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Processo n.º 163/2016
(Recurso Cível)
    
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 22/Setembro/2016


ASSUNTOS:

- Incumprimento definitivo de contrato promessa
- Interpelação admonitória
- Perda de interesse na celebração do contrato
- Resolução do contrato
    
    SUMÁRIO :
    Se, em 1993 a A. prometeu vender um parque de estacionamento correspondente a uma parte indivisa de uma dada fracção e, não obstante todos os esforços que comprovados vêm por banda da A., a Ré não se dispõe a celebrar a escritura, apesar das diversas interpelações que lhe foram feitas e do prazo final de 90 dias concedido para esse efeito, já em 2004; se a A. lhe comunica expressamente que findo esse prazo já não celebrará a escritura e que irá para tribunal resolver as coisas; não impondo a lei que na interpelação admonitória tenha de referir expressamente a expressão “resolução do contrato”; desse conjunto de factos resulta uma intenção resolutiva que se deve ter como interpelação final admonitória para o cumprimento, o que não deixará aliás, de configurar uma situação de perda de interesse da A. evidenciada não só pelo teor dessa comunicação, como pelo tempo entretanto decorrido, como a própria demanda judicial intentada, tal como advertira.

              O Relator,





















Processo n.º 163/2016
(Recurso Cível)
Data : 22/Setembro/2016

Recorrente : A Lda.

