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Processo n.º 21/2016
Recurso Civil
Recorrente: Melco Crown (Macau), S.A.
Recorrida: A
Data da conferência: 22 de Julho de 2016
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Dação em função do cumprimento
- Transmissão da propriedade dos bens
- Fichas de jogo

SUMÁRIO
1. Tratando-se das figuras diferentes, a dação em cumprimento (datio in solutum) distingue-se da dação em função do cumprimento (datio pro solvendo), na medida em que, no primeiro caso, o devedor pretende, com a prestação diversa da devida, extinguir imediatamente a obrigação, ao passo que, no segundo, pretende apenas facilitar o cumprimento, fornecendo ao credor os meios necessários para este obter a satisfação futura do seu crédito.
2. As fichas de jogo não podem ser objecto de direito de propriedade, já que constituem apenas um direito de crédito.

A Relatora,
Song Man Lei
  ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:


1. Relatório
A, melhor identificada nos autos, deduziu no Tribunal Judicial de Base embargos de terceiro contra Melco Crown (Macau), S.A. e B, pedindo que fosse ordenado o levantamento do arresto decretado sobre os bens (fichas de jogo e montante em dinheiro), nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 292.º e 351.º do Código de Processo Civil.
Por sentença proferida em 27 de Fevereiro de 2015, o Tribunal Judicial de Base julgou improcedentes os embargos deduzidos e, em consequência, absolveu os embargados do pedido.
Inconformada com a decisão, recorreu a embargante A para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e julgando procedentes os embargos. Em consequência, determinou o levantamento do arresto sobre as fichas de jogo e o montante em dinheiro em crise.
Deste Acórdão vem agora a embargada Melco Crown (Macau), S.A. recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão de 12.11.2015 proferido pelo Venerando TSI que revogou a Douta Sentença do TJB, julgou procedentes os embargos de terceiro e, em consequência, determinou o levantamento do arresto das fichas de jogo e dos montantes em numerário decretado a favor da Embargada, ali Recorrida, ora Recorrente.
2. O Acórdão ora recorrido é uma decisão ilegal, injusta e – salvo o devido respeito – de uma simplicidade desoladora face à complexidades jurídica das questões debatidas.
3. Dá-se por integralmente reproduzida toda a matéria de facto dada como provada, nomeadamente o “Ponto II – Factos” do Acórdão.
4. Em suma, foi decretado nos autos de Arresto o arresto de fichas de jogo no montante total de HKD 11.000.000,00 e do montante HKD 130.000,00 em numerário, a favor da Embargada, ali Recorrida, ora Recorrente.
5. A Embargante A deduziu embargos de terceiro com o fundamento de ser a proprietária dos bens arrestados com base no Acordo celebrado com o Embargado B, por força do art. 402.º do Código Civil.
6. Ficou provada a celebração do Acordo, e foram dadas como integralmente reproduzidas todas as cláusulas contratuais.
7. Ficou também provado que a dívida do Embargado B perante a Embargante A era no montante de AUD 10.059.764,67.
8. Isto é, montante em dólares australianos.
9. E ficou ainda provado que, na data da celebração do Acordo, o Embargado B outorgou uma procuração a favor da Embargante A.
10. Dito isto, importa salientar que as fichas de jogo e os montantes em numerário encontravam-se apreendidos no âmbito do Procedimento Criminal.
11. Pelo que, esses bens não se encontravam na disponibilidade do Embargado B.
12. O TJB salientou que as partes acordaram numa prestação de natureza diferente e que nunca houve entrega efectiva dos bens objecto do Acordo.
13. Pelo que, considerou o Acordo como uma dação em função do cumprimento (i.e. datio pro solvendo).
14. Tendo rejeitado a tese da transmissão da propriedade dos bens apreendidos para a Embargante A por força do art. 402.º do Código Civil, e assim julgado improcedentes os Embargos de Terceiro.
15. A Embargante A interpôs recurso da Douta Sentença.
16. O Venerando TSI manteve inalterável a matéria de facto.
17. Acontece que, o Venerando TSI, apesar do clausulado do Acordo e de frisar que, à data do Acordo, os bens em causa não estavam na disponibilidade do Embargado B e nunca terem sido entregues à Embargante A, considerou que os mesmos foram transmitidos para a Embargante A, por força do art. 402.º do Código Civil.
18. Tendo, por isso, determinado o levantamento do arresto sobre as fichas de jogo e dos montantes em dinheiro que havia sido decretado a favor da Embargada, ali Recorrida, ora Recorrente, no âmbito dos autos de Arresto.
19. Ou seja, a conclusão jurídica do Venerando TSI foi precisamente contrária à do TJB.
20. Dito isto, todas as questões sucintamente levantadas supra versam sobre matéria compreendida nos poderes cognitivos deste Alto Tribunal no âmbito do presente recurso.
21. Com efeito, não está em causa a mera fixação do sentido que as partes do Acordo quiseram dar à exteriorização da sua vontade, as declarações que fizeram ou as circunstâncias e os motivos pelos quais as fizeram, mas antes o sentido juridicamente relevante de tal actuação, atendendo ao regime legal aplicável à interpretação dos negócios jurídicos e às regras de transmissão dos bens ou dos direitos em causa.
22. Ora, salvo o devido respeito, não só o Acórdão ora recorrido é nulo, como também nunca poderá colher aceitação a interpretação da lei feita pelo Venerando TSI.
23. É desde logo nulo porquanto a decisão do Venerando TSI está em plena contradição com os fundamentos dela constantes.
24. Nomeadamente, na medida em que o Acórdão ora recorrido refere todas as características de uma dação em função do cumprimento (i.e. datio pro solvendo), mas acaba por concluir pela transmissão do direito de propriedade com eficácia real, fazendo apelo ao art. 402.º do Código Civil.
25. Ou seja, o Acórdão ora recorrido é nulo nos termos do art. 571.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, devendo pois este Alto Tribunal declarar a sua nulidade e modificar o sentido da decisão.
26. Passando assim a valer a interpretação feita pelo TJB na Douta Sentença.
27. Mesmo que assim não se entenda – o que não se aceita, mas apenas se concede por mero dever de patrocínio –, a verdade é que o Venerando TSI fez uma errada interpretação da lei, à luz da matéria de facto dada como provada.
28. Conforme referido supra, a dívida do Embargado B era no montante total de AUD 10.059.764,64.
29. Tendo as partes acordado numa prestação diferente da devida, nomeadamente na entrega de fichas de jogo e de montantes em HKD.
30. Por outro lado, os bens em causa nunca foram entregues à Embargante A.
31. Nem na data da celebração do Acordo, nem sequer após a sentença no âmbito do Procedimento Criminal ter transitado em julgado e o negócio objecto do Acordo se ter tornado certo e determinado, a título definitivo.
32. Acresce que, para além de não ter havido entrega efectiva, não foi dada quitação e não houve lugar à redução do montante em dívida.
33. Ou seja, a obrigação do Embargado B não se extinguiu com a celebração do Acordo.
34. Antes se visou simplesmente que a Embargante A obtivesse mais facilmente a cobrança (parcial) do seu crédito.
35. É que efectivamente era necessário que, por acto posterior, as fichas de jogo e os montantes em numerário fossem entregues à Embargante A, e esta posteriormente trocasse as fichas por dinheiro e procedesse à conversão dos montantes em numerário de HKD para AUD.
36. Portanto, a extinção do crédito só ocorreria após a realização efectiva do valor que a Embargante A recebesse a final.
37. É isso que resulta de forma muito clara do Acordo, nomeadamente das Cláusulas 1.1.(i), 1.1.(ii) e 1.7..
38. De resto, as partes utilizaram na Cláusula 1.1. do Acordo precisamente a mesma formulação constante da lei, nomeadamente do art. 831.º, n.º 1, do Código Civil, i.e. “obtenha mais facilmente".
39. Pelo que, bem andou o TJB ao configurar o Acordo com uma dação em função do cumprimento (i.e. datio pro solvendo).
40. A este respeito, veja-se a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal em relação ao art. 840.º do Código Civil de Portugal, cuja redacção é igual à do art. 831.º do Código Civil de Macau, i.e. Acórdão de 11.06.2003 e Acórdão de 17.03.2005.
41. Assim como os apontamentos de Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 14.º Edição Actualizada, 2004, relativamente ao mesmo art. 840.º do Código Civil de Portugal.
42. A jurisprudência e a doutrina são, pois, unânimes em considerar o presente caso como uma dação em função do cumprimento (i.e. datio pro solvendo).
43. Dito isto, há ainda a salientar o facto de o Embargado B ter outourgado uma procuração através da qual conferiu poderes à Embargante A para que pudesse, em seu nome e representação, exercer os direitos incorporados nas fichas de jogo e nos montantes em numerário, e assim pudesse proceder ao pagamento (parcial) da dívida.
44. Mais ainda, e num exercício meramente teórico, caso os bens arrestados fossem extraviados, destruídos ou desaparecessem, a verdade é que, nos termos do Acordo, nunca a Embargante A permitiria que a dívida do Embargado B fosse reduzida.
45. Ou seja, a dívida manter-se-ia no montante total de AUD 10.059.764,67.
46. Face ao exposto, mal esteve o Venerando TSI ao não efectuar a uma análise jurídica dos efeitos do Acordo atendendo ao complexo regulativo aplicável, como um todo.
47. Na medida em que, todos os elementos do Acordo apontam claramente para a dação em função do cumprimento (i.e. datio pro solvendo).
48. De resto, a Embargada, ali Recorrida, ora Recorrente, solicitou um parecer jurídico ao Prof. Augusto Teixeira Garcia que, após uma análise cuidada, conclui pelo mesmo entendimento preconizado na Douta Sentença do TJB.
49. Em concreto, o Prof. Augusto Teixeira Garcia considera o Acordo em causa como uma dação em função do cumprimento (i.e. datio pro solvendo).
50. Pelo que, está assim comprovado que o Venerando TSI fez uma errada interpretação da lei in casu.
51. Sem prejuízo, importa salientar que a natureza das fichas de jogo não é compatível com a eficácial real do Acordo.
52. Porquanto, o Acordo apenas investiu a Embargada A num poder de agir em vista da realização do valor das fichas de jogo com natureza semelhante ao mandato.
53. As fichas, enquanto artefacto de plástico, até poderiam ser susceptíveis de direitos reais, mas não foi isso que as partes quiseram transferir através do Acordo.
54. Com efeito, as fichas de jogo enquanto objecto não têm utilitas rei.
55. Na verdade, a sua utilidade é de habilitarem o portador a apostar com elas ou obter o seu contravalor, e apenas contra a entidade emitente que colocou as fichas de jogo em circulação.
56. É nessa medida que incorporam um direito de crédito e foi isso que o Embargado B podia e pretendeu ceder.
57. Isto é, independentemente daquilo que as partes pretenderam e fizeram constar do Acordo, a verdade é que, no máximo, estaríamos perante uma transmissão da titularidade de fichas de jogo que consubstanciam um direito de crédito.
58. Pelo que, não é aplicável o art. 402.º do Código Civil, pois o que está em causa é a transmissão de uma posição jurídica creditícia.
59. Por outro lado, importa referir que a entidade emissora das fichas de jogo nunca chegou a ser notificada da pretensa cessão objecto do Acordo.
60. E além de não ter sido notificada, não aceitou (nem aceitará) essa pretensa cessão para a Embargante A.
61. Sendo que, também o Tribunal à ordem do qual estavam, e estão, apreendidos os bens não foi notificado.
62. Isto é, não se verifica tão-pouco estar preenchido o requisito legal constante do art. 577.º, n.º 1, do Código Civil.
63. Consequentemente, a pretensa cessão nunca chegou a produzir efeitos.
64. Por último, importa salientar que não está em causa a mera transferência de fichas enquanto peças circulares de plástico, mas sim fichas de jogo que, como tal, transportam em si um elevado valor económico e que consubstanciam per si um título de crédito ao portador.
65. No fundo, um título de crédito em sentido impróprio ou imperfeito, na medida em que tem âmbito restrito face aos limites de circulação impostos pela entidade emitente.
66. Pelo que, não basta o acordo entre cedente e cessionário.
67. Para que a cedência do título de crédito se torne eficaz é requisito quoad constitutionem a entrega efectiva.
68. O que até hoje nunca se verificou!
69. Deste modo, no momento do Arresto, por nunca terem sido transmitidos para a Embargante A, as fichas de jogo e os montantes em numerário pertenciam efectivamente ao Embargado B.
70. Em face de tudo o que acima ficou demonstrado, dúvidas não restam que o Venerando TSI errou na sua análise jurídica.
71. Nestes termos, deve este Alto Tribunal julgar procedente o presente recurso, revogando o Acórdão ora recorrido e fixando o regime jurídico aplicável ao caso.
72. Consequentemente, deverá ser determinado que prevalece a decisão proferida pelo TJB.

