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Processo nº 759/2016 Data: 03.11.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Acidente de viação.
Indemnização.
Danos não patrimoniais.
Incapacidade parcial permanente.



SUMÁRIO

1. O “dano” é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
Pode revestir “a destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea” (dano real) ou ser “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado” (dano patrimonial).

2. O “dano corporal”, lesivo da saúde, (“dano biológico”), está na origem de outros danos, (“danos – consequência”), designadamente, aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho.

3. Este dano por “perda de capacidade” ou “incapacidade”, (e que tem assim a natureza de “dano patrimonial”), é distinto e autónomo do “dano não patrimonial” que se reconduz à dor, desgosto e sofrimento de uma pessoa que se sente fisicamente diminuída para toda a vida.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 759/2016
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão datado de 15.07.2016 do Colectivo do T.J.B. decidiu-se:
- condenar A (A), arguido com os sinais dos autos, como autor da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 3 e 138°, al. b) do C.P.M., na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses; e,
- condenar a demandada civil “B S.A.R.L.”, (B有限公司), a pagar ao demandante C (C), a quantia total de MOP$1.192.787,89 e juros; (cfr., fls. 165 a 172-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a demandada seguradora recorreu para – em conclusões e em síntese – imputar ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”, e, subsidiariamente, “excesso de quantum na indemnização por danos não patrimoniais”; (cfr., fls. 189 a 199).

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Respondeu o demandante pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 203 a 205-v).

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Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 166-v a 168, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem a demandada seguradora recorrer do segmento decisório ínsito no Acórdão prolatado pelo T.J.B. com o qual foi a mesma a condenada a pagar ao demandante a quantia total de MOP$1.192.787,89 e juros.

–– Considerando e ponderando nas questões colocadas, e não existindo outras de conhecimento oficioso, comecemos pelo assacado “erro notório na apreciação da prova”.

Vejamos.

De forma firme e repetida tem este T.S.I. considerado que: “O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.07.2016, Proc. n.° 340/2016, de 22.09.2016, Proc. n.° 562/2016 e de 29.09.2016, Proc. n.° 465/2016).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma
convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 16.06.2016, Proc. n.° 254/2016, de 22.09.2016, Proc. n.° 528/2016 e de 29.09.2016, Proc. n.° 630/2016).

No caso, a questão coloca-se em relação a um “facto dado como provado”, e, em concreto, quanto à (provada) “incapacidade parcial permanente” do ofendido do acidente dos autos.

Em síntese, diz a ora recorrente que não se devia – ou podia – dar como “provado” que, em consequência do acidente de viação dos autos, ficou o ofendido a padecer de uma “incapacidade permanente (parcial) de 24%”.

Porém, sem prejuízo do muito respeito por entendimento em sentido diverso, não tem razão.

A decisão de se dar tal factualidade como provada não viola nenhuma regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, estando clara e perfeitamente suportada por documentação existente nos autos, (cfr., v.g., fls. 86), tendo também o Tribunal a quo fundamentado, adequadamente, a sua decisão que, assim, nesta parte, nenhum reparo merece; (cfr., fls. 168 a 168-v).

Mais não se mostrando de consignar sobre o ponto em questão, avancemos.

–– Quanto à “indemnização por danos não patrimoniais”.

Fixou o Colectivo a quo o total de MOP$1.192.787,89, sendo, MOP$336.843.89 a título de indemnização pelos “danos patrimoniais” do ofendido, e a restante parcela de MOP$850.000,00, a título de indemnização pelos seus “danos não patrimoniais”.

Entende a recorrente que quantum o fixado a título de indemnização pelos “danos não patrimoniais”, (MOP$850.000,00), se apresenta inflacionado, pedindo a sua redução para montante não superior a MOP$500.000,00.

Vejamos.

Tem este T.S.I. entendido que a indemnização por “danos não patrimoniais” que “tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer.
Visa, pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu”, (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 12.05.2016, Proc. n.° 326/2016 e de 02.06.2016, Proc. n.° 384/2016), sendo também de considerar que em matérias como as em questão, inadequados são “montantes simbólicos ou miserabilistas”, (vd., M. Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, II, Direito das Obrigações, III, pág. 755, onde se afirma que “há que perder a timidez quanto às cifras…”), não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”, (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.04.2016, Proc. n.° 238/2016 e 12.05.2016, Proc. n.° 326/2016), exigindo-se aos tribunais, com apelo a critérios de equidade, um permanente esforço de aperfeiçoamento atentas as circunstâncias (individuais) do caso.

Na verdade, a reparação dos “danos não patrimoniais” não visa uma “reparação directa” destes, pois que estes – “danos não patrimoniais” – são insusceptíveis de serem contabilizados em dinheiro, sendo pois que com o seu ressarcimento se visa tão só viabilizar um lenitivo ao lesado, (já que é impossível tirar-lhe o mal causado).

Trata-se de “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar aqueles danos não patrimoniais, compensando as dores, desgostos e contrariedades com o prazer derivado da satisfação das referidas necessidades.

Visa-se, no fundo, proporcionar à(s) pessoa(s) lesada(s) uma satisfação que, em certa medida possa contrabalançar o dano, devendo constituir verdadeiramente uma “possibilidade compensatória”, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 14.04.2016, Proc. n.° 238/2016, de 12.05.2016, Proc. n.° 326/2016 e de 02.06.2016, Proc. n.° 384/2016).

Porém, e como sabido é, o C.C.M., não enumera os “danos não patrimoniais”, confiando ao Tribunal o encargo de os apreciar no quadro das várias situações concretas e atento o estatuído nos seus art°s 489° e 487°; (em recente Ac. da Rel. de Guimarães de 19.02.2015, Proc. n.° 41/13, in “www.dgsi.pt”, consignou-se que “são de ponderar circunstâncias várias, como a natureza e grau das lesões, suas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas eventualmente sofridas e o grau de risco inerente, os internamentos e a sua duração, o quantum doloris, o dano estético, o período de doença, situação anterior e posterior da vítima em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspectivas para o futuro, entre outras…”).