Recorrida : B


    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    1. A, LIMITADA, A. nos autos à margem referenciados, vem apresentar as suas
    ALEGAÇÕES DE RECURSO, inconformada que ficou com a douta sentença que julgou improcedente a acção em que peticionara a resolução de um contrato promessa sobre um parque de estacionamento, correspondente a uma dada parcela indivisível sobre determinada fracção, concluindo da seguinte forma:
    I. Por contrato escrito datado de 26.05.1993 a A. prometeu-vender e o R. prometeucomprar o lugar de estacionamento n.º XX, sito no 2.° andar, de prédio a construir, e a denominar por "C Garden", no Quarteirão C da Areia Preta, não havendo sido fixado no contrato prazo para a celebração do contrato de compra e venda, estipulando na cláusula 13 do contrato que, "o promitente-comprador deveria, conforme o que fosse estabelecido pela sociedade promitente-vendedora, assinar a escritura de compra e venda", ou seja, que o prazo para cumprimento da prestação de celebração do contrato definitivo seria fixado pela promitente-vendedora através de interpelação para o efeito ao promitente-comprador - conforme previsto no art. 777.°, n.º 1, do C.C. de 1966.
    II. Como nos termos do referido contrato, circunstâncias e usos é necessário fixar um prazo para o cumprimento e a determinação de tal prazo foi deixada ao credor, a sociedade A. que ficou obrigada à celebração do contrato de compra e venda com o comprador após o registo de constituição do regime de propriedade horizontal, interpelou o R. promitentecomprador por diversas vias - por carta, telefone e anúncios publicados em jornais de língua chinesa de grande circulação em Macau [no período de 21.06.1996 a 17.02.2004] -para, em determinados prazos, comparecer junto dos escritórios da sociedade para tratar das formalidades necessárias à celebração da escritura de compra e venda e registo da aquisição junto da Conservatória do Registo Predial de Macau, sob pena de ser responsabilizado pelos prejuízos decorrentes da mora, mas o R. não compareceu- se a obrigação não tiver prazo certo, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, nos termos do art. 794.°, n.ºs 1 e 2, al. a), do C.C. actual, e art. do Código Civil anterior
    III. A sociedade A. fixou um último prazo de 90 dias, a contar da publicação de anúncio [16.06.2004] no jornal de língua chinesa de maior circulação em Macau, o "D", e enviou carta registada em 01.07.2004 para o endereço de contacto indicado no contrato pelo promitente-comprador, o R., concedendo um último prazo de noventa dias a contar da data da emissão da carta [15.06.2004], para tratar de todos os procedimentos necessários à celebração da escritura de compra e venda, advertindo de que "decorrido tal prazo a sociedade recusar-se-à a celebrar a escritura".
    IV. A esta última e derradeira intimação ao cumprimento feita pela sociedade A. ao R. devem ser aplicadas as normas relevantes do Código Civil de 1999, por o art. 11.°, n.º 2, do mesmo Código Civil, que regula a aplicação da lei no tempo, prescrever que quando a lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor.
    V. Na última interpelação dirigida pela sociedade A. ao R. a sociedade A. foi clara ao declarar que lhe concedia um último prazo de 90 dias, a contar de 16.06.2004 (opta-se pela data do anúncio mais tardia que a data da emissão da carta), para contactar a sociedade para se tratar dos procedimentos da escritura e que, decorrido tal prazo a sociedade recusaria celebrar a escritura e trataria da questão junto do Tribunal de Macau - à interpretação desta declaração deve ser aplicado o disposto nos art.s 228.° e 230.° do C.C. - inexistindo dúvidas para qualquer destinatário da referida declaração que a sociedade A. fixou um prazo final, terminante, categórico, ou seja, um prazo peremptório, ao R. para cumprimento da prestação.
    VI. O R. confessou que a referida declaração continha o prazo final concedido pela sociedade A. para cumprimento da prestação - pois, notificado em pessoa, não contestou os factos alegados pela sociedade A., que assim, nos termos do princípio do cominatótio semi-pleno, consagrado no art. 405.°, n.º 1, do C.P.C. se consideraram confessados.
    VII. A nova redacção do art. 797.° do C.C., não exije que a interpelação feita pelo credor contenha a cominação de que decorrido o prazo final fixado para o cumprimento da prestação, sem que a mesma seja feita, considerará o devedor em incumprimento definitivo. O que tal normativo exara é que, estando o devedor em mora "se a prestação não for realizada dentro do prazo que, por interpelação, for razoávelmente fixado pelo credor", "considera-se para os efeitos constantes do artigo 790.º como não cumprida a obrigação" (art. 797.°, n.º 1, b), do C.C.).
    VIII. A cominação decorre, pois, da lei e não do facto de a mesma constar ou não exarada na interpelação- entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação do art. 797.°, n.º 1, b), do C.C.
    IX. Aliás o mesmo artigo confere, após a fixação deste último prazo ou prazo final para o cumprimento voluntário da obrigação pelo devedor, duas alternativas ao credor, como consta do n.º 3 do referido artigo:
    - resolver o contrato, nos termos do arte 790.º do C.C., por meio de declaração receptícia, i.e. devidamente comunicada pelo credor e recebida pelo devedor;
OU
    - optar por exigir a realização coactiva da prestação e a indemnização pela mora, se na interpelação fixando um último prazo para o cumprimento da prestação pelo devedor não houver, desde logo, declarado que optaria pela primeira das consequências (art. 797.º, n.º 3, "in fine")
    X. Dada a nova redacção do dispositivo legal que actualmente regula a matéria, não tem o credor na interpelação que fixe novo prazo ao credor em mora para voluntáriamente cumprir a sua obrigação, de declarar que, não sendo cumprida a prestação devida no referido prazo, como a doutrina e a jurisprudência entendiam necessário na vigência do art. 808.° do C.C. anterior, por tal consequência, decorrer directamente da lei. Também não tem de declarar que exercerá o direito, que lhe é conferido por lei, de resolver o contrato, pois se o fizer, não poderá optar pelo segundo direito que lhe é conferido por lei de requerer a execução coactiva da prestação e a indemnização pela mora - entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação do art. 797.°, n.º 1, b), do C.C.
    XI. Ainda que se entendesse aplicável o art. 808.° do C.C. anterior, ainda assim, na interpelação dirigida pela sociedade A. ao R., estão presentes os três elementos necessários à interpelação admonitória:
    a) a intimação para o cumprimento - solicitação da comparência do devedor nos escritórios da sociedade para tratar das formalidades necessárias à celebração da escritura;
    b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento- menção de que se fixava o prazo final de noventa dias a contar de 16.06.2004, para esse efeito;
    c) a admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo- a advertência de que se o devedor nada fizesse, decorrido tal prazo, não poderia exigir à sociedade a celebração da escritura, o que no entendimento de qualquer declaratário leigo em matéria de direito, não tem outro significado que não o de que devido ao incumprimento do devedor o credor se considerava dispensado de cumprir a contra prestação a que estava obrigado, e recorreria ao tribunal para pôr fim ao contrato.
    XII. As partes, a A. por acção e alegação dos factos como causa de pedir, a R., por opção de não impugnar de facto ou de direito, e o juiz titular do processo, no momento do saneamento e preparação para julgamento, consideraram que os factos alegados como causa de pedir eram suficientes e próprios para decidir da procedência do pedido formulado pela A. de resolução do contrato-promessa de compra e venda por incumprimento definitivo do devedor e, só na decisão, foram as partes confrontadas com a questão de que os factos alegados e provados, não são suficientes para julgar da procedência do pedido formulado pela A., o que constitui decisão-surpresa, e implica a nulidade da sentença por não ter sido observado o princípio do contraditório que impõe que o juiz tenha que dar oportunidade às partes para se pronunciarem sobre questão de direito nunca anteriormente considerada - da inobservância do disposto no art. 3.°, n.º 3, infine, do CPC, decorre a nulidade da sentença, nos termos do art. 571.°, n.º 1, al. d), do mesmo CPC.
    Nestes termos,
    Deve a sentença do tribunal "a quo", ser revogada e substituída por outra que dê acolhimento total ou parcial, às conclusões extractadas.


2. B, recorrida do processo referido, mais bem identificada nos autos, ao abrigo do art.º 613.º n.º 2 do Código de Processo Civil, contra-alega, em síntese:

    1. Por não se conformar com o acórdão do TJB (adiante designado por “acórdão recorrido”), a A, Limitada (adiante designada por “recorrente”) interpôs recurso.
    