Contra-alegou a embargante A, formulando as seguintes conclusões:
I. Começa por defender a Recorrente que o acórdão recorrido padece do vício de nulidade previsto no artigo 571º, nº. 1, alínea c), do CPC, por alegadamente existir oposição entre os seus fundamentos e a decisão final proferida.
II. A Recorrente defende tal vício com base em expressões do Acordo e da decisão recorrida isoladas e retiradas do contexto de forma a dar uma aparência de contradição, conforme se demonstra em sede de alegações supra.
III. Por outro lado, a alegada contradição da sentença, parece resultar do facto – que é constante em toda a argumentação da mesma – de a Recorrente não conseguir perceber (ou assim fingir) que não existe incompatibilidade entre uma datio pro solvendo – que identifica no Acordo – e a transferência do direito de propriedade sobre o bem que constitui a prestação diversa da acordada (por que é exactamente isso que se pretende – dar um bem em vez de outro), ainda que, como refere o douto parecer junto, as partes não visem apenas uma mera transferência de propriedade mas também uma intenção de liquidar uma obrigação.
IV. Foi precisamente essa a conclusão jurídica evidente e inquestionável a que chegou o Tribunal a quo no acórdão recorrido, apoiado na matéria de facto provada nos autos, em especial do teor do Acordo aqui em análise.
V. E essa conclusão é evidente e lógica quando, em face do teor desse Acordo, o Venerando Tribunal a quo afirmou, claramente, que “(…) uma coisa é a transmissão da propriedade em si, outra é a contraprestação em consequência da transmissão da propriedade.” (realçado e sublinhado nossos) (cfr. acórdão recorrido, pag.28).
VI. A Recorrente continua a confundir a eficácia translativa imediata dos direitos reais do Acordo, com os efeitos obrigacionais do mesmo, que advêm de uma relação de dívida/crédito entre o Sr. B e a aqui Recorrida e que é pré-existente à celebração do Acordo.
VII. E é, precisamente, em consequência desse erro de análise jurídica, que a Recorrente continua a insistir, que a leva a concluir pela falta de lógica na decisão recorrida, o que manifestamente não sucede.
VIII. Com efeito, se o Tribunal a quo considerou que o Sr. B tinha, antes da celebração do Acordo, o direito de propriedade sobre os bens aqui em crise e que do Acordo resulta, de forma clara e inequívoca, que a vontade real das partes nele expressa foi a de transferir imediatamente, com a sua celebração, a propriedade desses bens do Sr. B para a aqui Recorrida; como é evidente, a outra conclusão lógica não poderia o Tribunal a quo ter chegado, face á lei aplicável, que não fosse a de que em 14/01/2013, data em que foi decretado o arresto movido pela Recorrente e ao qual os presentes Embargos estão apensos, os bens aqui em discussão já não pertenciam (há muito tempo) ao Sr. B, mas à Recorrida que os tinha adquirido imediatamente em resultado do Acordo.
IX. Para complementar, o Tribunal a quo sustenta que o facto de o Acordo em crise prever que o montante da dívida do Sr. B à Recorrida apenas seria reduzido na exacta medida dos montantes por esta efectivamente recebidos não obsta a que os efeitos reais desse contrato se tenham verificado imediatamente, atento o princípio da consensualidade e eficácia real dos contratos, pois uma coisa é a transmissão da propriedade em si, outra é a contraprestação, em consequência da transmissão da propriedade.
X. Ainda em abono da sua tese e em coerência com o decidido, sustenta o Tribunal que à data do Acordo os bens aqui em crise não estavam “ainda” na livre disponibilidade do Sr. B (pois a sentença que ordenou a sua restituição apenas transitou em julgado em 10/09/2012) pelo que seria natural á Embargante, aqui Recorrida, exigir que o efeito liberatório da dívida só se operasse em momento posterior, na exacta medida dos montantes efectivamente recebidos.
XI. É, pois, inquestionável que dos fundamentos claramente expressos (tão claros que a Recorrente fica desolada por ter sido tão facilmente desmontada a sua tese) só poderia resultar uma conclusão lógica, i.e., na procedência dos embargos movidos pela Recorrida e o consequente levantamento do arresto sobre esses bens de que esta é plena proprietária.
XII. Assim, pelo supra exposto e atento o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 571º do CPC, deverá o vício de nulidade do acórdão recorrido invocado pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente.
XIII. É absolutamente claro e inequívoco, com base nos factos provados (e nunca impugnados pela Recorrente) e na lei aplicável, que a propriedade dos bens aqui em causa (Fichas de Casino e Dinheiro) transferiu-se imediatamente do Sr. B para a ora Recorrida, por mero efeito do Acordo aqui em crise.
XIV. São absolutamente irrelevantes, para terceiros, as motivações ou finalidades por detrás da transferência de propriedade dos bens aqui em causa do Sr. B para a Recorrida, nem tais motivações (quaisquer que sejam) poderiam alguma vez impedir ou pôr em causa a consensualidade e eficácia real imediata do Acordo que foi celebrado.
XV. Conforme se dá conta, e bem, no acórdão recorrido – como, na verdade, até o próprio Tribunal Judicial de Base disso já tinha feito – resulta claramente do artigo 402º, nº 1º, do CC, que os direitos reais constituem-se e transferem-se com a mera celebração ou perfeição do acordo, independentemente da tradição da coisa objecto desse contrato, salvo, naturalmente, as excepções previstas na lei, conforme resulta da última parte da mesma norma.
XVI. Só assim não sucede nos casos expressamente previstos no nº 2 do mesmo artigo 402º ou no caso de as partes estabelecerem cláusulas de reserva de propriedade (vd. artigo 403º do CC) – onde o efeito translativo imediato da propriedade só se verifica em momento posterior, que pode ser certo ou incerto.
XVII. Em parte alguma do Acordo resulta, expressa ou tacitamente, que as partes pretenderam suspender a transferência da propriedade das Fichas de Jogo e Dinheiro do Sr. B para a aqui Recorrida, até a verificação de um qualquer efeito futuro, pelo que, evidentemente, os direitos reais sobre esses bens se transferiram imediatamente, com a sua celebração.
XVIII. Quanto muito, ao contrário do sugere a Recorrente, o que resulta do Acordo é que o mesmo ficaria sem efeito caso a decisão do TSI no processo-crime não viesse a confirmar a sentença do Tribunal de Primeira Instância que havia ordenado a restituição dos bens aqui em crise ao Sr. B, funcionado essa decisão da TSI de não confirmação como se de uma condição resolutiva se tratasse.
XIX. Não faz também qualquer sentido a tese de que os bens objecto do Acordo não eram certos e determinados pelo que não seria o artigo 402º do CC, desde logo, por que os bens em crise (Fichas de Casino e Dinheiro) estavam perfeitamente determinados e individualizados, permitindo a qualquer pessoa saber de que bens se tratavam.
XX. Dos factos provados nos autos, resulta que não há, nem nunca houve, qualquer divergência entre as partes quanto à interpretação do Acordo, estando ambas cientes de que o mesmo visou transmitir, e·transmitiu, a propriedade ou “titularidade” das Fichas de Casino e do Dinheiro.
XXI. Da clareza da sua redacção, desde logo, nos seus considerandos (A) e (D) e nas cláusulas 1.1, 1.2, 1.7 e 1.8 do Acordo, resulta evidente o sentido e a vontade aí expressos pelas partes quanto à eficácia translativa imediata da propriedade dos bens.
XXII. As partes no Acordo disseram exactamente aquilo que queriam dizer, com os efeitos jurídicos daí resultantes, pelo que, nos termos dos artigos 228º a 230º do CC relativo às regras de interpretação dos negócios jurídicos, essas declarações valem, não havendo divergência quanto à expressão dessas vontades, com o sentido que nelas está expresso.
XXIII. Assim, em face do exposto, de nada vale, como se faz a Recorrente, pretender que a leitura das cláusulas 1.1 e 1.7 do Acordo ou até a outorga da procuração irrevogável nele prevista demostram a intenção de apenas facilitar a entrega dos bens à Recorrente mas não da transmissão da sua propriedade.
XXIV. Já no que respeita à outorga da procuração, também só por má fé, dada a clareza do Acordo quando se refere à mesma (vide os considerandos do Acordo especialmente o ponto 5), se pode ver nela um indício de que a intenção das partes não foi o de transmitir os bens em causa.
XXV. Como é evidente, a procuração foi outorgada como um meio adicional de atingir o fim visado no Acordo, isto é, possibilitar que a Recorrida pudesse receber directamente os bens em causa do Tribunal, sem ter de justificar com o Acordo.
XXVI. Assim, é óbvio que a procuração outorgada em nada colide ou altera aos efeitos desse Acordo, designadamente, quanto a transmissão imediata da propriedade dos bens. Antes pelo contrário.
XXVII. Destarte, novamente se reafirma que ao transformar expressões do Acordo que visavam proteger a Recorrida em expressões que apenas a prejudicam, dando-lhes um sentido que nenhuma das partes invocou e que não têm um mínimo de correspondência no texto do Acordo, ou ao considerar a procuração outorgada como um indício de que não foi intenção das partes transmitir os bens em causa nos autos, quando do Acordo resulta precisamente o contrário, a Recorrente ou está de má fé, ou comete um flagrante erro de análise jurídica que jamais pode colher, como não colheu no acórdão ora recorrido.
XXVIII. Como a Recorrida já deu conta várias vezes nesta acção, aceita-se que o Acordo aqui em crise possa ser configurado como uma dação pro solvendo, na medida em que a transmissão das Fichas de Casino e do Dinheiro se destinava a saldar parcialmente a dívida em dinheiro reconhecida no Acordo, e na medida em que esses bens fossem efectivamente recebidos e trocados por dinheiro.
XXIX. Do artigo 831º, nº 1, do CC resulta que “Se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida respectiva.”
XXX. Pelo que a entrega de um (ou mais) bem(ns) diferente(s) da prestação devida, pelo devedor ao credor, para que este obtenha mais facilmente, pela realização do valor. desse(s) bem(ns), a satisfação do seu crédito, e na medida respectiva, só sucede por via de um acordo de transmissão ou acto translativo imediato da propriedade (e, portanto, dos direitos reais) desse bem (ou bens) do devedor para o credor, como sucedeu, in casu, com o Acordo aqui em evidência.
XXXI. Ou, pelo menos, nada na lei impede que essa transmissão dos bens dados pro solvendo se opere por efeito uma transmissão onerosa do devedor para o credor, como sucedeu nos termos do Acordo aqui em crise.
XXXII. Só assim se compreende que, posteriormente, o credor passe a poder dispor livremente desse bem que lhe foi entregue pro solvendo, vendendo-o (normalmente) a terceiro por determinado valor, e, com o produto dessa venda e na medida desse valor, se extinguir, total ou parcialmente, a dívida do devedor.
XXXIII. Assim, a entrega de bens pro solvendo do devedor para o credor configura um acordo de transmissão onerosa de onde resultam, por um lado, imediatamente, efeitos reais, por mero efeito desse acordo (transmissão imediata da propriedade desses bens do devedor para o credor) e, por outro lado, efeitos obrigacionais (direitos de crédito) entre as partes, os quais não são evidentemente contraditórios.
XXXIV. Não está em causa, portanto, a propriedade dos bens (direitos reais), que, por reflexo do princípio da consensualidade e da causalidade, transferem-se imediatamente para o adquirente (credor) por mero efeito esse contrato, mas apenas, o cumprimento das obrigações (direitos de crédito) que nascem desse acordo.
XXXV. Foi esta a conclusão é evidente e lógica do Tribunal a quo, quando na fundamentação da decisão recorrida afirmou que “(...) uma coisa é a transmissão da propriedade em si, outra é a contraprestação em consequência da transmissão da propriedade.” (realçado e sublinhado nossos) (cfr. acórdão recorrido, pag. 28), nada havendo a censurar quanto a esta afirmação.
XXXVI. O disposto no artigo 831º do CC destina-se a proteger o credor na medida em que do mesmo resulta que a extinção da dívida em contrapartida da transmissão do bem apenas se verifica na medida em que o credor obtenha, com a transmissão futura do bem, a satisfação do seu crédito.
XXXVII. Ora, a Recorrente insiste em transformar essa norma, que visa proteger o credor, numa norma a seu desfavor, privando-o do direito de propriedade sobre a coisa dada pro solvendo, e, assim, do carácter absoluto inerente a esse direito, que o protege contra a agressão de terceiros, como aconteceu no presente caso, o que, com o devido respeito, não faz qualquer sentido.
XXXVIII. Assim, é manifestamente irrelevante, para a tese defendida pela Recorrente sobre a transmissão da propriedade, que o Acordo refira expressamente que a transmissão dos bens aí acordada vise uma finalidade.
