打印全文
Proc. nº 451/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 03 de Novembro de 2016
Descritores:
-Divórcio
-Base instrutória
-Resposta exorbitante

SUMÁRIO:

I. Não é suficiente para dizer que a ré tem mantido uma relação de namoro extraconjugal se uma das testemunhas a viu abraçada e ser beijada por outro homem, se estes mesmos factos não foram alegados, nem objecto de contraditório.

II. Quando o artigo da base instrutória é formulado a partir da matéria da causa de pedir, e esta estiver caracterizada de um modo conclusivo (por exemplo, uma relação de namoro), não pode o tribunal, ao responder-lhe, desdobrar o quesito em factos concretos, se estes não foram articulados pelo autor, sob pena de se estar perante uma resposta exorbitante.




Proc. nº 451/2016

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, casado, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º 7…….(4), residente em Macau, na ……, instaurou Acção de Divórcio Litigioso, contra a sua mulher, B, casada, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º 1……(2), residente em Macau, na …….
Na oportunidade foi a acção julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
*
Contra tal sentença insurge-se o autor da acção no presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1.ª Foi o presente recurso interposto da, aliás, douta Sentença que julgou improcedente a acção por não provada;
2.ª Ora, salvo, o muito devido respeito, entende o ora Recorrente que existe o vício da deficiência da fundamentação da decisão da matéria de facto;
3.ª Desde logo, porque o douto tribunal a quo deu como não provados todos os factos quesitados fundamentando que “A convicção do tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos e no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória (…).
Apesar das testemunhas do Autor terem declarado que chegaram a ver a Ré a andar de mãos dadas e a ser abraçada ou beijada por um outro homem, o tribunal não considerou essas declarações suficientes para provar a existência de relações extra-conjugais nos termos indicados pelo Autor.
Com efeito, a 1.ª testemunha apenas viu a Ré andar de mãos dadas com um outro homem mas não conseguiu afirmar se este homem era efetivamente o namorado da Ré como alega o Autor, ou seja, que os mesmos mantinham uma relação extra-conjugal.
A 2.ª testemunha viu a Ré a ser abraçada e beijada por um outro homem mas acrescentou que o Autor lhe dissera que a Ré tinha dito que pretendia manter o casamento e a relação extra-conjugal. No entanto, o tribunal guardou sérias dúvidas quanto à autenticidade das declarações da testemunha visto ser fora do comum uma mulher expressar sem qualquer reserva uma pretensão tão contrária à moralidade dominante na sociedade de Macau.
Uma vez que as restantes provas não permitem dissipar as dúvidas acima referidas, o tribunal não considerou provada a matéria alegada pelo Autor”;
4.ª Entende o ora Recorrente que não se demonstrou todo o processo lógico de análise crítica dos factos, por que razão mereceram falta de credibilidade e acolhimento pelo Tribunal a quo, por que razão não foram considerados credíveis, o que é, com o muito devido respeito, a mesma coisa que nada dizer, pelo que resulta, assim, numa formulação vaga e genérica;
5.ª Desta forma, inexiste o substracto que deveria alicerçar a decisão sobre a matéria de facto e que pudesse conduzir ao convencimento da justeza da mesma;
6.ª Atendendo ao teor das declarações prestadas pelas testemunhas e constante da fundamentação da resposta aos quesitos deveriam todos os factos serem considerados “provados”;
7.ª O corolário lógico dos elementos citados supra e conjugados entre si, isto é, o teor dos depoimentos prestados e estes conjugados com as regras da experiência e da lógica determinam que podia o douto Tribunal a quo concluir com absoluta segurança que “a Ré mantinha uma relação extra-conjugal com um outro homem”;
8.ª É, pois manifesto o erro na apreciação da prova, devendo ser alterada a matéria de facto;
9.ª Perante a deficiência e contradição da decisão em causa e dado estarem no processo todos os elementos probatórios que serviram de base à decisão deve o douto Tribunal de Segunda Instância proceder-se à correcção da mesma introduzindo na matéria de facto as modificações correspondentes;
10.ª Com efeito, é manifesta a obscuridade e contradição da decisão;
11.ª A fundamentação exposta recorreu a lugares comuns da formação da convicção do julgador que não representam, no nosso modesto entendimento, fundamentação específica e suficiente para nenhum caso concreto, constituindo somente uma descrição e não uma explanação individualizada do que se extraiu de cada um dos meios de prova e uma explicação específica dos motivos pelos quais se entendeu atribuir lhes capacidade de demonstração do facto e do grau de demonstração do facto que se lhes atribuiu, que é, no fundo, aquilo que constitui a fundamentação de uma decisão da matéria de facto;
12.ª Dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil que “A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa (…)”.
13.a Razão pela qual estão reunidos todos os pressupostos para que seja decretado o divórcio em causa.
Termos em que, e no sentido em que supra se concluiu, deverá ser dado provimento ao presente recurso, decidindo por nova Sentença na qual seja decretado o divórcio com base na violação do dever de fidelidade, assim se fazendo, JUSTIÇA».
*
A ré não respondeu ao recurso.
*
Cumpre decidir.
***
II – Os factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
- O A. e a R. são marido e mulher, tendo contraído casamento, na República Popular da China, em 20 de Dezembro de 2002. (Cfr. certidão de casamento junta como Doc. n.º 1 da p.i.) (alínea A) dos factos assentes).