    2. Todavia, a recorrida concorda completamente com o acórdão do TJB.
    
    3. Na conclusão da motivação, a recorrente indicou que estava preenchida a disposição do art.º 797.º n.º 1 alínea b) do Código Civil quando publicou anúncio no jornal XX em XX de XX de 20XX e enviou carta com aviso de recepção à recorrida em 1 de Julho de 2004, deste modo, nos termos do art.º 790.º, podia resolver o contrato-promessa celebrado com a recorrida.
    
    4. Contudo, a recorrida não concorda. Vistos todos os termos do contrato de alienação do edifício C Garden, doc. 2 da petição inicial, não foi fixado o prazo de cumprimento do contrato; pelo que, o contrato consiste em contrato de duração indeterminada.
    
    5. Dispõe o art.º 794.º n.º 1 do Código Civil que, “1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.”
    
    6. É certo que a recorrente publicou anúncios por várias vezes nos jornais de Hong Kong ou Macau para notificar os moradores de que podiam proceder aos trâmites de celebração de escritura pública de compra e venda.
    
    7. Mas, os anúncios publicados nos jornais só têm a natureza de publicidade, essa forma não constitui interpelação judicial prevista pela lei (como aviso, citação edital e carta com aviso de recepção ao devedor extrajudiciais, etc.), e mais, os anúncios têm como objecto os indeterminados “moradores das lojas, fracções e parques de estacionamento que não celebraram a escritura”, mas não só a recorrida, portanto, não podem ser tidos como prova legal e não produzem efeitos de interpelação.
    
    8. Deste modo, nos termos da lei de Macau, apenas a carta com aviso de recepção enviada pela recorrente em 1 de Julho de 2004 pode ser considerada como a interpelação extrajudicial feita à recorrida.
    
    9. Nos termos do art.º 794.º n.º 1 do Código Civil, a recorrida só fica constituída em mora se não cumprir o contrato após a data fixada na carta com aviso de recepção enviada em 1 de Julho de 2004.
    
    10. De acordo com os acórdãos n.º 2/2003 e n.º 44/2011 do TUI e o acórdão n.º 60/2000 do TSI, quer o art.º 808.º do Código Civil de 1966, quer o art.º 797.º do Código Civil vigente, quanto à perda do interesse do credor ou recusa de cumprimento, dispõem que a mora converte-se em incumprimento definitivo, ou pela perda do interesse do credor na prestação ou pela interpelação admonitória, pela qual o credor, em caso de mora, concede um prazo suplementar ao devedor, para que este cumpra, seguida da não realização da prestação. (sub. nosso)
    
    11. Como acima dito, a carta com aviso de recepção enviada pela recorrente à recorrida em 1 de Julho de 2004 só constitui a 1ª interpelação.
    
    12. Desde o envio da carta referida com aviso de recepção até à instauração do presente processo, a recorrente não fez interpelação admonitória à recorrida (devedora), nunca contactou a recorrida para notificar e fixar o prazo suplementar, de forma a permitir à recorrida celebrar com a recorrente a escritura pública de compra e venda dentro do prazo.
    
    13. Nos termos do art.º 752.º n.º 2 do Código Civil, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé; sem contactar a recorrida, a recorrente intentou directamente o presente processo contra a recorrida, pediu ao tribunal declarar o incumprimento do contrato pela recorrida e resolver o contrato, violando obviamente o princípio de boa fé.
    
    14. A recorrida nunca expressou que não queria cumprir o contrato, a recorrente não tem qualquer prova do não cumprimento do contrato pela recorrida após recebida a interpelação admonitória.
    
    15. A recorrida queria sempre cumprir o acordo com a recorrente e celebrar a escritura pública de compra e venda.
    
    16. De facto, sabendo que a recorrente intentou o presente processo, a recorrida contactou a recorrente e pagou, a pedido da recorrente, uma quantia de MOP$130,000 como a condição de desistência da acção e celebração da escritura de compra e venda, esperando resolver extrajudicialmente a questão de não ter celebrado a escritura.
    
    17. Todavia, pouco tempo depois do pagamento da quantia, um empregado da recorrente telefonou a filha da recorrida, dizendo que o processo iria ser acabado em curto tempo. Deste modo, a Sociedade decidiu não desistir e não celebrar a escritura de compra e venda com a recorrida, devolveu a quantia à filha da recorrida.
    
    18. A recorrida sentiu-se bastante surpreendida pela conduta da recorrente, como podia a recorrente, enquanto uma Sociedade grande (promotora de empreendimento), não manter a palavra, a conduta referida da recorrente violou obviamente o princípio de boa fé.
    
    19. Na conclusão da motivação, a recorrente indicou que estavam preenchidos os requisitos de interpelação admonitória quando publicou anúncio no jornal XX em XX de XX de 20XX e enviou carta com aviso de recepção à recorrida em 1 de Julho de 2004.
    
    20. Como acima dito, os anúncios publicados nos jornais só têm a natureza de publicidade, não constitui interpelação judicial prevista pela lei, e mais, os anúncios têm como objecto os “moradores que compraram o Edf. C Garden do lote C da Areia Preta, NAPE”, mas não só a recorrida, portanto, não podem ser tidos como prova legal e não produzem efeitos de interpelação.
    
