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Processo nº 528/2016 Data: 22.09.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “fuga à responsabilidade”.
Erro notório.
In dubio pro reo.



SUMÁRIO

1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.

2. O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição.

O relator,
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José Maria Dias Azedo

Processo nº 528/2016
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenada pela prática de 1 crime de “fuga à responsabilidade”, p. e p. pelo art. 89° e 94°, n.° 2 da Lei n.° 3/2007, na pena de 45 dias de multa, à taxa de MOP$240.00 por dia, perfazendo a multa global de MOP$10.800,00 ou 30 dias de prisão subsidiária, e na pena acessória de inibição de condução por 6 meses; (cfr., fls. 74 a 78 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a arguida recorreu.

Motivou para, em conclusões (e em síntese), imputar apenas à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 109 a 127).

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Respondendo, pugna o Ministério Público pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 132 a 134).

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Admitido o recurso, e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Submetida a julgamento em processo comum perante tribunal singular, viria a ora recorrente A a ser condenada na pena principal de 45 dias de multa à taxa diária de MOP $240.00, convertível em 30 dias de prisão subsidiária, e na pena acessória de 6 meses de inibição de condução.
Inconformada, vem recorrer da sentença condenatória, à qual imputa o vício de erro notório na apreciação da prova, requerendo a renovação da prova e pedindo para ser absolvida a final.
Tal como observa o Ministério Público em primeira instância, nas judiciosas considerações que tece em resposta à motivação do recurso, o caso não configura erro notório na apreciação da prova.
No entendimento que a jurisprudência tem sedimentado sobre tal vício, expresso, v.g., no acórdão de 4 de Março de 2015, do Tribunal de Última Instância, exarado no Processo n.° 9/2015, não se está perante erro na apreciação da prova e, menos ainda, perante o erro notório que a norma do artigo 400.°, n.° 2, alínea c), do Código do Processo Penal, convoca.
E, na ausência do vício, tão pouco se impõe equacionar a necessidade de renovação da prova.
O que se nos afigura – e dizemo-lo com a ressalva de melhor juízo e melhor leitura e compreensão do original da douta sentença – é que, com base na materialidade dada como provada e na apreciação crítica das provas, não resulta, acima de qualquer dúvida razoável, ter tido a arguida, ora recorrente, a percepção de que produziu danos na viatura que se encontrava parqueada no lugar de estacionamento imediatamente atrás daquele em que aparcou a sua própria viatura. Ou seja, do texto da própria decisão parece transparecer que não ficou suficientemente demonstrado e esclarecido, acima de qualquer dúvida razoável, que a recorrente se apercebeu de ter incorrido em responsabilidade, por via de choque entre o veículo que manobrava e aqueloutro que estava estacionado imediatamente atrás.
A solução adoptada pela decisão recorrida, com aparente recurso à figura do dolo eventual, não consegue disfarçar a dúvida que perpassa ao longo do texto decisório sobre aquela percepção e também não se mostra muito compatível com a postura da recorrente, que saiu do seu veículo, antes de terminar a operação de estacionamento, para se assegurar da posição relativa das duas viaturas.
Ora, configurando a referida percepção matéria de facto, que integra o tipo legal, a dúvida sobre a realidade desse facto constitutivo do crime tinha que ser valorada a favor da arguida, adentro do princípio in dubio pro reo. O que conduziria à absolvição, por falta de preenchimento de todos os elementos do tipo.
Ao decidir-se pela condenação, em circunstâncias que, sempre salvo melhor juízo e mais adequada leitura e compreensão do original da douta sentença, se nos afiguram traduzirem uma situação de dúvida, incorreu a douta sentença em erro de julgamento por preterição do referido princípio in dubio pro reo.
Neste entendimento, e embora por razões diversas das que vêm convocadas na motivação do recurso, propendemos para a revogação da decisão e para a absolvição da recorrente”; (cfr., fls. 172 a 173).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Deu o T.J.B. como provada a seguinte matéria de facto:

“No meio-dia de 17 de Junho de 2015, pelas 12h30, a arguida A conduziu o automóvel ligeiro ML-58-XX, no qual estava a filha menor dela B. Quando estacionava o carro no parquímetro n.º 73465 aproximadamente em frente ao “Mannings” da Rua de Coimbra da Taipa, ao marchar para trás, o carro dela deu um encontrão com o para-choque da parte frontal do automóvel ligeiro MQ-62-XX que estava estacionado atrás. Isso causou marcas de desfiguração.
Depois de a arguida estacionar o carro, ela saiu do carro para ver a situação de danificação do automóvel ligeiro MQ-62-XX. Mas tarde, foi-se embora a pé com B. Pela 1 hora do meio-dia do mesmo dia, a arguida voltou ao local e foi-se embora de carro.
Um passageiro que estava de pé perto da porta do "Mannings" da Rua de Coimbra da Taipa à espera de amigo testemunhou a ocorrência do caso.
Estando livre, voluntária, e consciente, mesmo sabendo que provavelmente tinha causado acidente de viação e que devia ter ficado no local à espera do agente policial para o tratamento, a arguida negligenciou a situação em causa, e deixou estar a ocorrência do resultado de que ela tinha causado marcas de desfiguração ao para-choque da parte da frente do automóvel ligeiro MQ-62-XX. Ela conduziu o carro e deixou o local de forma dolosa, com o objectivo de fugir às responsabilidades civis possivelmente causadas pelo acidente.
A arguida sabia que o acto dela era proibido e punido pela legislação de Macau”; (cfr., fls. 74-v a 75 e 153 a 154).