- Do casamento, o Autor e a Ré tiveram um filho, C, nascido a 27 de Novembro de 2004. (Cfr. certidão de nascimento, junta como Doc. n.º 2 da p.i.) (alínea B) dos factos assentes).
***
III – O Direito
1 - Vem o presente recurso jurisdicional dirigido contra o modo como o tribunal “a quo” fez o julgamento da matéria de facto. Em sua opinião, a fundamentação da decisão da matéria de facto é deficiente, por não conter a demonstração do processo lógico de análise crítica dos factos e, bem assim, errada.
Vejamos, então.
*
2 - O autor da acção acha, em primeiro lugar, que a motivação do julgamento da matéria de facto foi deficiente.
A nossa opinião é: Não foi e nem sequer o ora recorrente chamou no momento próprio a atenção do julgador para essa pretensa deficiência.
O tribunal mostrou o iter do seu pensamento, explanando a razão para dar por não provada a matéria fáctica da base instrutória. Basta ler o conteúdo do acórdão de fls. 69vº/70 para se perceber isso.
O recorrente pode não concordar com a motivação empregada, mas isso é já coisa completamente diferente.
*
3 - E estará errado o julgamento em causa ao ponto de ser exigida a consagração de diferente matéria de facto provada?
Quanto a isto, impõem-se-nos duas observações.
Por um lado, deveria o recorrente ter especificado quais os pontos da matéria de facto, com referência aos artigos da B.I., que entende terem sido mal julgados (art. 599º, nº1, al. a), do CPC), e quais os meios probatórios que deveriam ter levado o tribunal “a quo” a proferir decisão diversa (art. 599º, nº1, al. b), do CPC).
Por outro lado, e uma vez que os depoimentos foram gravados, deveria o recorrente ter indicado as passagens da gravação em que se funda para sustentar o erro de julgamento invocado, tal como lho impõe o art. 599º, nº2, do CPC.
Neste sentido, portanto, o recurso não poderia proceder.
*
4 - E teremos nós matéria suficientemente adquirida nos autos para oficiosamente modificar a decisão de facto, ao abrigo do art. 629º do CPC?
Não deixamos, convém dizê-lo, de estranhar que a fundamentação do julgamento da matéria de facto tenha, no que respeita à 2ª testemunha inquirida, relevado somente a segunda parte do depoimento.
Repare-se na motivação: “A 2ª testemunha viu a Ré a ser abraçada ou beijada por um outro homem mas acrescentou que o Autor lhe dissera que a Ré tinha dito que pretendia manter o casamento e a relação extra-conjugal. No entanto, o tribunal guardou sérias dúvidas quanto à autenticidade das declarações da testemunha visto ser fora do comum uma mulher expressar sem qualquer reserva uma pretensão contrária à moralidade dominante na sociedade de Macau”.
Ora, a partir desta transcrição, vê-se que o tribunal prestou mais atenção, valorando-o melhor, ao testemunho indirecto centrado na alegada declaração da ré (que teria sido transmitida ao autor e por este veiculada à testemunha) de que pretendia “manter o casamento e [ao mesmo tempo] a relação extra-conjugal” do que no testemunho directo da mesma pessoa de que “viu a ré a ser abraçada ou beijada por um outro homem”.
De qualquer maneira, também é caso para salientar a circunstância de o autor não ter mostrado qualquer inconformismo com a decisão sobre a matéria de facto no momento em que ela lhe foi dada a conhecer, tal como resulta da acta de fls. 72 dos autos (tradução a fls. 19 e 20), apesar de o poder ter feito, conforme o prevê o art. 556º, nº5, do CPC.
Pois bem. Pese embora a estranheza que manifestámos, não temos dados mais profundos que nos permitam reverter o sentido da decisão.
Com efeito, não obstante o facto de, segundo a motivação da decisão de facto, uma testemunha ter visto a ré de mão dada em outro homem e outra delas a ter visto abraçada por outro homem e por ele a ser beijada, isso, mesmo que fosse dado como provado, não chegaria para revelar que este era seu namorado.
Não podemos, aliás, deixar de chamar a atenção para o modo conclusivo como o quesito foi formulado. Em nossa opinião faria sentido que o autor tivesse alegado factos que pudessem revelar, se provados, uma relação extraconjugal, fosse ela de namoro (que habitualmente implica uma ligação afectiva mais ou menos duradoura) ou outra, qualquer delas ofensiva dos deveres conjugais de respeito e de fidelidade. Por exemplo, se os factos que as testemunhas referiram tivessem realmente existido e sido articulados pelo autor como fazendo parte da causa de pedir, estamos convencidos que a sua prova estaria mais do que obtida e, dessa maneira, demonstrada a causa de pedir com a consequente e inevitável decretação do pretendido divórcio.
Mas, desdobrar a resposta ao quesito 2º, ao ponto de nela incluir os factos referidos na motivação acima transcrita, está fora de questão, uma vez que não foram sequer articulados pelo autor, nem sobre eles se verificou a observância do princípio do contraditório. O contrário, se fosse feito, constituiria uma resposta exorbitante e, por isso, só poderia ser dada como não escrita (sobre o assunto, ver Viriato Lima, in Manual de Direito Processual Civil, 2ª edição, pág. 504 e doutrina e jurisprudência ali citadas).
Aliás, mesmo que porventura tal fosse feito, nem por isso poderíamos automaticamente conduzir o caso para a violação dos deveres de respeito e fidelidade por parte da ré, em virtude de tampouco se saber se o beijo referido pela 2ª testemunha terá sido dado na boca ou, simplesmente, na face.
Sendo assim, estamos em sintonia com a decisão recorrida, pelo que o recurso jurisdicional não pode triunfar.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.
TSI, 03 de Novembro de 2016
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong








451/2016 1