    21. Além disso, a carta com aviso de recepção enviada pela recorrente à recorrida em 1 de Julho de 2004 só constitui a 1ª interpelação, mas não a interpelação admonitória, em caso de mora, seguida da não realização da prestação.
    
    22. Outrossim, a carta com aviso de recepção enviada pela recorrente à recorrida não satisfazem os requisitos de interpelação admonitória.
    
    23. Como dito no acórdão recorrido, “com efeito, para que haja interpelação admonitória, é necessária a fixação dum prazo certo ao promitente faltoso para o cumprimento da obrigação com a advertência de revogação do contrato caso não for cumprido dentro do prazo concedido.” É necessário satisfazer uns requisitos para constituir a interpelação admonitória.
    
    24. Contudo, visto o doc. 13 da petição inicial (carta com aviso de recepção), não é indicado expressamente que o incumprimento dentro do prazo conduz à consequência de resolução do contrato. (sub. nosso)
    
    25. Como dito no acórdão recorrido, “pois consta deles apenas a convocação da ré ou os moradores do edifício para tratar as formalidades da outorga da escritura sob pena de a autora se recusar de a fazer, nada se menciona a intimação clara da sua consequência, isto é, a resolução do contrato, assim, nem a carta nem o anúncio se pode ser considerada como interpelação admonitória.”
    
    26. Deste modo, a carta com aviso de recepção não pode ser vista como interpelação admonitória pela insatisfação dos requisitos.
    
    27. Na conclusão da motivação, a recorrente indicou que o acórdão recorrido violou o princípio do contraditório previsto no art.º 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, uma vez que a recorrente não tinha oportunidade de pronunciar-se sobre as questões jurídicas e, assim, o juiz não podia tomar decisão sobre essas questões. Pelo que, o acórdão recorrido violou o art.º 571.º n.º 1 alínea d) e foi nula.
    
    28. Porém, a recorrida não concorda. No caso, a recorrida foi citada pelo tribunal em 11 de Maio de 2015, não apresentou contestação dentro do prazo, estando preenchida a disposição de revelia absoluta prevista no art.º 404.º do Código de Processo Civil.
    
    29. Ao abrigo do art.º 405.º n.º 2 do Código de Processo Civil, em face da revelia absoluta (prazo de contestação) da recorrida (ré), o advogado da recorrente (autora) tinha um prazo de 10 dias para formular alegação escrita facultativa.
    
    30. Daqui se vê que, a recorrente tinha oportunidade para alegar sobre as questões jurídicas ou fácticas. Foi a escolha dela própria não alegar nada.
    
    31. Pelo exposto, o acórdão recorrido não violou o princípio do contraditório previsto no art.º 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, assim sendo, nem violou o art.º 571.º n.º 1 alínea d).
    
    Nestes termos e nos demais de direito que V. Exª doutamente suprirá, pede-se que seja julgado improcedente o recurso interposto pela recorrente e mantido o acórdão do TJB.


3. Foram colhidos os vistos legais.
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:
    - A sociedade A. é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada que adoptou a firma "A, Limitada", em português, "A有限公司", em chinês, e "A Company Limited", em inglês, registada sob o n.º 2XX2(SO) na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, que tem por objecto o investimento no sector imobiliário, a importação e exportação, a grosso ou a retalho, quer como agentes, quer como representantes exclusivos, de quaisquer bens ou produtos. (Artigo 1°)
    - Por contrato escrito datado de 26/05/1993 a sociedade A. prometeu vender e a R. B prometeu comprar o lugar de estacionamento n.º XX, sito no 2° andar, do prédio designado por Ed. C Garden, em construção, no Quarteirão C da Areia Preta, pelo preço de HKD$30.000,00 (trinta mil dólares de Hong Kong), equivalente a MOP$30.960,00 (trinta mil e novecentas e sessenta patacas), a pagar em duas prestações, uma, a título de sinal e adiantamento do preço, no acto de assinatura do contrato, de HKD$7.500,00 (sete mil e quinhentos dólares de Hong Kong) e outro do remanescente do preço, da quantia de HKD$22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos dólares de Hong Kong), a pagar no prazo de sete dias a contar da recepção da notificação para o efeito, enviada por carta registada pela sociedade A. ao comprador, após a emissão da licença de utilização. (Artigo 2°)
    - A obra de construção do prédio foi dada como concluída em 18/05/1993, foi vistoriada em 21/06/1993, e, consequentemente, foi emitida a Licença de Utilização n.° 123/93 de 21/06/1993 pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes. (Artigo 3°)
    - Após construção e inscrição da constituição do regime de propriedade horizontal, feita pela Ap. n.° 65 de 22/03/1995 na Conservatória do Registos Predial de Macau, o imóvel vendido ficou com a seguinte identificação :
    Fracção autónoma "A2", do 2° andar "A", para estacionamento, com entrada pelo n.º XX da R. XX e XX da Est. XX, do prédio, em regime de propriedade horizontal, denominado por "Bloco XX", n.ºs XX da Rua XX, XX da Av. do XX e XX da Estrada XX, inscrito sob o artigo n.º 7XXX5 (na DSF o Bloco tem o artigo 7XXX5E) na Matriz Predial do Concelho de Macau, descrito sob o n.º 2XXX6- V, a fls. XX7v do Livro XX na Conservatória do Registo Predial de Macau, com a constituição do regime de propriedade horizontal registada pela inscrição n.º 1XXX9 a fls. 1XX do Livro XX e construído em terreno concedido por arrendamento pela Região Administrativa Especial de Macau, pelo prazo de 25 anos a contar de 13/03/1986, já renovado por um novo período de 10 anos a contar de 13/03/2011, nos termos do contrato de concessão formalizado pela escritura de 13/03/1986, lavrada a fls. XX do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º XX da Direcção dos Serviços de Finanças, já revisto, e registado pela inscrição n.º 2XXX0 do Livro XX na referida conservatória. (Artigo 4°)
    - Porque na acima referenciada fracção existem 22 lugares de estacionamento, cada um dos mesmos representa uma quota indivisa de 1/22 (um vinte e dois avos) da fracção e, assim, têm sido vendidos. (Artigo 5°)
    - Após o registo da propriedade horizontal a sociedade A. interpelou o R. por carta para comparecer junto dos escritórios da sociedade para tratar das formalidades necessárias à celebração da escritura e registo. (Artigo 6°)
    - A Ré não compareceu. (Artigo 7°)
    - A sociedade A. tentou interpelar pelo telefone de contacto a R. para o mesmo efeito, mas não logrou qualquer contacto. (Artigo 8°)
    
