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Proc. nº 553/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 15 de Setembro de 2016
Descritores:
-Acidente de trabalho
-Acidente in itinere
-Competência dos juízos laborais

SUMÁRIO:

I. Pertencem aos juízos laborais as acções, incidentes e questões cíveis e contravencionais emergentes de relações jurídicas de natureza laboral às quais se aplica o Código de Processo de Trabalho (art. 29º- C, da Lei nº 9/1999: Lei de Bases da Organização Judiciária ou LBOJ).

II. O Código de Processo de Trabalho aplica-se às questões emergentes de acidentes de trabalho ou doenças profissionais (art. 2º, nº 2, al. 6), da Lei nº 9/2003, que aprova o CPT);

III. Não é de trabalho o acidente de viação verificado na ida para o local de trabalho ou no regresso deste a caminho da residência do trabalhador (in itinere), quando não for utilizado meio de transporte fornecido pelo empregador (art. 3º, al. (5), do DL nº 40/95/M.

IV. Não sendo de trabalho, o pleito concernente à responsabilização da seguradora pelo dano sofrido pelo trabalhador em tais circunstâncias não pode ser dirimido nos juízos laborais.















Proc. nº 553/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, de sexo masculino, titular do B.I.R. n.º 7XXXXX6(6), residente em Macau, Rua de XX, Edf. Jardim XX, XX KOK, bloco n.º XX, XX andar XX, (澳門XX街XX花園XX閣第XX座XX樓XX), com o patrocínio oficioso do Ministério Público, ---
Intentou no juízo laboral do TJB (Proc. nº LB-13-0320-LAE) acção para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho com processo especial do trabalho, ---
Contra:
COMPANHIA DE SEGUROS B, S.A.R.L. (B保險股份有限公司), com sede em Macau, Avenida da XX, n.º XX, Edf. XX, XXº andar (澳門XX大馬路XX號XX大廈XX樓).
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Na contestação, a ré suscitou a excepção de incompetência do tribunal, que foi julgada improcedente, na sequência do que foi a ré condenada como litigante de má fé na multa de 6 UC.
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É contra essa decisão que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, cujas alegações a ré formulou da seguinte maneira:
«1º Vem o presente recurso interposto do douto Despacho Saneador, constante de fls. 145 e 146 dos autos, que julgou improcedente a excepção invocada pela Recorrente relativa à incompetência do tribunal e subsequentemente condenou a Recorrente como litigante de má-fé.
2.º Não pode, salvo o devido respeito, a aqui Recorrente aceitar a interpretação e a aplicação das normas vertidas no art. 29.º-C da Lei n.º 9/1999, no art. 2.º, n.º 2 al. 6) do Código de Processo de Trabalho, no art. 3.º, al. a) sub. (5) do Decreto-Lei n.º 40/95/M (à sua redacção à data dos factos em apreço) e no art. 385.º n.º 1 e 2, als. a), b) e d) do Código de Processo Civil nos moldes expostos pelo douto Tribunal a quo no Despacho Recorrido.
3.º O art. 3.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 40/95/M define como acidente de trabalho o acidente que se verifique no tempo e no local de trabalho e produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou incapacidade temporária ou permanente de trabalho ou de ganho. A subalínea (5) do referido normativo, na sua redacção à data do referido sinistro (8 de Fevereiro de 2012), qualifica igualmente como acidentes de trabalho os ocorridos na ida para o local de trabalho ou no regresso deste, quando for utilizado o meio de transporte fornecido pelo empregador.
4.º No caso em apreço, a entidade empregadora do Recorrido contratou com a Recorrente um contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho e doenças profissionais, tendo no âmbito do mesmo contratado com a Recorrente a extensão da sua cobertura aos danos sofridos pelos trabalhadores durante o percurso normal para e do local de trabalho, ainda que o meio de transporte utilizado não seja fornecido pelo empregador.
5.º Desse modo, o direito de indemnização do Recorrido não resulta das normas do DL n.º 40/95/M, mas sim da cláusula especial do contrato de seguro.
6.º Assim, não decorrendo o direito de indemnização que eventualmente assistirá o Recorrido das normas do Decreto-Lei n.º 40/95/M, mas sim de uma cláusula contratual resultante da autonomia privada e inserida no contrato de seguro, não é possível arguir que o mesmo é enquadrável na noção que decorre do disposto no art. 2.º, n.º 2 al. 6) do Código de Processo de Trabalho e do qual deriva a atribuição de competência especializada aos Juízos Laborais do Tribunal Judicial de Base para julgar o presente pleito.
