arguido.”.

Para compreender o seu verdeiro alcance, o nº 7 do mesmo artigo tem de ser interpretado conjuntamente com o disposto no seu nº 6 que reza que “a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente em juízo e ao seu defensor, o qual pode apresentar recurso em nome do arguido.”.

Ambos os normativos foram aditados ao artº 314º do CPP pela Lei nº 9/2013.

Portanto, importa averiguar quais “inovações” que foram trazidas pela Lei nº 9/2013 ao processo penal na matéria de notificações dos actos processuais, com o aditamento dos nºs 6 e 7 ao artº 314º do CPP.

Para nós, as tais “inovações” abrem a porta a algumas situações que anteriormente não eram possíveis.

Por um lado permite-se o aliviamento da acumulação física e da pendência dos processos cujas condenações foram proferidas à revelia absoluta do arguido, pois, face ao regime das notificações anterior delineado no CPP (antes da alteração operada pela Lei nº 9/2013), à excepção das situações de julgamento à revelia consentida, enquanto não tiver sido pessoalmente notificado o arguido julgado à revelia, o prazo legal para a interposição de recurso ordinário não se inicia, e portanto, mesmo interposto pelo defensor, com ou sem indicação ou instrução do arguido, o recurso é sempre considerado prematuramente extemporâneo e portanto não é apreciado pelo Tribunal de recurso.

Por outro lado, o actual nº 6 do artº 314º do CPP permite, independentemente da intenção do legislador, o arguido, que por qualquer motivo, embora já constituído arguido, nunca esteve no processo e já esteve no processo mas ausente na audiência do julgamento fora das situações previstas no artº 315º/2 do CPP, a instruir o seu defensor para a prática de actos processuais, nomeadamente para a interposição do recurso, podendo assim aguardar tranquilamente o resultado final do processo para depois, consoante o sentido da decisão, condenatória ou absolutória, pensar no próximo passo a dar, e no caso de condenação, decidir se vale a pena apresentar-se ao processo submetendo-se às consequências jurídicas aplicadas ou continuar a manter-se revel procurando evitar a sujeição às sanções que lhe forem impostas.

Mas, para nós, as inovações trazem ao nosso sistema pelo menos uma desvantagem.

Desvantagem porque entendemos que, em nome da celebridade processual e da eficiência judicial, o legislador sacrificou intoleravelmente o direito de recorrer do arguido, quando julgado à revelia fora das situações da revelia consentida.

Pois este novo normativo permite que o direito de recorrer legalmente conferido ao arguido, de que indubitavelmente este é único beneficiário, possa ser exercido à revelia da vontade ou até contra a vontade do arguido que, não obstante técnico-juridicamente assistido pelo seu defensor, deve ser considerado como o único sujeito processual que tem a última palavra sobre a interposição ou não do recurso, para além do Ministério Público que pode recorrer no exclusivo interesse do arguido.

Ora, nos termos do disposto no artº 52º/2 do CPP, o arguido pode retirar eficácia ao acto realizado em seu nome pelo defensor, desde que o faça por declaração expressa anterior a decisão relativa àquele acto.

Para que o arguido possa retirar a eficácia ao acto realizado em seu nome pelo defensor, é preciso que o arguido saiba que o seu defensor está a praticar um acto em nome dele.

O que pode não acontecer, ou até normalmente não acontece com recursos interpostos pelo defensor, nos termos permitidos pelo artº 314º/6, in fine, do CPP, se o arguido tiver sido julgado à revelia chamada absoluta e tão só representado por defensor oficioso com quem não tem qualquer contacto.

Assim, conjugando as “inovações” acima vistas e essa norma do artº 52º/2 do CPP, e nas situações em que o defensor é oficiosamente nomeado e não tem ou não conseguir ter qualquer contacto com o arguido ausente, se o seu defensor oficioso, cuja boa vontade nunca questionamos, tomar a iniciativa de interpor recurso ordinário, em nome do arguido, nos termos permitidos no artº 314º/6 e 7, o arguido, quando pessoalmente notificado, ficará irreparavelmente privado do seu direito de recorrer e não pode fazer mais do que sujeitar-se passivamente às consequências jurídicas impostas numa decisão já transitada em julgado.

