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Proc. nº 886/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 30 de Junho de 2016
Descritores:
-Autorização de residência
-Princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
-Reabilitação
-Ordem e segurança pública

SUMÁRIO:

I. Razoabilidade, justiça, proporcionalidade são limites internos à actuação discricionária, que apenas permitem uma sindicância do tribunal ao acto administrativo sindicado em casos de erro grosseiro, manifesto e intolerável.

II. Os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo.

III. A “ordem” e “segurança públicas” que o acto disse visar garantir não poderem ser sindicados na zona de incerteza e de prognose sobre comportamento futuro das pessoas visadas, salvo em caso de manifesto e ostensivo erro grosseiro, tosco e intolerável.














Proc. nº 886/2015

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, portador do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Hong Kong n.º C5XXXXX(1) emitido em 07 de Julho de 2004 pelas Autoridades da Hong Kong, residente em Hong Kong, em Flat XX, XX/F, XX Street, XX, Hong Kong,----
Recorre contenciosamente-----
Do despacho do Ex.mo Secretário para a Segurança, que lhe indeferiu o pedido de autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau.
Na petição inicial formulou as seguintes conclusões:
A) Em 5 de Fevereiro de 2015, o Recorrente apresentou um pedido de fixação de residência em Macau para que se reúna com a cônjuge B que é residente permanente de Macau, pedido esse que foi indeferido pelo Secretário para a Segurança por despacho de 7 de Agosto de 2015, alegando que “os crimes praticados pelo Requerente não são leves, constituindo uma potencial ameaça à segurança e ordem públicas da Região, considerando as normas contantes da alínea (1) do número 2 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 (antecedentes criminais), propõe-se indeferir o pedido de fixação de residência em apreço”;
B) Segundo o registo criminal apresentado pelo Recorrente, este cometeu em Hong Kong, em 1977-09-30, um crime de ofensas à integridade física (tendo sido condenado a pagar HKD500.00 de compensação, pagamento esse que ficou suspenso), e em 1978-04-28, um crime de furto - incluindo a violação da suspensão anteriormente decretada - tendo-lhe sido aplicada a medida de 感化 (probation) durante dois anos, com apresentação periódica ao 感化主任 (probation officer):
C) O disposto na alínea (1) do número 2 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, confere à administração o poder discricionário de deferir ou indeferir pedidos de fixação de residência com base na existência de antecedentes criminais;
D) Ou seja, a existência de antecedentes criminais só por si não constitui a Administração no dever (vinculado) de indeferir um pedido de residência, mas antes, obriga à Administração a avaliar se no caso concreto a existência de antecedentes criminais constitui ou não razão para o indeferimento do pedido, fundamentando sempre a decisão;
E) O que logicamente se conclui que existem situações em que a existência de antecedentes criminais não constitui razão de indeferimento de um pedido de fixação de residência;
F) Os delitos constantes do registo criminal do Recorrente foram cometidos em 1977 e 1978, respectivamente, ou seja há cerca de quatro décadas, quando o Recorrente era ainda menor de idade;
G) À luz dos princípios fundamentais de ressocialização do agente, de reabilitação do condenado e de reintegração do agente na sociedade, a Administração não devia fundamentar a decisão de indeferimento do pedido de fixação de residência com base na existência dos referidos antecedentes criminais;
H) Além disso, o crime de ofensas à integridade física foi praticado quando o Recorrente era menor de 17 anos e foi por causa de um colega que lhe agrediu no autocarro da escola;
I) Na sequência da prática desse crime, punido com pena de prisão até três anos, o Recorrente foi condenado ao pagamento HKD500.00, suspenso - o que mostra que o grau de gravidade, as consequências do crime e as exigências de ressocialização do agente eram bastante diminutas;
J) O crime de furto foi praticado também quando o Recorrente ainda era menor, e em causa era uma peça de roupa interior, de baixo valor económico;
K) A gravidade do crime era baixa (pois, foi a propósito de uma brincadeira, de mau gosto, admitamos), as consequências do crime e as exigências de ressocialização do agente também eram bastante diminutas;
L) O crime de furto é punido com pena de prisão até 10 anos e o Recorrente foi apenas obrigado a apresentar-se periodicamente ao “probation officer” durante dois anos, não tendo sido condenado ao pagamento de qualquer compensação, nem a nenhuma pena privativa da liberdade, atendendo à gravidade dos factos;
M) Tendo em conta estes elementos, ao alegar que os crimes “não eram leves” e que constituem “uma potencial ameaça à segurança e ordem públicas da Região”, a Administração violou claramente os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade no exercício dos poderes discricionários.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que doutamente por V. Exas. serão supridos, deve o presente recurso ser apreciado e em conformidade ser anulado o acto administrativo nos termos do artigo 124º do CPA, por violação da alínea (1) do número 2 do artigo 9.0 da Lei n.º 4/2003, com a subsequente reapreciação dos factos e decisão por parte do órgão competente.