    - A sociedade A. tentou interpelar todos os compradores das moradias, lojas e parques de estacionamento que ainda não haviam comparecido junto dos escritórios da sociedade para tratar dos procedimentos necessários à celebração da escritura e registo através de anúncios publicados em diversos jornais de Macau e Hong Kong. (Artigo 9°)
    - Havendo em 16/06/2004 publicado no jornal de língua chinesa de maior circulação em Macau, o "D", anúncio do seguinte teor: "A LIMITADA
    (Última notificação para celebração de escritura)
    Em conformidade com o anúncio publicado por esta sociedade em 17/02/2004 no "D" dirigido aos pequenos proprietários compradores do C Garden, sito no Quarteirão C dos Aterros da Areia Preta, notificando-os para celebrar a escritura. Para protecção dos seus interesses e para se celebrar o mais depressa possível as escrituras das lojas, moradias e parques de estacionamento daqueles que ainda o não fizeram, decide esta sociedade conceder-lhes um último prazo de 90 dias a contar da publicação da presente notificação, para que os pequenos proprietários contactem a sociedade o mais cedo possível para tratar dos procedimentos de registo para escritura, decorrido tal prazo a sociedade recusar-se-á a celebrar a escritura com tais proprietários e tratará da questão junto do tribunal de Macau.
    Esta sociedade quer transmitir a propriedade do C Garden aos pequenos proprietários e para protecção dos seus interesses devem ser tratados o mais cedo possível os procedimentos de registo para escritura. Esta sociedade notifica os pequenos proprietários que devem pagar a totalidade das contribuições devidas ao Governo para evitar a aplicação de multas. Caso contrário os pequenos proprietários terão que, eventualmente, assumir as suas responsabilidades.
    O endereço desta sociedade: Macau, Rua XX XX, Ed. XX, Bloco XX, r/c, Loja "XX".
Contacto telefónico: 7XXX35 Fax: 7XXX34
    Desenvolvedor: A Limitada" (Artigo 10°)
    
    - A sociedade A. enviou carta registada em 01/07/2004 para o endereço de contacto indicado no contrato pelo promitente-comprador, a R., concedendo um último prazo de noventa dias a contar da data da emissão da carta, 15/06/2004, para tratar de todos os procedimentos necessários à celebração da escritura de compra e venda, sob pena de "após o decurso de tal prazo a sociedade não proceder à transmissão, nem celebrar a escritura". (Artigo 11°)
    - A R. nunca contactou a sociedade A. (Artigo 12°)
    - A sociedade A. foi quem, desde 1994, pagou todos os impostos, rendas do terreno e prestações de administração de condomínio relativas ao lugar de estacionamento n.º XX do prédio descrito sob o n.º 2XXX6-V na Conservatória do Registo Predial de Macau. (Artigo 13°)
    - A R. não se dispôs a celebrar o contrato de compra e venda da quota indivisa representativa do lugar de estacionamento nos prazos fixados pela sociedade A. nas diversas interpelações publicadas em jornais de Macau para o efeito. (Artigo 14°)
    - E também o não fez na interpelação final que a sociedade A. publicou no jornal de língua chinesa "D", fixando o prazo de 90 dias a contar da publicação do referido anúncio no dia 16/06/2004 em que a sociedade A. avisou que decorrido o referido prazo de recusaria a celebrar a escritura de compra e venda e trataria da questão junto dos tribunais de Macau. (Artigo 15°)

    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa, no essencial, por saber se há lugar, à resolução do contrato.
    