XXXIX. Como é lógico, a finalidade da transmissão apenas releva para efeitos obrigacionais entre as partes – extinção total ou parcial da dívida – e não põe em causa o direito de propriedade adquirido, que é um direito absoluto e que, no nosso sistema, não conhece qualquer limitação, a não ser nos casos previstos na lei, como resulta claramente do princípio do numerus clausus, consagrado no artigo 1230º do CC.
XL. No caso em discussão nestes autos, nunca se contestou que houve uma transmissão com vista a uma finalidade.
XLI. No entanto, essa finalidade não põe, nem nunca poderia por em causa o direito de propriedade que a Recorrida adquiriu com o Acordo, com todas as características inerentes a esse direito – absoluto e ilimitado nos termos dos artigos 1229º e 1230º do CC – que o protegem contra agressões de terceiro e do próprio transmitente.
XLII. O direito que o transmitente tem, em virtude das finalidades estatuídas no Acordo, é de invocar as relações obrigacionais que daí resultam, designadamente a extinção da dívida na medida da sua extinção, podendo, inclusivamente, indagar sobre a forma como foi feita a venda das fichas e que preço ou utilidade económica se obteve com essa venda.
XLIII. Foi igualmente este o sentido que o Venerando Tribunal a quo fez questão de afirmar no acórdão recorrido quando deu conta que “Contudo, esta condição contratual não afecta a transmissão da propriedade dos bens em referência mediante o acordo, tendo em conta o disposto no no. 1 do art.º 402 do CC (...)” (realçado e sublinhado nossos) (cfr. acórdão recorrido, pag. 28).
XLIV. Nenhuma da abundante jurisprudência citada pela Recorrente nas suas alegações, como não podia deixar de ser, sustenta a posição que defende. Essa jurisprudência é inatacável mas é inócua para a questão que ora se discute, como de resto é o parecer junto aos autos, no que respeita à resposta às questões específicas que foram formuladas ao Ilustre Professor.
XLV. O que dessa jurisprudência resulta é que na dação pro solvendo continua a existir uma relação entre o devedor e o credor, o que confere àquele o direito de fiscalizar a forma como o credor utilizou a coisa dada pro solvendo na satisfação do seu crédito, aplicando-se as regras do mandato, sem nunca colocar em causa a efectiva transmissão do bem do devedor para o credor.
XLVI. De resto, é curioso que parece resultar dos argumentos da Recorrente, e, estranhamente, também do parecer junto, que haveria uma significativa diferença no que respeita ao efeito translativo do direito de propriedade dos bens em causa caso se tratasse de uma dação em pagamento (datio pro soluto) em vez de uma dação em função do pagamento (datio pro solvendo).
XLVII. Ora, salvo o devido respeito, não parece que haja uma significativa diferença entre uma situação e outra no que respeita ao efeito translativo. Com efeitos, em ambos há uma entrega (“datio”) de uma coisa diversa, e, por isso, em ambos há a transferência da coisa do devedor para o credor. Assim, no que respeita ao efeito translativo do bem entregue ambos os institutos não têm qualquer diferença.
XLVIII. A diferença fundamental entre a datio in soluto e datio pro soluto existe apenas no que toca ao efeito da “datio” na extinção ou não da obrigação, isto, é, na exoneração ou não do devedor.
XLIX. Assim, na datio pro soluto a datio produz o efeito de exonerar o devedor, e, portanto, extingue a relação entre o devedor e credor, enquanto na datio pro solvendo não existe esse efeito pois o mesmo só se vai produzir se e na medida em que, através da coisa dada, o credor realizar o seu crédito. E, exactamente devido ao facto de a dívida se extinguir se e na medida em que o credor, com a coisa, satisfazer o seu crédito, é que o devedor tem o direito de averiguar o modo como o credor dispôs da coisa para satisfazer o seu crédito, isto é se actuou de boa fé e observando as diligências exigíveis de acordo com o caso concreto, aplicando-se, por isso, as regras do mandato.
L. É este o entendimento da doutrina, designadamente de Antunes Varela e Pires de Lima, conforme se dá conta e se cita em sede de resposta às alegações, supra.
LI. Ou seja, a diferença entre uma dação pro solvendo e uma dação pro soluto coloca-se apenas e tão só a nível das relações entre o devedor e o credor, de saber se a dívida se extingue ou não com a cedência do bem, e não a nível da cedência em si, mormente em relação aos efeitos dessa cedência perante terceiros, como é o caso da Recorrente.
LII. De resto, a tese defendida pela Recorrente, de que na dação em função do pagamento não há uma transferência para o credor do bem objecto dessa dação, levaria ao absurdo de a venda desse bem efectuada pelo credor poder ser considerada nula por venda de bem alheio, ou, no caso do nº 2, do artigo 831º, de o terceiro devedor poder recusar o pagamento ao credor a quem o crédito foi cedido, alegando apenas que o crédito não lhe pertence, uma vez que o mesmo lhe foi cedido apenas em função do pagamento. Trata-se de um perfeito non sense.
LIII. A jurisprudência que se pronuncia especificamente sobre a questão em análise (pouca devido a linearidade da mesma) é extremamente clara e elucidativa no sentido supra defendido, como demonstram as citações jurisprudenciais feitas na resposta às alegações supra.
LIV. Pelo que, e em sintonia com a jurisprudência e doutrina que supra se deu conta, só se poderá concluir que a datio pro solvendo configurada como existente no Acordo nunca teria a virtualidade de impor qualquer restrição ao princípio da consensualidade e eficácia real dos contratos pretendida pelas partes, designadamente, impondo a efectiva tradição dos bens à Recorrente para que o efeito real previsto nesse Acordo se viesse a produzir, nem colocar em causa a aquisição efectiva do direito de propriedade com todas as suas características, designadamente o seu carácter absoluto e ilimitado, protegendo a Recorrida contra a agressão de terceiros.
LV. Nas suas alegações a Recorrente regressa à tese de que a natureza dos bens objecto do Acordo aqui sob análise (ao que parece apenas no que respeita às Fichas de Casino), não é susceptível de sobre ele incidiram direitos reais nos termos do artigo 402º do CC, mas apenas direitos de crédito, e desse modo,
LVI. Ora, em primeiro lugar, diga-se que esta questão sobre o direito que o Sr. B tinha sobre os bens aqui em crise já foi definitivamente resolvida e decidida na sentença que foi proferida pelo Tribunal Judicial de Base, pelo que não pode a Recorrente vir discutir novamente esta questão neste recurso para o Venerando Tribunal de Última Instância.
LVII. De resto, o Venerando Tribunal a quo nem sequer sentiu necessidade de sobre esta específica questão se pronunciar no acórdão recorrido, assumindo, como não poderia deixar de ser, que Sr. B transferiu a propriedade – e portanto direitos reais – que tinha sobre os bens à aqui Recorrida, seja porque tal resulta evidente da lei aplicável dos factos provados – a decisão penal de restituição – seja por que tal questão não foi posta em crise pela aqui Recorrente nas suas alegações de resposta pelos meios processuais de que tinha na altura ao seu dispor.
LVIII. Pelo que, sempre seria forçoso concluir-se que os bens objecto do acordo eram certos e determinados e passíveis de a sua propriedade – direitos reais – ser transferida, imediatamente e por mero efeito do Acordo celebrado, nos termos do artigo 402º do CC, como efectivamente sucedeu.
LIX. Refere também a Recorrente, que no Acordo aqui em análise não foram as Fichas de Casino em si que foram transaccionadas, mas antes a posição creditícia que essas fichas de jogo incorporam contra a própria Recorrente, como sua emitente, e, desse ponto de vista, o que teria sucedido no Acordo teria sido uma mera transferência ou cessão dos direitos de crédito do Sr. B para a Recorrida, pelo que o artigo 402º do CC não seria aplicável a essa pretensa cessão.
LX. Porém, ainda que o Acordo tivesse transmitido apenas direitos de crédito sobre os bens aqui em análise – o que jamais se admite por tudo o já aqui supra exposto e que apenas se equaciona por exercício de patrocínio – a conclusão a que a Recorrente chega segundo a qual o artigo 402º do CC não se aplica à cessão de créditos não tem, ainda assim, qualquer suporte na lei.
LXI. O disposto no artigo 402º do CC aplica-se à transferência de direitos reais sobre coisas, pelo que, na falta de disposição em contrário, deverá entender-se que o conceito de coisas utilizado pelo legislador nessa disposição legal é aquele que resulta do artigo 193º do CC, englobando, por isso, créditos.
LXII. Por outro lado, o CC de Macau afastou-se do CC Português e resolveu a questão que se discutia e se discute no direito português que é a de saber se o direito de propriedade e demais direitos reais incidem apenas sobre coisas em sentido estrito ou se incide também sobre coisas em sentido amplo – nos termos do artigo 193º do CC – abrangendo assim coisas incorpóreas ou direitos, optando deliberadamente pela segunda hipótese, como resulta do confronto entre os artigos 1226º do CC de Macau e a norma equivalente do CC Português (1302º).
LXIII. Pelo que, mesmo que se aceite a tese da Recorrente – que apenas se admite como mera hipótese – de que o Acordo em causa apenas transmitiu um crédito ou créditos, ainda assim, os embargos sempre teriam de ser julgados procedentes pois, quer por via do artigo 402º, também aplicável à transmissão de créditos, quer por via do regime da cessão de créditos consagrado nos artigos 571º e seguintes do CC, o crédito transferiu-se com o Acordo ou, no mínimo, com o trânsito em julgado da decisão penal confirmada pelo TSI, sendo a notificação ao devedor uma mera condição de eficácia perante ele.
LXIV. E como é também pacífico, o único efeito que a notificação produz é tornar a cessão eficaz relativamente ao devedor, desobrigando-o perante o credor primitivo (o cedente) e obrigando-o perante o novo credor (cessionário).
LXV. Mais. Mesmo antes da notificação ou aceitação, se o devedor pagar ao cedente ou celebrar com ele um negócio jurídico relativo ao crédito, nem o pagamento, nem o negócio é oponível ao cessionário, se este provar que o devedor tinha conhecimento da cessão, conforme resulta do artigo 577º, no. 2 do CC.
LXVI. Ora, a Recorrente há muito tempo que tem conhecimento dessa cessão e já foi notificada da mesma, por várias formas, designadamente aquando da notificação para a presente acção de Embargos de Terceiro.
LXVII. Pelo que, sempre seria forçoso concluir-se que, atento o supra exposto e mesmo aceitando a tese da Recorrida segundo a qual as Fichas de Casino e o Dinheiro são meros créditos transmitidos pelo Acordo e sujeitos ao regime da cessão de créditos – o que jamais se concede –, ainda assim, os Embargos não deixariam de proceder.
LXVIII. Por último, argumenta a Recorrente, em síntese, que os bens em crise no Acordo, em especial as Fichas de Casino, só se transmitiriam à Recorrida mediante a sua entrega física, pois tratam-se de títulos de crédito ao portador, e, não tendo ainda sucedido essa entrega, não se verificou a sua transmissão para a Recorrida.
LXIX. A ser aceite esta tese da Recorrente não se poderia, por exemplo, transferir por meio de um contrato, títulos ao portador que se encontrem depositados numa instituição bancária ou que façam parte de uma carteira de títulos administrada por uma instituição financeira sem que houvesse a entrega física desses títulos.
LXX. O que sucede é que a Recorrente continua, uma vez mais, a confundir a forma normal de transmissão e realização do crédito incorporado num título, com a transmissão do título em si, com o seu valor próprio, que não se confunde necessariamente com o crédito que incorpora.
LXXI. Obviamente que o crédito incorporado num título ao portador só pode ser reclamado e realizado com a apresentação física do respectivo título.
LXXII. Porém, isso não dizer que um título (ao portador ou nominativo) não possa ser transaccionado, apreendido, penhorado ou arrestado como coisa que é, diferente do crédito que incorpora (embora englobando-o).
LXXIII. Ou seja, a propriedade de um título ao portador pode ser transferido por qualquer meio de transmissão de coisas móveis, como de resto resulta expressamente do artigo 1093º, nº 3, do Código Comercial.
LXXIV. Destarte, e sem necessidade de mais argumentos, como é evidente, em face do exposto, só se poderá concluir, novamente, que mesmo nesta tese que jamais se aceita, nada obstava à transmissão plena e imediata dos bens por via do Acordo.
LXXV. Termos em que, atento tudo o exposto, nada há a apontar ao acórdão recorrido, pelo que deve ser julgado totalmente improcedente o recurso da Recorrente, e, em consequência, mantida, integralmente, a decisão proferida pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância que, revogando a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base, julgou procedentes os presentes embargos de terceiro movidos pela Recorrida e, desse modo, ordenou o levantamento do arresto que sobre as Fichas de Casino e Dinheiro propriedade desta.

Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos Provados
Foram dados como provados os seguintes factos:
- A Embargante é uma sociedade comercial constituída e registada na Austrália, segundo as leis da Austrália, com número de Registo Comercial Australiano [“Australian Business Number (ABN)”] XX XXX XXX XXX, com escritório principal em [Endereço(1)] e sede registada em [Endereço(2)]. (alínea a) dos factos assentes)
- No passado dia 01 de Fevereiro de 2013, por via de uma notificação postal com carimbo de registo de 31/01/2013 dirigida ao escritório dos mandatários da aqui Embargante no âmbito de uns autos de procedimento cautelar que correm termos pelo 3º Juízo Cível sob no. CV3-13-0001-CPV (agora com o nº CV1-13-0010-CEO-A), e nos quais é Requerente a aqui Embargante e Requerido o também aqui Requerido, Sr. B, foi a Embargante notificada, entre outros, de que, ao abrigo dos presentes autos cautelares de arresto, por decisão exarada em 14 de Janeiro de 2013, havia sido decretado o arresto de bens pertencentes ao aqui Requerido, os quais se encontram apreendidos nuns outros autos de Processo Comum Colectivo que corre termos sob o no. CR3-09-0230-PCC para garantia de um montante de MOP$40.855.375,86, pelo que tais bens deveriam ser colocados à ordem dos presentes autos tudo conforme consta de folhas 15 a 22 e aqui se dó por integralmente reproduzidos. (alínea b) dos factos assentes)
- Por decisão de 14.01.2013 proferido nos autos de arresto de que estes são apenso em que é Requerente Melco Crown Jogos (Macau), S.A. e Requerido B foi decretado o arresto de fichas de Jogo no montante total de HKD$11.000.000,00 e HKD$130.000,00 apreendidas no processo CR3-09-0230-PCC. (alínea c) dos factos assentes)
- Em 08.07.2011 corria no Tribunal de Segunda Instância um recurso, sob o n.º 789/2010, de uma sentença proferida nos autos de Processo Penal com o n.º CR3-09-0230-PCC, em que o aqui Requerido era o Assistente e C e D eram arguidos, que nomeadamente:
a) condenava os arguidos a pagar ao aí Assistente (ou seja, ao aqui Requerido) uma indemnização no montante de HKD$53.819.640,00, acrescido de juros, deduzido dos seguintes montantes:
- HKD$11.000.000,00 (onze milhões de dólares de Hong Kong) em fichas de casino, as quais foram apreendidos nos referidos autos e se encontram depositadas à ordem do Tribunal de Macau e dos mesmos autos;
- HKD$130.000,00 (cento e trinta mil dólares de Hong Kong) em dinheiro, o qual foi também apreendido nos autos e se encontra depositado à ordem do Tribunal de Macau e dos autos.
b) ordenava a restituição ao Assistente (isto é, ao aqui Requerido) as fichas de casino e do montante em dinheiro supra mencionados. (alínea d) dos factos assentes)
- O Tribunal de Segunda Instância por decisão transitada em julgado confirmou a decisão da primeira instância referida no item anterior, designadamente no que se refere à entrega ao Requerido das fichas de casino e do montante em dinheiro apreendidos. (alínea e) dos factos assentes)
- Por acordo concluído em 08 de Julho de 2011 entre a aqui Embargante e o aqui Requerido, Sr. B, este reconheceu que deve à Embargante a quantia total de AUD$10.059.764,67 (dez milhões cinquenta e nove mil, setecentos e sessenta e quatro dólares de australianos e sessenta e sete cêntimos) em virtude de:
a) ter desonrado o cheque n.º XXXXXX, no montante de HKD$103.963.326,98 (equivalentes a AUD$13.757.040,00), sacado sobre o [Banco] em Hong Kong, a favor da Embargante, o qual foi apresentado a pagamento por esta ao seu banco em 17 de Junho de 2008: e
b) ter incumprido um acordo que havia celebrado com a Embargante em 6 de Agosto de 2008 relativo ao pagamento em prestações de uma dívida que tinha para com a Embargante no montante de AUD$13.559.764,67 (treze milhões, quinhentos e cinquenta e nove mil, setecentos e sessenta e quatro dólares de australianos e sessenta e sete cêntimos) tudo conforme consta de folhas 44 a 47 ( tradução a folhas 29/32) e aqui se dá por integralmente reproduzidos. (resposta ao quesito 1 da base instrutória)
- Ao abrigo do acordo de 08 de Julho de 2011, também para salvaguarda dos direitos e interesse da Requerente, o Requerido outorgou, na mesma data uma procuração, conferindo irrevogavelmente poderes à Embargante, para que pudesse levantar directamente junto do Tribunal as fichas e o montante em dinheiro apreendidos nos autos. (resposta ao quesito 2 da base instrutória)