*
Pugnou pela improcedência do recurso a entidade recorrida, tendo concluído a sua contestação nos seguintes termos:
«A noção de residência em Macau é muito semelhante a de cidadania, nacionalidade, dos Estados soberanos, e por isso a sua concessão é revestida de apertados critérios e imbuída de uma muito larga margem de discricionariedade.
No caso, a Entidade Recorrida, por delegação do Chefe do Executivo, decidiu indeferir o pedido de autorização de residência, depois de ponderados todos os interesses públicos subjacentes, incluindo os antecedentes criminais do Recorrente.
A sua decisão está legitimada, fundamentada, portanto, pelos factos aduzidos e pela base legal invocada, a saber, os n.ºs 1 e 2, alínea 1), do artigo 9.º, da lei n.º 4/2003.
No caso (para efeitos dos procedimentos administrativos instaurados ao abrigo da Lei n. º 4/2003), não é invocável a reabilitação.
E, obviamente, não pode o Recorrente pretender que a discricionariedade que a lei atribuiu ao Chefe do Executivo, nesta matéria, se converta em vinculação ao deferimento dos pedidos de autorização de residência sempre que os requerentes invoquem que existem antecedentes criminais mas que estes não são graves e já ocorreram há muito tempo.
Pelo que, tudo visto, conclui-se que, num caso como o ora em apreço, a Entidade Recorrida; no exercício de um poder discricionário, tinha duas hipóteses: ou concedia a autorização de residência ou negava-a.
Tendo optado por negá-la, fundando-se sobre os factos assentes e na sua percepção sobre o adequado balanço dos interesses em jogo, bem como nas competentes normas legais que lhe conferem esse poder, não pode ser imputado ao acto recorrido qualquer vício de violação de lei ou outro e, muito menos, qualquer erro manifesto
Termos em que,
e nos mais de Direito que esse Venerando Tribunal douta mente suprirá, por não existir qualquer vício que deva conduzir à anulação do acto recorrido, deve manter-se integralmente a decisão impugnada, negando-se provimento ao presente recurso,
Assim se fazendo JUSTIÇA.»
*
Houve lugar a alegações facultativas, nas quais as partes mantiverem no essencial as posições já anteriormente manifestadas nos autos.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
Objecto do presente recurso contencioso é o despacho de 24 de Julho de 2015, da autoria do Exm.º Secretário para a Segurança, através do qual foi denegado o pedido de autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau formulado por A, ora recorrente.
Fundou-se tal acto no normativo do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1), da Lei 4/2003, por via dos antecedentes criminais que o requerente possui em Hong Kong.
O recorrente acha que o acto padece dos vícios de violação de lei que lhe imputa na sua petição de recurso, nomeadamente por ofensa do artigo 9.º, n. º 2, alínea 1), da Lei 4/2003, e dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, no que é contraditado pela autoridade recorrida, cuja contestação assevera a legalidade do acto e pugna pela sequente improcedência do recurso.
Vejamos.
O recorrente insurge-se contra a relevância que o acto recorrido atribuiu ao seu registo criminal. Por um lado, argumenta que as condutas registadas constituem infracções pouco graves, que foram cometidas na sua juventude, há várias décadas. Para além disso, assevera que, à luz da lei de Macau, já ocorreu a reabilitação de direito, por força do artigo 24.º do DL 27/96/M.
Cremos que não tem razão.