7.º A litigância de má-fé exige a consciência de quem pleiteia de certa forma tem a consciência de não ter razão.
8.º A defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 385.º n.ºs 1 e 2 do C.P.C.
9.º A defesa por excepção intentada pela Recorrente em sede de Contestação e posteriormente nos seus Requerimentos de 9 de Março de 2016 e de 29 de Abril de 2016 e cujo mérito é acima humildemente argumentado, corresponde à interpretação jurídica do alcance da referida cláusula, cuja existência é ab initio confessada.
10.º Nos moldes em que a argumentação expressa pela Recorrente, não visa a negação do eventual direito do Autor, não tão-somente da competência dos Juízos Laborais do Tribunal Judicial De Base para julgar o mérito de tal direito no âmbito de uma acção especial de trabalho, encontrando-se tal competência, no entendimento modesto entendimento do Recorrente junto dos Juízos Cíveis do Tribunal Judicial de Base no âmbito de uma acção declarativa comum.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirão deve ser concedido provimento ao presente recurso e consequentemente ser revogado o Despacho Recorrido e substituído por decisão que julgue procedente a excepção dilatória invocada pela Recorrente e a sua absolvição da instância, de acordo com as disposições constantes dos artigos 30.º, 412.º, n.º 2 e 413.º, al. a) do C.P.C., aplicáveis ex vi art. 1.º, n.º 1 do C.P.T.»
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O autor respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
«A. A competência material do Tribunal se afere pela análise da estrutura da relação jurídica material em causa segundo a versão apresentada em juízo pelo autor.
B. Na presente acção, o pedido do Autor, ora o Recorrido, fundamenta-se na ocorrência dum acidente no trajecto do local de trabalho para casa enquanto utilizava o seu próprio meio de transporte, gerador de danos e cuja responsabilidade imputa à Ré por força da cláusula especial do contrato de seguro do ramo do acidente de trabalho.
C. De acordo com no n.º 1 do art.º 2.º do referido APÓLICE UNIFORME aplicável ao contrato de seguro em causa, é transferida para a Seguradora a responsabilidade pelos encargos provenientes de acidentes de trabalho e doenças profissionais declarados na apólice, de acordo com a legislação em vigor e nos termos das condições gerais, especiais e particulares desta apólice.
D. Assim, afigura-se nos que se venha a discutir na acção se se verificou ou não um acidente de trabalho nos termos do referido contrato de seguro.
12. Por outro lado, o Juízo Laboral não apenas tem competência para conhecer das causas enquadráveis ao conceito do acidente de trabalho legalmente previsto no Decreto-Lei n.º 40/95/M, mas ainda para os casos dos acidentes cobertos pela extensão do contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho.
13. Ou seja, a determinação da competência em razão de matéria laboral prevista no artigo 2.º, n.º 2, 6) do CPT não depende do facto de o acidente alegado pelo autor se enquadrar ou não no conceito jurídico-legal do acidente de trabalho do referido Decreto-Lei, uma vez que questão essa, como o mérito da causa, deveria ser discutida e resolvida no âmbito do processo.
14. Pelo que, estamos obviamente perante uma questão emergente de um acidente de trabalho, sendo de considerar ser o juízo laboral o competente, em razão da matéria, para o conhecimento da presente acção, atento o disposto na alínea (6) do número 2 do artigo 2.º do CPT.
Nos termos e nos melhores de Direito que V. Exªs certamente suprirão deverá o recurso apresentado pela Recorrente julgado improcedente e confirmada a decisão recorrida.»
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Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
1 - Foi enviada ao Ministério Público a seguinte comunicação de acidente de trabalho:
“AUTO DE NOTIFICAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
N.º 323/2013
Em 7 de Novembro de 2013, a adjunta-técnica do Departamento de Inspecção do Trabalho da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais da RAEM, C, tendo efectuado investigação do presente caso, vem notificar o órgão judicial do seguinte:
Em 10 de Fevereiro de 2012, a DSAL recebeu a comunicação de acidente de trabalho emitida por “D, Limitada”, sita na Avenida da XX, XX Hotel, XXº andar, tel.: 28XXXXX8, cujo sinistrado é A, do sexo masculino, nascido a XX deXX de 19XX, titular do BIRPM n.º 7XXXXX6(6), endereço: Rua de XX, Edf. Jardim XX, bloco XX, XXº andar XX, Macau, tel.: 6XXXXX94, que iniciou funções na aludida empresa em 17 de Março de 2011, como chefe da repartição de forno e, na altura da ocorrência do acidente, auferia um salário mensal de dezoito mil, duzentas e setenta e oito patacas.