    2. O caso
    Em 1993 a A. prometeu vender um parque de estacionamento correspondente a uma parte indivisa de uma dada fracção e, não obstante todos os esforços que comprovados vêm por banda da A., a Ré. não se dispõe a celebrar a escritura, apesar das interpelações que lhe foram feitas e do prazo final de 90 dias concedido para esse efeito, já em 2004, dizendo-lhe expressamente que findo esse prazo já não celebrará a escritura e que irá resolver as coisas para tribunal.
    Isto é, passados 23 anos do contrato, a Ré. continua a defender que que não existe uma interpelação admonitória, que não há fundamento para a resolução, afirmando pretender a manutenção do contrato, sem que se “chegue à frente” para o cumprir.
    
    Há aqui qualquer coisa que não joga bem e o Direito não pode pactuar ou consentir com situações que, no mínimo, soam a anómalas.
    
3. Ainda que colocada a jusante, vem posta a questão de uma pretensa nulidade da sentença, já que esta conteria uma decisão surpresa, por fundamento não equacionado pelas partes na sua expectativa de resolução da questão submetida a juízo.
Crê-se, contudo, que não se pode considerar estarmos perante uma decisão surpresa face à interpretação que a Senhora Juíza fez dos factos, pois do juízo operado na sentença prolatada o que acontece é que apenas resulta a interpretação de que eles não eram suficientes para suportar o pedido formulado.
O facto de se ter elaborado o saneador com determinados factos integrantes de uma das soluções plausíveis em direito para a resolução do conflito, daí não resulta que o o juiz fique vinculado a considerar a suficiência da matéria de facto. O saneador é elaborado com base nos factos fornecidos pelas partes e de acordo com as teses que as partes sustentam nos autos, não podendo o tribunal, exceptuados os casos excepcionais em que tal se prevê, suprir tal alegação.
Trata-se de matéria, cuja discussão perderá sentido, face ao que adiante se decidirá e que vai no sentido da suficiência da matéria de facto integrante da causa resolutiva que vem peticionada pela A.

4. Passamos, assim, à análise da questão fulcral.
Atentemos no que se exarou na douta sentença recorrida, que, para facilidade de entendimento, passamos a transcrever na sua fundamentação jurídica:
    “Com a presente acção, a Autora pretende que se vê resolvido do contrato celebrado com a Ré.
    Para fundamentar, alegou que foi celebrado um acordo com a Ré em que esta prometeu comprar e a Autora prometeu vender um lugar de estacionamento com o nº XX, correspondente a 1/22 avos da fracção autónoma "A2" do prédio descrito sob o n.º 2XXX6- V, referida na p.i., pelo preço de HKD30.000,00, não tendo porém esta cumprido o prometido outorgando a escritura pública de compra e venda, mesmo após as várias interpelações a ela dirigida pessoalmente, bem como através dos anúncios publicados nos jornais.
Natureza jurídica da relação jurídica estabelecida entre as partes
    A Autora pede a resolução do contrato celebrado com - a Ré, assim, para apreciar o presente litígio, urge saber qual é a natureza jurídica do acordo celebrado entre as partes.
    Tendo em conta o contrato em causa ter sido celebrado em 1990, a esse contrato é aplicável o regime regulado na vigência do C.C. antigo, face ao disposto do art. 6° e 16°, ambos do Decreto-Lei n.º 39/99/M de 3 de Agosto.
    Segundo o art. 410° do C.C. de 1966, "l. À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa. 2. Porém, a promessa relativa à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se consta de documento assinado pelos promitentes".
    "O contrato-promessa é convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato." (Prof. Antunes Varela, in Obrigações em Geral, Vol. 1. Pag. 312)
    Consoante os factos assentes supra referidos, ficaram provados que, em 26 de Maio de 1993, a Autora celebrou um acordo com a Ré, nos termos do qual esta prometeu comprar e aquela prometeu vender o lugar de estacionamento n.ºXX, sito no 2° andar do prédio designado por C Garden, em construção, no Quarteirão C da Areia Preta, pelo preço de HKD30.000,00.
    Decorre desse acordo que a Autora estava obrigada a emitir uma declaração de vontade de venda do bem prometido à Ré e reciprocamente esta estava também obrigada a emitir a declaração de vontade de compra, com o pagamento do preço acordado. Dúvidas não restam que estamos perante um contrato-promessa de compra e venda que tem por objecto mediato um imóvel.
    Dado que o contrato diz respeito ao imóvel, de acordo com o disposto do n.º 2 do artigo acima transcrito e do art. 875° do mesmo Código, o acordo é válido se for celebrado pela forma escrita.
    Face ao documento junto aos autos a fls. 19 a 22, o contrato invocado pela Autora satisfaz a forma exigida por lei.