Não se pode menorizar as infracções apenas porque o recorrente não foi sujeito a pena detentiva e as praticou na juventude. São infracções contra a integridade física e contra a propriedade, cuja prática representa um desvalor não despiciendo no nosso ordenamento jurídico-penal. A circunstância de terem ocorrido há um lapso de tempo considerável e de já não poderem as respectivas condenações ser atendidas para efeitos penais, quer em Macau, quer em Hong Kong, por força das respectivas estatuições sobre reabilitação, não impede, a nosso ver, que possam e devam ser valoradas em Macau, nos termos e para os efeitos previstos na Lei 4/2003. São diferentes os valores e os interesses prosseguidos do ponto de vista penal e na perspectiva administrativa aqui em causa, pontuando ali finalidades de ressocialização, justificativas da reabilitação, e sobrelevando aqui preocupações de segurança e ordem públicas que têm que ser ponderadas no procedimento de concessão de autorização de residência, conforme os tribunais de Macau vêm, aliás, entendendo.
Donde a conclusão de que a Administração não podia deixar de atender aos antecedentes criminais, pelo que não se detecta qualquer erro de interpretação da norma do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1), da Lei 4/2003, que assim não resulta violada.
O recorrente assaca ainda ao acto a violação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na apreciação do caso, deixando entrever que é descabido e desproporcionado valorar, como potencial ameaça à segurança e ordem públicas da Região Administrativa Especial de Macau, crimes pouco graves como aqueles que constam do seu registo criminal, sobretudo quando é sabido que foram cometidos quando era ainda menor, há 37 e 38 anos.
Também neste ponto não podemos concordar com o recorrente.
O princípio da proporcionalidade, que é um corolário do princípio da justiça, obriga a que as decisões administrativas que colidam com direitos e interesses legítimos dos particulares apenas possam afectar as posições destes na justa medida da necessidade reclamada pelos objectivos a prosseguir. E não se pode falar de desrazoabilidade quando a actuação administrativa é adequada à prossecução do interesse público que lhe cabe salvaguardar e desde que o sacrifício do interesse particular encontre justificação na importância do interesse público a salvaguardar.
Pois bem, estando em causa, como estava, a autorização de fixação de residência na Região Administrativa Especial de Macau, só duas hipóteses se colocavam: conceder a autorização ou denegá-la. O acto recorrido tomou em linha de conta a finalidade do pedido de residência e os antecedentes criminais do requerente, conforme resulta dos pareceres e informações que antecederam o despacho recorrido e que por este foram apropriados, tendo, perante os valores em presença, atribuído supremacia ao interesse público, o que se compreende e é aceitável pelo potencial de ameaça latente que, no juízo da Administração, os antecedentes criminais do recorrente, fundados em furto e agressão com produção de dano corporal, podem representar para a segurança e ordem pública da Região Administrativa Especial de Macau.
Esta primazia conferida ao interesse público é tanto mais aceitável quanto é certo que o acto é proferido no exercício de um poder discricionário, posto que enformado pela ponderação de certos aspectos a que a lei manda atender.
Neste contexto, aqueles princípios saem incólumes, nenhuma afronta lhes tendo sido feita pelo acto recorrido, que, como já se deixou antever, não padece de erro, muito menos ostensivo ou grosseiro, que caucione uma interferência do tribunal relativamente ao sentido do exercício daquele poder discricionário. Soçobra, assim, também a invocada ofensa dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Termos em que, na improcedência dos suscitados vícios, o nosso parecer vai no sentido do não provimento do recurso.
*
Cumpre decidir.
***
II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão bem representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ap conhecimento de mérito.
***
III – Os Factos
1 - Em 5 de Fevereiro de 2015, o ora Recorrente requereu a fixação de residência em Macau com o fim de se reunir à sua mulher B, residente permanente de Macau.
2 - O recorrente entregou todos os documentos necessários à instrução do pedido, nos termos do artigo 15.º do Regulamento Administrativo n.º 5/2003.
3 - Entre esses documentos, encontra-se o certificado de registo criminal emitido pelas autoridades de Hong Kong.
4 - Segundo esse certificado de registo criminal, o Recorrente cometeu os seguintes delitos em Hong Kong:
Data
Denominação do delito
Resultado
1977-09-30
襲擊致造成身體傷害
Assault occasioning actual bodily harm
簽保現金500元,守行為一年
Bound over $500 for 1 year
1978-04-28
A. 盜竊 Theft
B. 違反擔保書Breach of bond
接受感化2年On probation 2 years
罪名成立及予以釋放Convicted and Discharged
5 - O caso de ofensas à integridade física ocorreu em 30 de Setembro de 1977, no autocarro da escola, quando um colega do Recorrente começou a agredi-lo na sequência de uma desavença, na altura o Recorrente tinha acabado de completar 17 anos.