3. Direito
Arguiu a recorrente a nulidade do Acórdão recorrido, nos termos do art.º 571.º n.º 1, al. c) do CPC, e imputou a errada interpretação da lei.

3.1. Nulidade do Acórdão
Nos termos do art.º 571.º n.º 1, al. c) do CPC, é nula a sentença “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
Alega a recorrente que a decisão do Tribunal de Segunda Instância está em plena contradição com os fundamentos dela constantes, nomeadamente, na medida em que refere todas as características de uma dação em função do cumprimento, mas acaba por concluir pela transmissão do direito de propriedade com eficácia real, fazendo apelo ao art.º 402.º do Código Civil.
Ora, da leitura do Acórdão posto em causa não parece resultar verificada a contradição apontada pela recorrente.
O que se constata é que, depois da transcrição do acordo celebrado entre B e a recorrida A, fez o Tribunal recorrido a sua interpretação, entendendo que “a vontade real das partes é transferir desde já a propriedade das fichas de jogo e do dinheiro em numerário nele referidas à Embargante e esta aceitou desde logo”, pois “as cláusulas 1.2 e 1.8 do acordo e o ponto D) da parte das considerações iniciais do mesmo acordo demonstram inequivocamente esta vontade real das partes”.
Continuou a expor que o facto de a Embargante só ir reduzir a dívida do Executado B na exacta medida dos montantes efectivamente recebidos, não afecta a transmissão da propriedade dos bens, tendo em conta o disposto do n.º 1 do art.º 402.º do Código Civil.
E a referência à não disponibilidade do Executado sobre os bens, à data do acordo, destina-se também para explicar que a contraprestação da Embargante, isto é, o efeito liberatório da dívida, só se opera no momento posterior, na exacta medida dos montantes efectivamente recebidos, em fundo líquidos e imediatamente disponíveis.
Tudo isto serve para demonstrar que, na data em que o arresto foi decretado, os bens em causa já não pertencem ao Executado B, mas sim à Embargante.
Não se vislumbra contradição, entre os fundamentos e a decisão, pelo que não procede a arguição de nulidade do Acórdão recorrido.