Como se sabe, pelo menos teoricamente falando, face ao vigente CPP, um indivíduo pode não saber, sem culpa, a existência de um processo penal contra ele instaurado, para o qual, por variadíssimos motivos, nunca foi chamado, mas já foi constituído arguido, acusado ou até julgado e condenado.

Se isso vier a acontecer, cremos que, num sistema que permite excepcionalmente o julgamento à revelia e já aboliu o requerimento para o novo julgamento tal como permitia o Código de 1929, estas “inovações” aditadas ao artº 314º do CPP conduzem necessariamente de forma intolerável o enfraquecimento dos interesses do arguido perante uma decisão judicial contra ele proferida em 1ª instância à sua revelia.

Aliás, tudo quanto que fica dito supra por nós e nos preocupa já foi contemplado na apreciação e nas discussões das razões explicativas das alterações ao CPP no âmbito dos trabalhados preparatórios realizados pela 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, conforme se vê no Parecer nº 3/IV/2013, pág. 108 a 111, onde se lê o seguinte:
  10.1.2. 法案保留了有關如在嫌犯無出席的情況下進行聽證時,嫌犯由辯護人代理的規定(第三百一十四條第五款)。
  為完全適用該規則,法案新文本就將判決通知不出席嫌犯的制度作出修改,在第三百一十四條中增加第六款及第七款。
  根據現行第三百一十七條的規定,對於缺席審判的案件而言,一旦嫌犯被拘留或自願向法院投案時,須立即通知嫌犯有關判決。此規定導致嫌犯的辯護人不能就有罪判決向上級法院提起上訴,因其欠缺嫌犯的通知。
  對於該問題亦進行了分析,並考慮了如允許辯護人以無出席嫌犯名義提起上訴可能造成的影響。該解決方案一方面能讓訴訟程序更快地完結,上級法院可更快捷地裁定嫌犯有罪或無罪,從而有助盡早澄清嫌犯的法律狀況。但另一方面,亦可能帶來風險,即無出席嫌犯可能在沒有親身接觸有關訴訟且沒有親自行使辯護權的情況下,而被確定判罪。
  法案新文本設法為該問題尋求平衡的解決方案,因此在第三百一十四條第六款及第七款中規定:
  “六、一旦嫌犯被拘留或自願向法院投案,判決須立即通知嫌犯;判決亦須通知其辯護人,而其辯護人可以嫌犯的名義提起上訴。
  七、提起上訴的期間自該判決通知辯護人起計,或如辯護人沒有提起上訴,則自該判決通知嫌犯之日起計。”
  該解決方案首先透過允許辯護人一經通知有罪判決便可以嫌犯的名義提起上訴,從而開闢了立即就有罪裁定提起上訴的路徑(新的第三百一十四條第六款);其次,也為嫌犯提起上訴的期間計算設定了一個二元制度,一個是以通知辯護人為開始計算該期間的原則,但如在辯護人選擇不提起上訴情況下,則採取另一計算方法,即由嫌犯親自獲通知之日起計,也就是當嫌犯被拘留或自願向法院投案時獲通知起計算。該用作計算提起上訴期間的二元制度旨在避免嫌犯因辯護人在獲通知後卻沒有行使上訴權而喪失該上訴權利。
  委員會認同該制度是創新的立法解決方案,即使是從比較法的層面亦然。基於澳門本身的特性,特別是其面積及人口流動方面的特點,採用該方案亦是合理的,但是否能適當地回應就無嫌犯出席的聽證中所作的審判在提起上訴方面可能存在的實際困難,則只能從日後的司法實踐中才可得出正面的結論。然而,根據載於法案第六條第一款所指的過渡制度,該新方案亦適用於仍然待決的訴訟程序,此規定將容許澳門的刑事訴訟體系中相當數量的訴訟程序得以完結,不論最終的裁判為何亦有助於加強法律確切性。

Aparentemente falando, o que dissemos supra não tem a ver com as questões suscitadas na presente reclamação.

Todavia, só aparentemente.