Declarou o sinistrado que, em 8 de Fevereiro de 2012, por volta das 16h30, tendo conduzido seu motociclo privado no trajecto da saída do local de trabalho, ao passar pela Ponte de XX, sofria descuidadamente um acidente de viação que lhe causava ferimento por queda, designadamente fractura do joelho esquerdo e do tornozelo esquerdo. Em seguida, foi logo transportado pela ambulância para o Centro Hospitalar Conde de S. Januário, fincando internado no hospital durante o período compreendido entre 8 de Fevereiro e 15 de Março de 2012, bem como se submetendo à cirurgia de fixação interna do pé esquerdo. A par disso, devido ao presente acidente de trabalho, o sinistrado tinha faltas por acidente de trabalho no período de 8 de Fevereiro a 29 de Junho de 2012.
Em 8 de Agosto de 2013, o sinistrado alegou perante esta Direcção que os salários legais referentes ao dia da ocorrência do acidente e ao período de faltas por acidente de trabalho não eram descontados pela empresa e que não tinha recebido todas as despesas médicas. Mais disse o sinistrado que tinha apresentado ao serviço desde 30 de Junho de 2012, mas ainda não está recuperado, precisando de ir periodicamente às consultas médicas e submeter-se à cirurgia de remoção do artigo fixado no interior do organismo, além disso, as partes lesadas afectarão o trabalho.
A supracitada empregadora transmitiu a responsabilidade de indemnização emergente do presente acidente de trabalho à “COMPANHIA DE SEGUROS B, S.A.R.L.”, através da apólice de seguro n.º 001XXXXXX73, cuja validade se iniciou em 1 de Julho de 2011 e terminou em 30 de Junho de 2012.
Dado que o acidente de trabalho em causa já passou mais de 1 ano, e que o sinistrado ainda não está recuperado, para cumprir as obrigações previstas na lei, é lavrado o presente auto de notificação com vista a notificar a respectiva autoridade. Eu abaixo assinado, declaro por minha honra que o conteúdo deste auto de notificação corresponde à verdade».
2 – O despacho saneador, na parte que aqui interessa, apresenta o seguinte teor:
«A Ré, em sede de contestação, vem arguir a incompetência material do Juízo Laboral do Tribunal Judicial de Base para apreciar a matéria respeitante ao acidente, alegando que o sinistrado não estava no local, nem no tempo de trabalho, na medida em que sofreu o acidente quando se deslocava do seu trabalho para casa conduzindo um veículo sua propriedade e não já fornecido pela sua entidade patronal, não se enquadrando assim na noção de acidente de trabalho constante do art. 3.º, al. a), 5) do DL n.º 40/95/M.
O sinistrado, representado pelo Ministério Público, opôs-se afirmando que são igualmente considerados acidentes de trabalho aqueles que o contrato de seguro enquadra como tal, concretamente, na cláusula n.º 3 das cláusulas especiais constantes da Portaria n.º 237/95/M, de 14 de Agosto e nos termos da qual se deve concluir ser aplicável o regime jurídico previsto no DL n.º 40/90/M, de 14 de Agosto, portanto, enquadrável assim na noção que decorre do disposto no art. 2.º, n.º 2, 6) do CPT.
Cumpre apreciar.
A total ausência de fundamentação para a excepção invocada, tendo em conta a cláusula G3 constante do contrato de seguro celebrado entre a Ré e o segurado (primeiro, aquando da sua invocação, completamente omitida pela Ré e, após a resposta do Ministério Público, reconhecida pela Ré a fls. 121 e 122), não justifica outra decisão que não seja decidir pela sua improcedência, lamentando-se profundamente a arguição desta excepção cuja falta de fundamento a Ré não podia desconhecer. Efectivamente, alegar, como faz a Ré, que tal cláusula se traduz numa extensão da cobertura do contrato de seguro e não do conceito jurídico-legal de acidente de trabalho, é uma lamentável manobra, perdoe-se-nos o aforismo popular, de “tentar esconder o sol com a peneira”, tal é a sua fragilidade argumentativa, ainda mais lamentavelmente reafirmada a fls. 130 e ss.