Incumprimento do contrato por parte da Ré
    Debruçamos então se a Ré deixaram de cumprir a sua promessa.
    Segundo o preceito do art. 777° do C.C., "Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela."
    Preceitua-se o disposto do n.º 2 do art. 804° do C.C. 66, "O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido."
    Por outro lado, prevê-se o n.º 1 do art. 805º que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, salvo no caso de obrigação com prazo certo, da obrigação proveniente do facto ilícito ou do impedimento da interpelação pelo próprio devedor.
    "Não havendo prazo certo para a celebração da escritura de compra e venda, só há mora dos promitentes, após estes terem sido interpelados, nos termos do art. 805°, n.º 1 do CC" (cfr. Acórdão do S.T.J. de 06 de Março de 1986, in BMJ 355, 352)
    No caso em apreço, não foi invocado que as partes tinham estipulado prazo para a outorga da escritura pública. Assim, na falta de estipulação do prazo, deve o credor proceder a interpelação do devedor para cumprir a sua obrigação, quando for possível a outorga da escritura, visto que o objecto do contrato é parte integrante do edifício em curso de construção, em conformidade com o preceito acima transcrito.
    Alega a Autora que interpelou, por várias vezes e através dos meios diferentes, à Ré para contactar com ela com vista a outorga da escritura pública, mas esta nunca contactou com a Autora, considerando, assim, que houve incumprimento definitivo por esta que justificará a resolução do contrato.
    Está assente que após o registo da propriedade horizontal, a Autora chegou a interpelar a Ré por carta, para tratar as formalidades necessárias à celebração da escritura e registo, mas a Ré não compareceu. Está provado igualmente que a Autora publicou um anúncio no jornal de língua chinesa para convidar todos os condomínios para contactar a sociedade a fim de tratar as formalidades para proceder à escritura, sob pena de se recusar a celebrar a escritura pública. E enviou mais uma carta registada em 01/07/2004, com conteúdo semelhante, à Ré, para que estabelecesse contacto com a Autora, de todos esses actos não lograva qualquer resposta por parte da Ré.
    Desses factos concretos considerados assentes podemos extrair-se a conclusão de que a Autora tem cumprido o seu dever em interpelar a Ré para fazer vencimento da sua obrigação.
    Assim, tendo feito a interpelação, não tendo a contraparte cumpriu a obrigação de outorgar a escritura pública a que se refere o contrato-promessa, a Ré fica em mora no cumprimento.
    De acordo com o disposto do art. 798° do C.C. de 1966, "Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua."
    Nos autos, a Ré não se mostra provar o facto que ilide a presunção de que o incumprimento não procede da culpa sua.
    Há que concluir que a Ré incorreu em mora por não ter cumprido a obrigação. Isto é em relação à mora.
***
    Resolução do contrato
    Verificada está que a Ré se encontra em mora no cumprimento, urge ainda aquilatar se assiste à Autora o direito de resolução do contrato.
    Dispõe-se o n.º 1 do art. 432° do CC 66, "A resolução do contrato só é admitida fundado na lei ou em convenção",
    Segundo as jurisprudências e doutrina dominante, a resolução do contrato-promessa por via de lei, só pode ocorrer perante um incumprimento definitivo.
    Segundo o acórdão do Tribunal da Segunda Instância, no processo 1245, de 24 de Fevereiro de 2000, "O incumprimento definitivo do contrato-promessa encontra-se pela verificação de situações (declaração antecipada de não cumprir, termo essencial, cláusula resolutiva expressa, impossibilidade da prestação e perda de interesse na prestação que a induzam."
    Em termos de direito comparado, decidiu-se no Acórdão de 13 de Julho de 2004, do STJ, in CJ II, p. 145, o seguinte:
    “De qualquer modo, a resolução do contrato fundada na lei pressupõe que uma das partes falte culposamente ao seu cumprimento e a outra o tenha cumprido ou diligenciado pelo seu cumprimento.
    Assim, pode incluir-se na falta de cumprimento ou inexecução obrigacional lato sensu, para além da impossibilidade de cumprimento; o incumprimento definitivo propriamente dito, o incumprimento definitivo oriundo da conversão da situação de mora e a recusa categórica de cumprir."
    "A mora do devedor só dá ao credor o direito a resolver o contrato, por incumprimento definitivo, no caso de perda do seu interesse na prestação, ou no caso de esta não poder ser realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor." (cfr. Acórdão do T.R.P. de 19 de Janeiro de 1993, in CJ, Ano XVIII, Tomo I, 203)
    De acordo com o preceituado no n.º 1 do art. 808º do CC66, o credor apenas tem direito a resolver o contrato em consequência da mora do devedor, ou ser perder aquele o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.
    Da análise acima referida se resulta que a Ré está em mora na outorga da escritura pública, cabe averiguar se a mora se tinha sido convertido em incumprimento definitivo.
    Em relação à perda do interesse na prestação, essa é apreciada objectivamente de acordo do n.º 1 do art. 808º do C.C. de 1966.
    Dos factos considerados provados se deduza que o contrato prometido não foi celebrado apesar de a Ré ter já sido interpelada pessoalmente pela Autora por carta, e genericamente por anúncios publicados no jornal de língua chinesa. Na verdade, desde o registo da propriedade horizontal até à data da acção, já tem volvido de cerca de vinte anos, o que é um prazo bastante longo. Por outro lado, está provado que durante esses anos, foi a Autora quem suportou os impostos, rendas de terreno e as despesas de condóminos. Mas, mesmo assim, não se configura suficiente para permitir concluir a perda do interesse por parte da Autora na prestação, considerando que não foi alegado menos provado que não foi cumprida por parte da Ré a obrigação de pagamento de preço nem que o suporte das despesas inerente ao imóvel pela Autora lhe causasse perturbações extraordinárias ou intoleráveis. Assim, na falta de outros elementos fácticos, não podemos ter por verificada a perda do interesse por parte da Autora em consequência da mora na celebração do contrato definitivo da Ré.
    No que se concerne à interpelação admonitória, nada consta dos autos que a Autora lançou mão a esse meio para converter a mora da Ré em incumprimento definitivo.
    Com efeito, para que haja interpelação admonitória, é necessária a fixação dum prazo certo ao promitente faltoso para o cumprimento da obrigação com a advertência de revogação do contrato caso não for cumprido dentro do prazo concedido.
    Sobre o requisito da interpelação admonitória, decidiu-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em 20 de Maio de 2010, processo 1847/05, "Ora, tem-se como pacifico o entendimento que, para produzir os efeitos de incumprimento e resolução estabelecida na norma, a interpelação admonitória, deve, além de fixar um prazo razoável para o cumprimento, informar com clareza que a inexecução da prestação dentro desse prazo terá como consequência ter-se a mesma como definitivamente cumprida, isto é, deve conter uma intimação clara e inequívoca pra cumprir sob pena de ser ter como verificado o incumprimento definitivo."
    No caso vertente, provado ficou que desde o registo da propriedade horizontal, a Autora dirigiu cartas à Ré, sendo última ocorrida em 01/07/2004, e publicou anúncios no jornal, estes dirigidos, em geral, aos moradores do edifício, para que a Ré ou os moradores contactar com a Autora e tratar os procedimentos necessários à outorga da escritura pública.
    Todavia, considerando o teor da carta de 01/07/2004 e dos anúncios feitos pela Autora, nenhum deles pode ser entendido como interpelação admonitória.
    Pois consta deles apenas a convocação da Ré ou os moradores do edifício para tratar as formalidades da outorga da escritura pública sob pena de a Autora se recusar de a fazer, nada se menciona a intimação clara da sua consequência, isto é, a resolução do contrato, assim, nem a carta nem o anúncio se pode ser considerada como interpelação admonitória.
    Em suma, não se pode considerar convolada a mora no incumprimento definitivo por inverificação da perda do interesse nem da interpelação admonitória.
    Assim, não se ocorre, nesse caso, qualquer situação de incumprimento definitivo propriamente dito.
    Dest'arte, não assiste à Autora o direito de resolução do contrato, assim, outro destino não poderá dar senão julgar improcedente o pedido da Autora.”
    