6 – Por esse crime, o Recorrente foi apenas condenado ao pagamento de 500.00HKD, pagamento esse que foi suspenso (medida designada pela legislação de Hong Kong como “簽保” ou “binding over”).
7 - O segundo ilícito ocorreu também quando o Recorrente ainda era menor, igualmente com 17 anos de idade, e consistiu num caso de furto de uma peça de roupa interior estendida na via pública do bairro onde o Recorrente residia, cometido pelo Recorrente, claramente, em brincadeira e por curiosidade, sem intenção de causar mal a ninguém.
8 - Na sequência desse furto, foi aplicada ao Recorrente uma medida designada por “感化” (“probation”), tendo-lhe sida imposta a apresentação periódica ao 感化主任 (“probation officer”), durante dois anos, para o acompanhamento da sua conduta.
9 - O Recorrente nunca foi condenado em nenhuma pena privativa da liberdade, ou em qualquer outra pena desde que atingiu a maioridade.
10 - Damos por reproduzido teor dos documentos nºs 3, 4, 5 e 6 juntos com a p.i.
11 - O Recorrente entrou e permaneceu várias vezes em Macau, sem nunca ter cometido nenhum crime.
12 - A chefe substituta dos Serviços de Migração, em 8/07/2015, lavrou a seguinte proposta:
“1. O requerente, do sexo masculino, casado, 54 anos, nascido em Hong Kong, portador do BIR Hong Kong permanente, requer agora concessão de autorização de fixação de residência em Macau, a fim de poder se reunir com o cônjuge portador do BIRM permanente.
2. Segundo o ofício n.º CNCC02865/15 emitido pelos Serviços Policiais de Hong Kong, está confirmado que o requerente tem os seguintes registos criminais em Hong Kong:
Data
Crime
Resultado
1977/09/30
Ofensa à integridade física por agressão
Com o depósito de HKD$ 500 em numerário, garantia de bom comportamento por um ano
1978/04/28
A. furto

-Liberdade condicional durante 2 anos para o melhoramento dos comportamentos

B. violação da garantia
-Declarado culpado e libertação
3. Nos termos do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 4/2003, ao conceder autorização de fixação de residência, é de tomar em conta sobretudo o factor de se o requerente tem “antecedente criminal”. De acordo com o supra número 2, está confirmado que o requerente tem realmente este factor. Portanto, é de indeferir o presente requerimento.
4. Após o processo de audiência escrita (Documento 17), o requerente apresentou alegações escritas e documentos relevantes (vd. em mais detalhes o ponto 3 do Relatório) a este Serviço.
5. Tendo em conta que os crimes cometidos pelo requerente não foram leves, constituindo ameaça latente à segurança e ordem pública do Território (vd. o ponto 4 do Relatório), nos termos do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) (antecedentes criminais) da Lei n.º 4/2003, sugere-se indeferir o presente requerimento de autorização de fixação de residência.
6. À apreciação e consideração do Sr. Comandante”.
13 – O Comandante da PSP emitiu o parecer de concordância com esta proposta.
14 – O Secretário para a Segurança, em 24/07/2015 proferiu o seguinte despacho:
“Indefiro nos termos e com os fundamentos do parecer constante desta informação”.
***
IV – O direito
1 – O acto administrativo em apreço recusou a autorização de residência com fundamento no facto de o recorrente ter cometido dois ilícitos criminais em Hong Kong (onde é residente), ilícitos que considerou “não leves”, o que constituiria ameaça latente à segurança e ordem públicas na RAEM, nos termos do art. 9º, n. 2, al. 1), da Lei nº 4/2003.
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2 – O recorrente discorda dessa decisão e aduz os seguintes argumentos:
Em primeiro lugar, os ilícitos ocorreram há cerca de quatro décadas numa altura da vida em que era ainda de menor idade (17 anos);
Foram ilícitos de escassa gravidade nos seus efeitos. Um deles, aconteceu em razão de uma altercação com um colega de escola; o outro, de furto, verificou-se na sequência de uma brincadeira, ao ter-se apropriado de uma peça interior, de pouco ou nenhum valor económico.
Em terceiro lugar, tendo em conta a data em que tiveram lugar, no ordenamento jurídico de Macau já se deve considerar automaticamente reabilitado de direito, ao abrigo do art. 24º do DL nº 27/96/M, de 3 de Junho.
Assim, o acto discricionário impugnado é violador do disposto na alínea 1) do nº2, do art. 9º, da Lei nº 4/2003.