Litiga com má fé quem, com dolo ou negligência grave “tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.” e “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa” (cfr. art. 385, n.º 2, als. a) e b) do Código de Processo Civil). A oposição absolutamente infundada por parte da Ré da incompetência do tribunal preenche os requisitos previstos na norma supra citada para que possamos concluir pela sua litigância de má fé, sendo certo que tal arguição completamente infundada, neste processo que tem natureza urgente, implicou um retardamento do seu processamento, o que consubstancia um entorpecimento da acção da justiça (cfr. art. 385.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Civil).
Nestes termos:
a) improcede a excepção invocada pela Ré relativa à incompetência do tribunal;
b) condena-se a Ré como litigante de má fé numa multa de 6 UC».
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III – O Direito
A – Da competência para o julgamento do pleito
1 - Concatenando as disposições dos arts. 29º-C, da Lei nº 9/1999, 2º, nº 2, al. 6), do CPT e 3º, al. a), e subalínea 5), do DL nº 40/95/M, defendia a ré, Seguradora identificada nos autos, que o acidente sofrido pela vítima não podia ter natureza laboral, uma vez que o sinistro ocorreu, fora do tempo e do local de trabalho, quando ela se deslocava do seu local de emprego para casa conduzindo um motociclo com a matrícula MX-XX-X5, o qual não tinha sido fornecido pelo empregador, “D, Limitada”.
E por não ser acidente de trabalho, os juízos laborais seriam incompetentes para julgar a causa. Era esta a posição da contestante.
Assim não o julgou, porém, o tribunal “a quo”
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2 – Vejamos o que diz o art. 3º do DL nº 40/95/M:
«Artigo 3.º
(Conceitos)
Para efeitos do presente diploma, considera-se:
a) «Acidente de trabalho» ou «Acidente» — o acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza, directa ou indirectamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou incapacidade temporária ou permanente de trabalho ou de ganho.
É igualmente considerado como acidente de trabalho o ocorrido:
(1) Fora do local ou do tempo de trabalho, quando verificado na execução da actividade laboral ou de serviços determinados pelo empregador ou por este consentidos;
(2) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
(3) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito, excepto se aquele for efectuado por crédito em conta bancária;
(4) No trajecto para o local onde deva ser prestada ao trabalhador qualquer forma de assistência ou tratamento por causa de anterior acidente, no regresso desse local e enquanto neste permanecer para esses fins;
(5) Na ida para o local de trabalho ou no regresso deste, quando for utilizado meio de transporte fornecido pelo empregador; (…)» (destaque nosso)1.
Por outro lado, o art. 29º- C, da Lei nº 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária ou LBOJ) prescreve:
«Sem prejuízo de outras que por lei lhes sejam atribuídas, são da competência dos Juízos Laborais as acções, incidentes e questões cíveis e contravencionais emergentes de relações jurídicas de natureza laboral às quais se aplica o Código de Processo de Trabalho».
Ora, o Código de Processo de Trabalho (CPT) no nº2, do art. 2º, com a epígrafe “Âmbito da jurisdição de trabalho”, estatui:
«Entre outras que nos termos da lei se devam considerar como tal, são de natureza laboral e seguem os termos do processo civil regulado neste Código…6) As questões emergentes de acidentes de trabalho ou doenças profissionais».
Como é bom de ver, esta disposição legal do CPT não é uma norma de competência. É simplesmente uma norma que se limita a mandar seguir os termos processuais as acções descritas no art. 2. Trata-se, portanto, uma norma de cariz processual.
No que se refere à do DL nº 40/95/M destacada no art. 3º acima parcialmente transcrito, ela simplesmente enuncia o conceito de acidente de trabalho numa das suas formulações possíveis: aquele que ocorre quando o trabalhador de desloca para o local de trabalho ou dele regressa, quando for utilizado meio de transporte fornecido pelo empregador.
Esta disposição, portanto, não se preocupa em saber qual o tribunal em que a questão do acidente de trabalho vai ser apreciada. Não é, pois, também esta uma norma de competência. Aliás, o próprio diploma em si mesmo também não cura de apurar essa competência. Já por isso o art. 21º, por exemplo, se limita a impor que as seguradoras participem o acidente ou a doença profissional ao “tribunal competente”, sem o definir.
De competência já se trata, contudo, a norma da LBOJ acima transcrita.