5. Digamos que tudo vai bem até à análise do fundamento para a resolução do contrato e da interpelação admonitória.
O que se pergunta é o que mais poderia fazer a A., depois das diversas interpelações, ao dar-lhe um prazo de certo de 90 dias, que se tem de ter por prazo final, dado texto e o contexto dessa comunicação? Não é verdade que findo esse prazo deixará de celebrar a escritura e irá para os tribunais para resolver a questão?
É certo que não comunica à Ré que findo esse prazo, se ele não se aprontar a celebrar a escritura, não refere expressamente que considera “resolvido” o contrato. Mas precisaria de o dizer nesses termos?
A resolução contratual é um conceito jurídico e compreende-se que não tivesse que ser utilizado “qua tale”. Por outro lado, essa é uma fórmula que a lei não impõe de modo algum.
Estamos em crer que o aviso final que foi feito à Ré configura uma verdadeira interpelação admonitória; mas mesmo que assim se não entenda, o tempo de 23 anos volvidos, a indefinição e inércia em que o R. parece apostado, a ameaça do recurso ao tribunal, a concretização desta via por banda do A., o aviso de que depois deste prazo já não mais estaria interessado em cumprir o contrato promessa, tudo vai no sentido de configurar uma situação de perda de interesse que o A. poderia ter na prestação.
Assim, seja pela al. b), seja pela alínea a) do art. 797º, n.º 1 do CPC, afigura-se-nos haver lugar à resolução do contrato, tal como peticionada foi.

    Tudo visto, decidir-se-á no sentido da procedência do recurso.
    
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, e, revogando a decisão recorrida, declara-se resolvido o contrato promessa referido por incumprimento definitivo da R.
    Custas pela R., ora recorrida.
Macau, 22 de Setembro de 2016,

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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho


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