3.2. Errada interpretação da lei
A questão suscitada pela recorrente prende-se com a interpretação do acordo celebrado entre a Embargante ora recorrida e o Executado B.
Na tese da recorrente, bem andou o Tribunal Judicial de Base ao configurar o acordo com uma dação em função do cumprimento (i.e. datio pro solvendo) e não é aplicável o art.º 402.º do Código Civil, enquanto o Tribunal de Segunda Instância entende que, na data em que o arresto foi decretado, as fichas de casino e o dinheiro em causa já não pertencem ao executado B, mas sim à Embargante ora recorrida, pelo que julga procedentes os embargos deduzidos por esta.
Vejamos.

Ora, nos termos do art.º 828.º do Código Civil, “a prestação de coisa ou de direito diverso do que for devido, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento”.
É assim admitida a dação em cumprimento com uma das causas de extinção das obrigações além do cumprimento.
Por sua vez que, dispõe o art.º 831.º o seguinte:
“Artigo 831.º
(Dação pro solvendo)
1. Se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida respectiva.
2. Se a dação tiver por objecto a cessão de um crédito ou a assunção de uma dívida, presume-se feita nos termos do número anterior.”

Tratando-se de duas figuras diferentes, a dação em cumprimento (datio in solutum) distingue-se da dação em função do cumprimento (datio pro solvendo), na medida em que, no primeiro caso, o devedor pretende, com a prestação diversa da devida, extinguir imediatamente a obrigação, ao passo que, no segundo, pretende apenas facilitar o cumprimento, fornecendo ao credor os meios necessários para este obter a satisfação futura do seu crédito.
A datio pro solvendo tem como característica a circunstância de não se pretender extinguir imediatamente a obrigação, que subsiste e só se vem a extinguir com a satisfação do direito do credor e na medida em que for satisfeito.1
É esta circunstância que distingue a dação em cumprimento da dação em função do cumprimento. Por outras palavras, a distinção reside na extinção imediata ou não da obrigação subtraída pelo devedor para com o credor, com a prestação de coisa ou de direito diverso do que for devido.
O que importa é que a prestação diversa faz extinguir imediatamente (ou não) a obrigação devida.