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3 – Pois bem. A este respeito, o que parece fazer sentido na interpretação que nos é exigida é estabelecer um percurso normativo que tenha um encadeamento lógico. E a lógica obriga-nos a seguir este caminho:
a) - A referida norma de competência diz que pertencem aos juízos laborais as acções, incidentes e questões cíveis e contravencionais emergentes de relações jurídicas de natureza laboral às quais se aplica o Código de Processo de Trabalho;
b) - Aplica-se o CPT às questões emergentes de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;
c) - Não é de trabalho o acidente verificado na ida para o local de trabalho ou no regresso deste para a residência do trabalhador, quando não for utilizado meio de transporte fornecido pelo empregador.
Se assim é (e este TSI já afirmou que um acidente como o destes autos não é de trabalho, em virtude de o trabalhador estar a utilizar veículo próprio no regresso a casa: ver Ac. de 19/05/2011, Proc. nº 217/2011), então parece que o caso em apreço não representa uma questão que se submeta à norma de competência prevista na LBOJ.
É certo que o acórdão deste tribunal acabado de citar não se pronunciou especificamente sobre a competência. Mas essa omissão não significa mais do que isso e, portanto, daí não se pode extrapolar para uma conclusão precipitada sobre a competência. Ou seja, a falta de referência à competência no aresto não permite extrair a ideia de que o TSI considerou implicitamente que o juízo laboral dispõe de competência sobre um acidente que não tem natureza laboral.
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4 – Há, ainda assim, que ponderar a questão pertinente resultante do facto de a entidade patronal ter transferido a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho e doenças profissionais para a seguradora, ora recorrente, ao abrigo do nº1, do art. 2º da Portaria nº 237/95/M (Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho e de Acidentes Profissionais).
Mas, de acordo com esta disposição legal, o segurado transfere para a seguradora a responsabilidade pelos encargos provenientes de acidentes de trabalho e doenças profissionais em relação aos trabalhadores ao serviço directo do segurado, declarados na apólice, de acordo com a legislação em vigor e nos termos das condições gerais, especiais e particulares dessa mesma apólice.
Mas espreitemos ainda a Portaria nº 236/95/M, dedicada à aprovação de tarifa de prémios e condições para o ramo de acidentes de trabalho.
Ora, de acordo com o art. 13º deste diploma, “quando o segurado pretenda incluir no seguro a cobertura dos acidentes que possam ocorrer durante o trajecto para o local de trabalho ou no regresso deste, há lugar à aplicação da sobretaxa mínima de 0.1%.”
Então, e como foi dito no aresto deste TSI atrás referido, “se o legislador quisesse abranger todos acidentes ocorridos no trajecto para o local de serviço ou no regresso deste, independentemente do meio de transporte utilizado, como acidente de trabalho, já não precisaria estabelecer que o segurado pode, mediante prémio extra, incluir no seguro de acidente de trabalho a cobertura dos acidentes que possam ocorrer durante o trajecto para o local de trabalho ou no regresso deste, pois, se já fosse acidente de trabalho, ficaria logo coberto no seguro em causa”.
Isto parece reforçar a ideia de que em geral o contrato de seguro não cobre todos os acidentes in itinere, mas somente aqueles que se verificarem com meio de transporte fornecido pela entidade patronal (Luis Cunha Gonçalves, Responsabilidade Civil pelos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Coimbra Editora, 1939, pág. 38 e sgs., citado por Júlio Manuel Vieira Gomes, O Acidente de Trabalho - O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, nota nº 155, pág. 61-62. Quanto aos excluídos, a razão de ser está na circunstância de, precisamente, não se caracterizarem como acidentes de trabalho.
Como é evidente, o facto de estar excluído da noção de contrato de trabalho, não significa que o dano não seja indemnizável, nem coberto pela seguradora. Bastará que segurado e seguradora tenham contratado a cobertura do dano. Simplesmente, será tratado simplesmente como um acidente de natureza civil, digamos assim, e que, por conseguinte, não poderá ser dirimido jurisdicionalmente no juízo laboral. Efectivamente, “…estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil subjectiva, não está vedada ao trabalhador a possibilidade de ser ressarcido nos termos gerais, designadamente no que respeita a danos não cobertos pela Lei dos Acidentes de Trabalho” (Pedro Romano Martinez, Avaliação e Reparação do Dano em Acidentes de Trabalho - A responsabilidade Civil, in «Formação Jurídica e Judiciária», Colectânea do CFJJM, tomo IX, 2013, pág. 7).