Nos temos do n.° 3 do art. 489° do dito C.C.M.: “o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; (…)”.

Por sua vez, prescreve o art. 487° deste mesmo Código que: “quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.

In casu, como se deixou relatado, pelos “danos não patrimoniais” do ofendido fixou o Tribunal a quo o quantum de MOP$850.000,00, pedindo a recorrente a sua redução para quantia inferior a MOP$500.000,00.

Quid iuris?

Desde já, há que atentar que a “incapacidade parcial permanente” (de 24%) que (comprovadamente) sofre o ofendido é passível de ser considerado um “dano autónomo” dos ditos “danos não patrimoniais”.

Como se decidiu no douto Acórdão do Vdo T.U.I. de 25.04.2007, Proc. n.° 20/2007, “A perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial ou total é indemnizável, ainda que o lesado mantenha o mesmo salário que auferia antes da lesão”, consignando-se aí igualmente que “No cômputo da indemnização por perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial, o tribunal deve atender ao disposto no n.º 5 do art. 560.º do Código Civil, bem como recorrer à equidade, nos termos do n.º 6 do art. 560.º do mesmo Código”.

Mostrando-se de acompanhar o assim entendido, afigura-se-nos porém adequado umas breves considerações sobre a questão.

O “dano” é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.

Pode revestir “a destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea” (dano real) ou ser “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado” (dano patrimonial); (vd., A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 598).

Dentro do “dano patrimonial”, cabem e são indemnizáveis, o dano “emergente” – o prejuízo causado nos bens ou nos direitos existentes na titularidade do lesado – e os “lucros cessantes” – os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito e a que ainda não tinha direito na data da lesão.

Nos termos do n.° 2 do art. 558° do C.C.M., na fixação da indemnização, pode o tribunal atender ainda aos “danos futuros”, desde que previsíveis.

Dispõe também o art. 556° do mesmo C.C.M. – onde se consagra o “princípio da restauração natural” – que a indemnização deve reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

Não sendo possível essa “reconstituição natural” – como não o é em casos como o dos autos, em que não pode devolver-se ao lesado a capacidade e integridade física que tinha antes do acidente – a indemnização deve ser fixada em dinheiro, (art. 560°, n.° 1), e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos, (art. 560°, n.° 5).

Ora, o “dano corporal”, lesivo da saúde, (“dano biológico”), está na origem de outros danos, (“danos – consequência”), designadamente, aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho.

Como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.° 99/12, “O dano biológico consubstancia uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, sendo que, estando em causa a incapacidade para o trabalho, o mesmo existe haja ou não perda efectiva de proventos laborais”, afirmando aí mesmo que: “(…) havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afetação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo.
E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização”; (in “www.dgsi.pt”).

Porém, e como atrás se deixou consignado, este dano por “perda de capacidade” ou “incapacidade”, (e que tem assim a natureza de “dano patrimonial”), é distinto e autónomo do “dano não patrimonial” que se reconduz à dor, desgosto e sofrimento de uma pessoa que se sente fisicamente diminuída para toda a vida; (sobre esta “distinção” e “autonomia”, vd., v.g., os Acs. do S.T.J. de 03.03.2016, Proc. n.° 4931/11; de 07.04.2016, Proc. n.° 237/13; e da Rel. do Porto de 27.09.2016, Proc. n.° 2007/13, e de 11.10.2016, Proc. n.° 805/15).

Aqui chegados, que dizer?

Pois bem, no seu pedido de indemnização pediu o demandante ora recorrido:
- MOP$342.787,89 – por “danos patrimoniais”, em consequência da perda de salário referente aos 368 dias em que esteve impossibilitado de trabalhar; e,
- MOP$1.000.000,00 – a título de “danos não patrimoniais”, e onde, para justificar o seu pedido, invocou também a referida “incapacidade parcial permanente de 24%”; (cfr., fls. 60 a 62-v).

Considerando que o Tribunal a quo decidiu tendo em atenção (e em harmonia com) o assim peticionado – fixando MOP$336.843,89 a título de “danos patrimoniais”, (que agora não estão em causa porque não impugnados), e MOP$850.000,00 a título de “danos não patrimoniais” – e sem prejuízo do que se atrás se consignou em relação à “natureza” (autónoma) da “incapacidade (parcial) permanente”, afigura-se-nos que, em face da factualidade dada como provada, em especial, no “grau e natureza da incapacidade parcial permanente” que sofre o ora recorrido, afectando-lhe, essencialmente, a coluna, dificultando a sua movimentação e postura, e não olvidando que é uma pessoa com 50 anos de idade, e assim, com cerca de 15 anos de vida activa pela frente, adequado se nos apresenta a quantia de MOP$500.000,00 como quantum indemnizatório em relação à mesma.

Por sua vez, considerando as dores, angústias e inconvenientes que sofreu o ora recorrido, que ficou internado no hospital por 65 dias, tendo ficado em recuperação e impossibilitado de trabalhar por 368 dias, e não se olvidando também os inconvenientes que terá que suportar em virtude da sua “incapacidade parcial permanente”, afigura-se-nos que excessiva não é a restante quantia de MOP$350.000,00 que se mantém como indemnização pelos seus “danos não patrimoniais”.

Assim, ainda que com outro fundamento, e considerando-se também que com o ora decidido não se vai para além do peticionado, nega-se provimento ao presente recurso.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente.

Macau, aos 03 de Novembro de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 759/2016 Pág. 20

Proc. 759/2016 Pág. 19