Por outro lado, o acto em crise ofenderia o princípio da proporcionalidade e razoabilidade, alem de atentar contra a ressocialização e reinserção social.
Vejamos.
*
3 – Para além da pureza dos ilícitos que levaram o recorrente à condenação em Hong Kong, e para cujas sanções terão sido ponderadas a idade do delinquente, as circunstâncias em que foram cometidos e as consequências deles resultantes, não podemos deixar de concordar com o recorrente com o argumento primeiro que invoca, por se tratar de uma realidade objectiva e indesmentível.
E essa primeira realidade objectiva é esta: os ilícitos foram cometidos há quase 40 anos, numa altura em que era jovem (menor) o recorrente. Trata-se de uma fase da vida em que o indivíduo em desenvolvimento nem sempre ainda tem a consciência dos seus irreflectidos actos. Umas vezes é levado, por si mesmo ou arrastado por más influências a cometer excessos, extravagâncias, pecadilhos anti-sociais; outras, dedica-se ao ócio, em vez de entregar ao estudo ou à sua preparação para uma vida adulta responsável.
Mas, por outro lado, quantos não são os exemplos em que, subitamente, muitas vezes já adultos, emendam a mão, repensam a sua vida, retomam os estudos que tinham abandonado enquanto adolescentes rebeldes, e vêm a ser profissionais altamente considerados no seu meio laboral, apreciados pelo muito mérito que lhes reconhecem os seus pares?!
Isto quer dizer que o futuro da vida das pessoas não deveria ficar refém do seu passado longínquo. Razões ligadas à ressocialização e à inserção social do indivíduo devem estar presentes quando é preciso fazer o balanço do percurso de toda uma vida para certos efeitos. É, aliás, por isso também que se justificam, por exemplo, o instituto da prescrição reportado ao decurso do tempo, e o da reabilitação.
Repare-se, aliás, nisto: enquanto ao recorrente é recusada a residência na RAEM, a República Popular da China acolhe-o no seu seio como gerente geral de uma empresa “C Limited” (doc. nº 7, junto com a p.i.)
A segunda realidade é esta: as penas aplicadas ao recorrente foram leves. Isso talvez se deva ao facto de os reflexos dos ilícitos terem sido de pouca monta (pensamos, em particular, no valor económico da peça de roupa interior alegadamente furtada).
Sem prejuízo deste registo, não podemos contudo deixar de assinalar que nem sempre se pode acudir ao administrado quando se dirige ao tribunal em busca de tutela. É que o tribunal só pode conceder tutela jurídica, mas nada pode fazer quando o que é pedida é, no fundo, uma protecção no plano humanitário.
Voltaremos a este ponto mais adiante.
*
4 – Não releva – afirma-se desde já – a circunstância de o ordenamento jurídico da RAEM contemplar a reabilitação.
Com efeito, os efeitos da reabilitação circunscrevem-se ao espaço da jurisdição onde ela é decretada e tomando por conexão o mesmo espaço onde os ilícitos foram cometidos.
De resto, mesmo que estivesse efectivamente reabilitado em Hong Kong, nem por isso a solução tinha que ser outra, tal como os tribunais da RAEM têm afirmado..
Porque, como tem este TSI afirmado, “os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas, já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo” (Acs. TSI, de 19/11/2015, Proc. nº 827/2014; 14/04/2016, Proc. nº 607/2015).
E porque “Os nºs 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, quando referem que para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, confere verdadeiros poderes discricionários à Administração. (…) A reabilitação de direito não tem natureza vinculativa para a Administração na decisão quanto à autorização de residência, tomada ao abrigo do disposto no art. 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003, que permite a Administração indeferir o pedido de autorização de residência do interessado, tendo em consideração os seus antecedentes criminais” (Ac. TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014).
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5 – Considera, por fim, que o acto é violador do da alínea 1) do nº2, do art. 9º, da Lei nº 4/2003.
Ora bem. A alínea 1), do nº2, do art. 9º da Lei nº 4/2003, preceitua que “Para efeitos de concessão da autorização referida no número anterior deve atender-se, nomeadamente, aos…antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4º da presente lei”.
Sobre este ponto, cumpre-nos dizer que, claramente, a disposição legal invocada não foi desrespeitada, visto que a lei concede à entidade competente o poder de autorizar, ou não, a residência, face aos antecedentes criminais.