No caso ora em apreciação, a acordo celebrado entre a ora recorrida e o Executado B tem o seguinte teor:
“... Considerando que:
(A) O Devedor deve à A o montante (em divida) de HKD$10.059.764,67 (dez milhões cinquenta e nove mil setecentos e sessenta e quatro dólares australianos e sessenta e sete cêntimos) (doravante a “Dívida à A”) em resultado de:
(i) o Devedor ter desonrado o cheque no XXXXXX no montante de HKD$103.963.326,98 (equivalentes a AUD$13.757.040,00), sacado sobre o [Banco] em Hong Kong, a favor da A, o qual foi apresentado a pagamento por esta ao seu banco em 17 de Junho de 2008; e
(ii) o Devedor ter incumprido o acordo com a A celebrado pelo Devedor em 6 de Agosto de 2008 (doravante o “Acordo Para Pagamento da Dívida à A”) nos termos do qual o Devedor deveria ter pago à A o montante de AUD$13.559.764,67 ou onze prestações mensais de AUD$1.250.640,00 cada de 31 de Agosto de 2008 a 30 de Junho de 2009;
(B) Nos autos de Processo Penal a correrem termos em Macau sob o no CR3-09-0230-PCC, em que o Devedor é o Assistente e C e D são os Arguidos, foi proferida pelo Tribunal Judicial de Base de Macau sentença (doravante a “Sentença do Tribunal Judicial de Base de Macau”), nomeadamente:
(i) a condenar os Arguidos a pagar ao Assistente (ou seja, ao Devedor) uma indemnização no montante de HKD$53.819.640,00, acrescido de juros, deduzido dos seguintes montantes:
- HKD$11.000.000,00 (onze milhões de dólares de Hong Kong) em fichas de casino, as quais foram apreendidas nestes autos e se encontram depositadas à ordem do Tribunal de Macau e destes autos (doravante as “Fichas de Casino”); e
- HKD$ 130.000,00 (cento e trinta mil dólares de Hong Kong) em dinheiro, o qual foi também apreendido nestes autos e se encontra depositado à ordem do Tribunal de Macau e destes autos (doravante o “Dinheiro”);
(ii) a ordenar a restituição ao Assistente das Fichas de Casino e do Dinheiro supra mencionados;
(C) Os Arguidos recorreram da Sentença do Tribunal Judicial de Base de Macau para o Tribunal de Segunda Instância de Macau, encontrando-se este recurso a correr termos neste tribunal sob o no. 798/2010, a aguardar decisão, digo, 789/2010, a aguardar decisão;
(D) Antecipando a possibilidade de o Tribunal de Segunda Instância de Macau ou (caso haja recurso da decisão deste) o Tribunal de Última Instância de Macau proferirem decisão que confirme, no todo ou em parte, a Sentença do Tribunal Judicial de Base de Macau no que respeita à restituição das Fichas de Casino e do Dinheiro ou por qualquer modo ordene a restituição das Fichas de Casino e do Dinheiro, no todo ou em parte, e tal decisão transitar em julgado (doravante a “Decisão Transitada”), o Devedor pretende transmitir e ceder agora à A a propriedade e todos os direitos reais que tem sobre as Fichas de Casino e o Dinheiro (incluindo quaisquer partes dos mesmos cuja restituição a Decisão Definitiva confirme ou ordene) e, bem assim, todos os demais direitos relativos às Fichas de Casino e ao Dinheiro (incluindo quaisquer partes dos mesmos), incluindo o direito a receber directamente do relevante Tribunal de Macau as Fichas de Casino e o Dinheiro (ou quaisquer panes mesmos) e o direito a trocar as Fichas de Casino por dinheiro junto da respectiva entidade responsável por essa troca (seja ela uma concessionária, uma subconcessionária, uma operadora ou um promotor de jogo em casino) (doravante, todos os direitos supra serão designados também por “Propriedade e Direitos do Devedor”), tudo nos termos estabelecidos neste acordo;
É acordado o seguinte:
1. Transmissão e Cessão da Propriedade e Direitos do Devedor
1.1 O Devedor transmite e cede, irrevogavelmente, à A:
(i) a Propriedade e Direitos do Devedor sobre as Fichas de Casino, na sua totalidade, para que a A obtenha mais facilmente, com o recebimento dessas Fichas de Casino (incluindo quaisquer partes das mesmas) do relevante Tribunal de Macau e do produto da sua troca por dinheiro, o pagamento parcial do montante em dívida da Dívida à A;
(ii) a Propriedade e Direitos do Devedor sobre o Dinheiro, na sua totalidade, para que a A obtenha mais facilmente, com o recebimento desse Dinheiro (incluindo quaisquer partes do mesmo) do relevante Tribunal de Macau, o pagamento parcial do montante em dívida da Dívida à A.
1.2 Para evitar dúvidas, fica desde já esclarecido que, por este Acordo, o Devedor também transmite e cede à A o direito a receber directamente do relevante Tribunal de Macau (expressão que inclui qualquer autoridade judiciária, administrativa, governamental, policial e bancária relacionada responsável pela restituição em cumprimento da Decisão Transitada) as Fichas de Casino e o Dinheiro (incluindo quaisquer partes dos mesmos).
1.3 Para salvaguardar os direitos e interesses da A nos termos deste Acordo,
(i) aquando da assinatura deste Acordo ou logo que possível após tal, as partes subscreverão e submeterão ao competente Tribunal de Macau um requerimento conjunto, em língua portuguesa, materialmente nos termos do Anexo I a este Acordo, para que o relevante Tribunal de Macau possa entregar as Fichas de Casino e o Dinheiro directamente à A ou aos advogados da A;
(ii) sempre que solicitado pela A, as partes também subscreverão e submeterão a qualquer outro competente Tribunal de Macau um requerimento conjunto, em língua portuguesa, materialmente nos termos do Anexo I a este Acordo, a fim de assegurar que o relevante Tribunal de Macau entrega as Fichas de Casino e o Dinheiro directamente à A ou aos advogados da A.
1.4 Para salvaguardar os direitos e interesses da A nos termos deste Acordo, e ainda para o caso de a validade ou eficácia da transmissão e cessão da Propriedade e Direitos do Devedor aqui acordadas serem por qualquer modo postas em causa, aquando da assinatura deste Acordo o Devedor outorgará e entregará à A uma procuração, em língua portuguesa, materialmente nos termos do Anexo 2 a este Acordo, conferindo irrevogavelmente à A plenos poderes relativamente às Fichas de Casino e ao Dinheiro (incluindo quaisquer partes dos mesmos).
1.5 Além disso, o Devedor obriga-se a usar todos os seus melhores esforços para assegurar que as Fichas de Casino e o Dinheiro (incluindo quaisquer partes dos mesmos) são entregues pelo relevante Tribunal de Macau directamente à A.
1.6 Caso, por qualquer razão, o Devedor receba as Fichas de Casino e o Dinheiro (ou quaisquer partes dos mesmos), o Devedor, incondicional e irrevogavelmente, promete entregar imediatamente essas Fichas de Casino e Dinheiro (ou aquelas partes dos mesmos) à A.
1.7 Em qualquer caso, a Dívida à A só será reduzida nos termos deste Acordo na exacta medida dos montantes efectivamente recebidos, em fundos líquidos e imediatamente disponíveis, pela A.
1.8 Este Acordo e a transmissão e cessão nele acordadas têm eficácia imediata.
2. Diversos
2.1. Este Acordo vincula o Devedor e manter-se-á para benefício dos sucessores e cessionários da A.
2.2. Para evitar dúvidas, este Acordo é celebrado sem prejuízo de quaisquer direitos e faculdades da A, conferidos por lei ou por contrato (incluindo pelo Acordo Para Pagamento da Divida à A), contra o Devedor para reembolso do montante em divida da Dívida à A e relativos juros e despesas, os quais a A pode exercer e executar contra o Devedor em toda a extensão permitida por lei.
3. Lei e Jurisdição Aplicáveis
3.1. Este Acordo é feito e regido de acordo com as leis da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China.
3.2. As partes deste Acordo acordam, incondicional e irrevogavelmente, submeter quaisquer disputas emergentes deste Acordo à jurisdição não exclusiva dos tribunais de Macau, sem prejuízo de a A poder instaurar procedimentos judiciais contra o Devedor em qualquer jurisdição conforme entender necessário ou conveniente a fim de obter o pagamento integral da Dívida à A ...”.