Esta formulação normativa, quanto ao assunto “sub juditio”, manteve-se sem a alteração que já caracteriza, por exemplo, a noção de acidente de trabalho no trajecto ou in itinere, como é o caso da legislação portuguesa (cfr. art. 9º, Lei nº 98/2009, de 4/09), em que o direito à indemnização por acidente de trabalho se alarga aos casos em que o trabalhador é vítima de um acidente de trânsito no seu percurso normal de ou para o local de trabalho. A legislação da RAEM ao manter ainda a limitação do conceito de acidente de trabalho aos casos em que o transporte é fornecido pelo empregador, afastou dele o acidente em que a viatura pertence ao sinistrado (Abílio Neto, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais anotado, 1ª ed., pág. 25, nota 3).
Com esta solução, abandonada, embora, nas mais modernas teorias e legislações, acentua-se a noção de uma regra caracterizada por uma ausência de autoridade do dador de trabalho durante as deslocações do trabalhador entre o local de trabalho e a sua residência, ficando a excepção unicamente destinada às situações em que o controlo dessa autoridade se exerce sempre que a entidade patronal fornece o meio de transporte (Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., pág. 50).
Posto isto, porque pensamos que o acidente em causa não pode ser tomado como de trabalho, logo não enquadrável no âmbito de previsão do art. 2º, nº2, al. 6), do CPT, somos a considerar que a competência para o julgamento e apuramento da responsabilidade da ré na reparação dos danos não pertence aos juízos laborais, mas aos juízos cíveis do Tribunal Judicial de Base.
Não é o simples facto de ter sido transferida para a recorrente seguradora a responsabilidade pelos danos ocorridos em acidente de viação em trajecto, mesmo que o meio de transporte não seja fornecido pelo empregador, que automaticamente é transformado em laboral o acidente que se vier a verificar. O que se passa é que, a partir de tal cláusula, fica a seguradora responsabilizada pela indemnização por dano sofridos pela vítima em tais circunstâncias, que de outro modo não poderia assumir. A referida cláusula nem cria uma nova definição de acidente laboral, nem define uma nova competência jurisdicional, cujos requisitos, como bem se sabe, têm que estar previstos na lei. Ela limita-se, como parece claro, a alargar a cobertura dos danos sofridos pelos trabalhadores em acidente do e para o local de trabalho.
Acolhemos, por conseguinte, a tese da aqui recorrente.
Não poderemos, no entanto, proceder à remessa oficiosa dos autos ao TJB cumprindo-se o art. 33º, nº1, do CPC, uma vez que a causa de pedir desenhada na petição inicial assentou toda ela num acidente de trabalho, cujos factos não correspondem inteiramente à causa de pedir própria do accionamento da Seguradora ao abrigo da referida cláusula.
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B – Da condenação em má fé da recorrente
O despacho em crise condenou a ora recorrente, por entender ter ela arguido uma excepção (incompetência) “…cuja falta de fundamento … não podia desconhecer (…) e, desse modo, ter litigado com má fé ( art. 385, n.º 2, als. a) e b) do Código de Processo Civil). Disse: “ A oposição absolutamente infundada por parte da Ré da incompetência do tribunal preenche os requisitos previstos na norma supra citada para que possamos concluir pela sua litigância de má fé, sendo certo que tal arguição completamente infundada, neste processo que tem natureza urgente, implicou um retardamento do seu processamento, o que consubstancia um entorpecimento da acção da justiça (cfr. art. 385.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Civil) ”.
Todavia, e sempre com o devido respeito por diferente opinião, os argumentos acima expostos levam-nos a sufragar a inexistência de motivo para a má fé invocada. A recorrente manifestou, simplesmente, a sua posição a respeito de uma questão que, ao contrário do que ajuizou o despacho impugnado, tem relevância e não é unívoca. Ou seja, defendeu a ocorrência de uma excepção dilatória cujo fundamento acabou por ser sancionado nesta própria instância de recurso, tal como atrás se decidiu.
Por isso, também quanto a esta matéria procede o recurso.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, quer quanto à excepção de incompetência, quer quanto à condenação por litigância de má fé e, em consequência:
a) Julga-se procedente a excepção de incompetência do juízo laboral para o julgamento do pleito; e
b) Nos termos dos arts. 30º, 230º, nº 1, al. a), 412º, nº2 e 413º do CPC, absolve-se a ré (ora recorrente) da instância.
Custas pelo autor.
TSI, 15 de Setembro de 2016
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
1 Não se altera a solução, nem mesmo a redacção dada ao art. 3º pela Lei nº 6/2015, uma vez que também aí se exige que o trabalhador seja o condutor de qualquer meio de transporte providenciado ou proporcionado pelo empregador, ou por outrem, em nome deste, para que possa ser acidente de trabalho.
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553/2016 20