Ora, como é evidente e o próprio recorrente reconhece, ele cometeu dois ilícitos na sua vida (passada, embora). Portanto, o que a Administração fez, neste caso concreto, foi aplicar o poder discricionário que a lei lhe conferiu. Utilizou o seu poder, indeferindo a pretensão com base nos pressupostos de facto apurados (e verdadeiros).
Isto significa que não encontramos motivo para dizer que a norma em causa foi violada.
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6 – E a aplicação deste poder discricionário terá sido bem feita?
É aqui que o recorrente se bate por descobrir uma invalidade, por considerar o acto desproporcional e desrazoável.
“Desproporcional” e “desrazoável”, diz, por atentar contra o princípio da ressocialização e integração social, por levar em conta ilícitos que, além de não terem sido graves, foram cometidos há 40 anos (neste passo, voltamos ao ponto 3).
Porém, se tivermos presente o que foi dito no ponto 3 supra, não sobra ao tribunal espaço nenhum para uma intervenção de carácter humanitário ou de natureza sentimental, não só pelo que se disse, mas também pela razão invocada para a residência pretendida (reunião familiar com a esposa, residente em Macau). É que, tendo em conta a natureza do recurso contencioso - que, como se sabe, é de mera legalidade (cfr. art. 20º do CPAC) - sob pena de estarmos a fazer administração activa e atentar contra o princípio da separação de poderes, não nos é possível enveredar por qualquer apreciação sobre o chamado mérito da acção administrativa, que é dominada por critérios de oportunidade e conveniência, e que, por isso mesmo, fogem ao controlo jurisdicional, salvo em casos raros e excepcionais.
Com efeito, não nos podemos esquecer que estamos, como já atrás se disse, no domínio da actuação administrativa discricionária.
E a resposta a esta questão da desrazoabilidade e desproporcionalidade foi dada no Ac. deste TSI que temos vindo a citar (Ac. de 14/04/2016, Proc. nº 607/2015):
“A total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários que serve de fundamento ao recurso contencioso (art. 21º, al. d), do CPAC) é aquela que tem o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. Decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional.” (Ac. TSI, de 5/12/2013, Proc. nº 340/2013).
(…) Todavia, falar em desproporcionalidade, desrazoabilidade e injustiça, é falar em discricionariedade, constituindo aqueles limites a esta.
E sabemos que é discricionária aquela actuação em que a Administração actua em situações de autorização de residência (neste sentido, entre outros, Ac. do TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014; de 9/07/2014, Proc. nº 29/2014; do TSI citado de 19/11/2015, Proc. nº 827/2014).
E, sendo assim, entende-se que só em casos de erro grosseiro, manifesto e intolerável no exercício dos poderes discricionários o tribunal pode intervir”
Vale para o presente caso, aquilo que acabamos de transcrever. Ou seja, não vê este TSI razão para entender que a decisão administrativa tenha cometido algum erro grosseiro e manifesto.
Quanto ao longo período de tempo entretanto decorrido, valemo-nos do que o TUI teve oportunidade de fundamentar: «… Para a lei não é particularmente relevante o tempo decorrido desde a prática de crimes e as condenações. Na óptica do legislador, as condenações criminais anteriores, bem como os fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes susceptíveis de ser motivo de recusa da entrada dos não residentes na RAEM (art.º 4.º, n.º 2, al. d) da Lei n.º 4/2003), constituem sempre motivo de alarme para a ordem e segurança públicas da Região.
Em princípio, os interesses públicos de tranquilidade prevalecem sobre os interesses individuais de interessados de entrar e residir na Região.
Ou seja, os antecedentes criminais, seja qual for o período já decorrido depois da condenação, são sempre o factor a considerar na apreciação do pedido de autorização de residência.» (Ac. do TUI, de 13/12/2007, Proc. nº 36/2006).
E se a tudo isto acrescer que a «“ordem” e “segurança públicas” que o acto disse visar garantir não podem ser sindicados na zona de incerteza e de prognose sobre comportamento futuro das pessoas visadas, salvo em caso de manifesto e ostensivo erro grosseiro e tosco e, como também já se disse, intolerável» (Ac. TSI, de 19/11/2015, Proc. nº 827/2014), então fica reforçada a ideia de que estamos impedidos de fazer qualquer censura ao acto administrativo aqui sindicado.
***
V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 UC.
TSI, 30 de Junho de 2016
_________________________ _________________________
José Cândido de Pinho Joaquim Teixeira de Sousa
_________________________ (Fui presente)
Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong






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