Do direito

3. Vem a arguida recorrer da sentença que a condenou pela prática de 1 crime de “fuga à responsabilidade”, p. e p. pelo art. 89° e 94°, n.° 2 da Lei n.° 3/2007, na pena de 45 dias de multa, à taxa de MOP$240.00 por dia, perfazendo a multa global de MOP$10.800,00 ou 30 dias de prisão subsidiária, e na inibição de condução por 6 meses.

Diz que a decisão padece de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua absolvição.

Vejamos.

Sobre o vício de “erro notório” tem este T.S.I. consignado que:

“O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 03.03.2016, Proc. n.° 82/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 14.07.2016, Proc. n.° 340/2016).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 17.03.2016, Proc. n.° 101/2016, de 26.05.2016, Proc. n.° 998/2015 e de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016).

E, sendo de se manter o que se expôs sobre o “vício” pela recorrente imputado à decisão recorrida, somos de opinião que o mesmo não existe.

Com efeito, o Tribunal a quo apreciou a prova em conformidade com o “princípio da livre apreciação” consagrado no art. 114° do C.P.P.M., não se vislumbrando onde, como, ou em que termos tenha violado qualquer regra sobre o valor das provas legais ou tarifadas, regra de experiência ou legis artis.

Em essência, eis a questão: a arguida nega que embateu – ou que se apercebeu do embate na viatura do ofendido, e, assim, alega que não teve qualquer intenção de se ausentar do local para evitar responsabilidades.

Apreciando (livremente) a prova produzida, o Tribunal a quo deu como provada a “colisão”, dando igualmente como provado que a arguida também admitiu a possibilidade de ao estacionar o seu veículo ter encostado (batido) no veículo que se encontrava atrás, que de tal colisão poderiam ter resultado danos no dito veículo, mas que, mesmo assim, alheou-se da situação, ausentando-se do local para não ter que responder pelos eventuais danos que poderia ter causado.

Apresentando-se-nos o assim decidido em perfeita compatibilidade e razoabilidade com os elementos probatórios que apreciou, motivos não há para se dar por verificado o assacado “erro notório”.

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Pelo Exmo. Representante do Ministério Público vem porém alegada a (eventual) violação do “princípio in dubio pro reo”.

Vejamos.

“O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.02.2016, Proc. n.° 94/2016, de 28.04.2016, Proc. n.° 239/2016 e de 02.06.2016, Proc. n.° 1062/2015).

Por sua vez, e como entende a doutrina, segundo o princípio “in dubio pro reo” «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido»; (cfr., Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 215).

Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo - quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.

Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615).

Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do S.T.J. de 29.04.2003, Proc. n.° 3566/03, in “www.dgsi.pt”).

Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias; (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarães de 09.05.2005, Proc. n.° 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.

Aqui chegados, e cremos nós, clarificado o sentido e alcance do princípio “in dubio pro reo”, que dizer?

Ponderando na factualidade dada como provada e na fundamentação pelo Tribunal a quo exposta, cremos que não se incorreu em violação do princípio in dubio pro reo.

Com efeito, a decisão é clara em dar como provado que o “veículo da arguida encostou e colidiu com o veículo do ofendido”.

E em relação ao facto de a arguida saber, (ter consciência), que embateu no veículo do ofendido, a decisão dá-nos conta que a “arguida sabia que com a manobra que efectuou podia ter embatido no veículo do ofendido e que poderia ter causado danos, mas que, mesmo assim, alheou-se da situação e decidiu ausentar-se do local para fugir às responsabilidades”.

No fundo – face às circunstâncias da ocorrência, (nomeadamente, o facto de a arguida ter ido ver se o seu veículo tinha colidido com o do ofendido) – provado ficou que a arguida “admitiu que poderia ter embatido e causado danos no veículo do ofendido”, e que, mesmo assim, alheou-se de tal possibilidade, decidindo, ausentar-se.

E, a ser assim, apresentando-se-nos o assim decidido em total compatibilidade com os elementos probatórios invocados, não nos parece que, (em momento algum), tenha o Tribunal a quo ficado com “dúvidas” acerca da culpabilidade da arguida, e que, mesmo assim, tenha decidido em seu desfavor.

Admite-se que a situação tem alguma “particularidade”, percebendo-se a dificuldade do Tribunal a quo na exposição da sua convicção.

Porém, importa ter em conta que o Tribunal a quo deu claramente como provado que a arguida “admitiu a possibilidade da colisão dos veículos e da existência de danos daí resultantes, e que mesmo assim, decidiu ausentar-se para não responder pelos mesmos”.

É também certo que provado não ficou que a arguida se “certificou” de tal colisão e consequentes danos, contudo, e como é evidente, o Tribunal (a quo) só pode decidir a matéria de facto de acordo com os elementos probatórios existentes e a sua convicção, e, no caso, o que decidiu, não se nos apresenta em violação do aludido princípio in dubio pro reo.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Em face do exposto, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará a recorrente a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 22 de Setembro de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 528/2016 Pág. 18

Proc. 528/2016 Pág. 19