No fundo, a mens legislatoris, bem ou mal, é mais do que suficiente para demonstrar a indefensabilidade da tese do reclamante para defender a tempestividade do recurso por ele interposto.

Na verdade, não obstante o aditamento dos nº 6 e 7 ao artº 314º do CPP, o que não era permitido continua a ser não permitido.

Ou seja, se, face ao regime de notificações instituído no nosso CPP antes das alterações introduzidas pela Lei nº 9/2013, o recurso ora interposto pelo arguido ora reclamante não seria admissível com fundamento na extemporaneidade, por ter sido ele julgado à revelia consentida e ter decorrido já o prazo legal para a interposição do recurso ordinário, que deveria ser contado a partir da notificação ao seu defensor, a mesma solução será dada ao recurso ora interposto pelo arguido face ao novo regime de notificações, alterado pela mesma lei, uma vez que, por razões que vimos supra, as alterações entretanto operadas não visam modificar nem pode modificar o regime de revelia consentida já consagrado no artº 315º/2 do CPP.

Alias, a nossa jurisprudência tem vindo a entender que nas situações de revelia consentida, o terminus a quo inicia-se no dia seguinte à notificação da sentença ao defensor e não a partir da notificação pessoal do arguido.

Compreende-se e justifica-se perfeitamente esse entendimento jurisprudencial.

Na verdade, o arguido, como sucedeu com o arguido ora reclamante, ao consentir ou requerer o julgamento nos termos prescritos no artº 315º/2 do CPP, já está no processo e constituído arguido e sujeita-se ao termo de identidade e residência.

Ora, por efeito da mera aplicação dessa medida de coacção, prevista no artº 181º do CPP, o arguido obriga-se a comparecer perante a autoridade competente ou a manter-se à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado, a não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de 5 dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado, e a indicar, para efeitos de notificação, a sua residência, local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.

O que significa que o arguido deve manter-se contactável e pode ter conhecimento do que se passa no processo, nomeadamente, os termos da eventual acusação ou da pronúncia, e se for caso disso, a data de realização de julgamento, assim como a decisão do julgamento de primeira instância.

Como se sabe, para além de notificar o seu defensor, o Ministério Público e os Tribunais notificam sempre o arguido por via postal a acusação e a pronúncia havendo-a, despacho que designa o julgamento e a decisão do julgamento, tal como sucedeu com o ora reclamante – cf. as fls. 8, 9 a 12v, 27, 29, 30 dos p. autos de reclamação.

E portanto o arguido está sempre em condições para procurar acompanhar de perto os termos do processo através do seu defensor, nomeadamente saber tempestivamente a decisão contra ele proferida no julgamento de 1ª instância à sua revelia.

Se não souber, é porque não quer saber, ou forneceu uma morada falsa ou não exacta, ou não a mantem actualizada.

De qualquer maneira, mesmo à preterição ou à limitação dos princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade, o nosso Código, quer antes quer depois da entrada em vigor da Lei nº 9/2013, a nossa lei assegura sempre ao arguido condenado à revelia consentida meios suficientes para impugnar por via de recurso ordinário a decisão condenatória contra ele proferida em 1ª instância.

In casu, qualquer que seja o motivo que levou o arguido, ora reclamante, a não recorrer dentro do prazo legal para a interposição contado a partir da notificação da decisão condenatória ao seu defensor, e tirando o justo impedimento, a decisão condenatório já há muito tempo transitou em julgado e insusceptível de recurso ordinário no momento em que foi pessoalmente notificado.

Sem mais delongas, é de concluir que bem andou a Exmª Juiz titular do processo, ao decidir como decidiu a inadmissibilidade do recurso interposto com fundamento na extemporaneidade.

Resta decidir.

III – Decisão

São bastantes as razões acima expostas, cremos nós, para que indefiramos, como indeferimos, a reclamação deduzida, confirmando na íntegra o despacho reclamado.

Custas pelo reclamante, com taxa de justiça fixada em 5 UC.

Cumpra o disposto no artº 597º/4 do CPC, ex vi do disposto o artº 4º do CPP.

R.A.E.M., 24JUN2016


O presidente do TSI

Lai Kin Hong





Recl. 2/2016-12