Inteiradas as declarações emitidas pelas partes, afigura-se-nos que estamos perante uma dação em função do cumprimento, e não dação em cumprimento.
Estão em causa as seguintes cláusulas do acordo:
- por um lado, as cláusulas 1.2 e 1.8, bem como o ponto D) constante nas considerações iniciais do acordo, nos quais encontra o Tribunal recorrido a fundamentação fáctica para a sua decisão;
- por outro lado, as cláusulas 1.1 e 1.7, utilizadas pelo Tribunal Judicial de Base e a recorrente para fundamentar a sua tese.
Na realidade, parece resultar das letras da cláusula 1.8 e do ponto D) a ideia de transmissão e cedência imediata da propriedade e dos direitos reais sobre as fichas de jogo e o montante em numerário.
Quanto à cláusula 1.2, impõe-se fazer uma observação, já que se estipula que por acordo o devedor também transmite e cede à credora “o direito a receber directamente” do Tribunal de Macau as fichas de jogo e o dinheiro.
Ora, apesar dos termos utilizados (o devedor transmite a propriedade e direitos do devedor sobre as fichas de casino e o dinheiro), o que as partes pretenderam foi uma dação em função do cumprimento, entregando os bens para que pudesse pagar a dívida, sendo que esta dívida só seria reduzida na medida dos montantes efectivamente recebidos.
Em bom rigor, não resulta do conteúdo do acordo que, com a assinatura deste acordo e a “transmissão” da propriedade sobre os bens, as partes pretenderam extinguir imediatamente a obrigação devida, que é a característica da dação em cumprimento.
Antes pelo contrário, declaram expressamente as partes que a transmissão e cedência da propriedade dos bens destina-se “para que a A obtenha mais facilmente”, com o recebimento das fichas de jogo (e do produto da sua troca por dinheiro) e do dinheiro do Tribunal de Macau, “o pagamento parcial do montante em dívida da Dívida à A” (cláusula 1.1.) e “a Dívida à A só será reduzida nos termos deste acordo na exacta medida dos montantes efectivamente recebidos, em fundos líquidos e imediatamente disponíveis, pela A” (cláusula 1.7).
Daí que se revela nítida e inequívoca a pretensão de facilitar o cumprimento da obrigação, com a prestação diversa da devida, que só se extingue com o efectivo recebimento, por parte da credora A, ora recorrida, dos montantes, em fundos líquidos e imediatamente disponíveis.
Mesmo sendo evidente a intenção das partes de fazer extinguir parcialmente a dívida assumida pelo Executado B perante a recorrida, tal extinção não se ocorre imediatamente com a assinatura do acordo, mas sim com a efectiva entrega posterior do dinheiro produto da troca de fichas de jogo e do montante em numerário apreendido.
Tal interpretação é ainda reforçada pela cláusula 2.2, da qual resulta que a celebração do acordo não reduz “quaisquer direitos e faculdades” que a recorrida tem nos termos da lei e do contrato contra o Executado B “para reembolso do montante em divida da Dívida” à recorrida e relativos juros e despesas, os quais a recorrida “pode exercer e executar … em toda a extensão permitida por lei”.
Resumindo, não houve extinção imediata da obrigação primitiva, mas sim apenas um acordo para facilitar o pagamento da dívida.
Não parece muito correcto dizer que o que as partes quiseram com a celebração do acordo foi, efectivamente, a transferência da propriedade das fichas de jogo e do dinheiro em causa, que não está em causa, mas sim a transferência do poder de disposição dos mesmos para os efeitos acordados pelas partes.
Para o efeito, foi acordado que o Executado B ficava obrigado a subscrever e submeter, conjuntamente com a recorrida, ao tribunal de Macau um requerimento com vista à obtenção e entrega dos bens e a usar todos os seus melhores esforços para a mesma finalidade (cláusulas 1.3 e 1.5).
Se a propriedade desses bens se transferisse com a celebração do acordo, tornando assim a recorrida proprietária dos bens, logicamente não havia necessidade de estabelecer, desde já e no mesmo acordo, a intervenção do Executado, separata ou conjunta com a recorrida, para que esta conseguisse obter os bens.
O mesmo se pode dizer em relação à outorga e entrega de uma procuração por parte do Executado, que confere irrevogavelmente à recorrida plenos poderes relativamente aos bens, “para salvaguardados direitos e interesses” da recorrida, tal como resulta da cláusula 1.4 do acordo. Se o Executado já não é o proprietário dos bens, como é que justifica a passagem de procuração sobre os mesmos?
Concluindo, afigura-se-nos que não está em causa a transferência da propriedade dos bens.

Por outro lado, as fichas de casino não podem ser objecto de direito de propriedade, já que constituem apenas um direito de crédito.
Ora, como moeda de jogo que circula nos casinos da RAEM, obrigatoriamente convertível em dinheiro por força dos contratos de concessão de jogo (cláusula 91.º n.º 3), as fichas de jogo representam um determinado valor nelas indicado, sendo que as concessionárias se obrigam a garantir o reembolso do valor facial, quando as fichas lhe sejam apresentadas para o efeito, para além de aceitar a aposta feita pelo portador no montante do valor facial da fichas.
Assim, as fichas de casino em causa representam um direito de crédito, podendo ser considerados como títulos de crédito ao portador, uma vez que não contêm a identificação do beneficiário.
Não obstante a disposição no n.º 1 do art.º 402.º do Código Civil, segundo a qual a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, o que se verifica no presente caso é, no fundo e em bom rigor, a transmissão da titularidade de fichas de jogo que consubstanciam um direito de crédito, daí que subsiste séria dúvida sobre a aplicabilidade da norma em causa.
Por outro lado, e nos termos do art.º 1093.º n.ºs 1 e 2 do Código Comercial, a transmissão de títulos ao portador dá-se mediante acordo ente o alienante e o adquirente e entrega do título ao adquirente, sendo dispensada a entrega se o adquirente teve já a detenção do título e no caso de constituto possessório.
A importância da entrega do título também se revela no n.º 4 do mesmo art.º 1093.º, ao estipular que o crédito emergente de um título ao portador não se transmite sem a entrega do título ao cessionário.
É de salientar que, nem à data de celebração do acordo ora em discussão nem nos momentos posteriores, os bens em causa estavam na disponibilidade do Executado B, sendo certo que os mesmos nunca foram entregues à ora recorrida, pois resulta da factualidade assente que tais bens se encontravam apreendidos no processo-crime n.º CR3-09-0230-PCC.
Não se verificando a entrega das fichas de jogo à recorrida, necessária para se considerar consumada a transmissão, é de concluir pela não transmissão das mesmas fichas.

Pelo exposto, é de dizer que, na data em que foi decretado o arresto, os bens referidos nos autos não pertencem à ora recorrida, mas sim ao Executado B, já que com a celebração do acordo não foi transferida a propriedade dos mesmos.
Procede o recurso interposto pela Melco Crown (Macau), S.A., na parte respeitante à questão de fundo.

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao presente recurso, revogando o Acórdão recorrido e julgando os embargos improcedentes.
Custas pela recorrida, em ambas as instâncias.

Macau, 22 de Julho de 2016

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª Edição Revista e Actualizada, p. 119, 120 e 122.
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Processo n.º 21/2016