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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Ho Chio Meng, arguido nos presentes autos, veio requerer a recusa do Sr. Presidente do Tribunal de Última Instância, Dr. Sam Hou Fai, para intervenção, como juiz membro do Tribunal Colectivo, no julgamento nos presentes autos, invocando que:
- No seu despacho proferido na fase de inquérito que autorizou o acesso à declaração de rendimentos e interesses patrimoniais apresentada pelo arguido e pela sua cônjuge, o Sr. Presidente do Tribunal de Última Instância considerou que existiam fortes indícios da prática pelo arguido dos crimes imputados nos presentes autos.
- Na providência de habeas corpus requerida pelo arguido, o Tribunal Colectivo, em que interveio também o Sr. Presidente do Tribunal de Última Instância, proferiu o acórdão em que manifestou a sua concordância com o entendimento do Juiz deste tribunal que tinha aplicado ao arguido a prisão preventiva, que por sua vez achou suficientemente indiciada a prática pelo arguido de vários crimes.
- Daí que o Sr. Presidente do Tribunal de Última Instância se pronunciou, por duas vezes, sobre a conduta do arguido, formando assim previamente convicção sobre o mérito da causa dos presentes autos, pelo que não deve intervir no julgamento.
O juiz visado pronunciou-se sobre a questão, entendendo que o requerimento do arguido é manifestamente infundado.

2. Fundamentação
Nos termos do n.º 1 do art.º 32.º do CPP, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
Como se sabe, a recusa é um expediente que serve para impedir um juiz de intervir em determinado processo, desde que haja um motivo sério e grave que possa gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
O juiz exerce as suas funções com independência e imparcialidade, de modo a garantir a tomada de decisões justas e objectivas. A lei estabelece os mecanismos de impedimentos, escusas e recusas para os casos em que se verifica, entre o juiz e o processo concreto que cabe a este julgar, determinada relação especial passível de afectar o julgamento justo, a fim de afastar o juiz visado da intervenção do respectivo processo, garantindo, deste modo, que as decisões judiciais sejam livres da influência destas relações especiais e salvaguardando a confiança da comunidade depositada no julgamento independente dos órgãos judiciais.
“O fim do processo (de suspeição) consiste em determinar, não se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade, mas se existe perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade.”1
Para considerar verificadas as situações de suspeita, é necessário existir os motivos sérios e graves, adequados a suscitar a desconfiança da imparcialidade do juiz.
Alega o arguido que o juiz visado se pronunciou por duas vezes sobre a sua conduta, considerando que se indicia fortemente/suficientemente a prática pelo arguido dos crimes.
Não se afigura que tal circunstância constitui, por si só, “motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade” do juiz visado.
Na realidade, a pronúncia sobre a existência de fortes indícios sobre a prática do crime nunca é considerada pelo legislador como motivo de impedimento do juiz, por não se encontrar no elenco das situações taxativamente previstas nos art.ºs 28.º e 29.º do CPP.
Nos termos do art.º 29.º do CPP, nenhum juiz pode intervir no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido, o que significa que, mesmo que tenha aplicado ao arguido a medida de coação de prisão preventiva por haver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos, o juiz não fica impedido de intervir no julgamento do mesmo arguido.
Se o legislador não considera a pronúncia de fortes indícios de prática de crime como causa de impedimento do juiz, afigura-se-nos que tal circunstância também não constitui motivo suficiente para que seja concedida a recusa requerida pelo arguido, uma vez que os mecanismos de impedimentos, escusas e recusas têm o mesmo fundamento e a mesma razão de ser, de evitar a afectação de imparcialidade do juiz e a desconfiança sobre tal imparcialidade.
Acresce que, numa jurisdição como a RAEM, com uma pequena população e um reduzido número de juízes, sempre seria de elementar bom senso não fazer uma interpretação demasiadamente extensiva das normas sobre impedimento de juízes, sob pena de, em muitas situações, não haver juízes que possam julgar os casos.
Concluindo, não se nos afigura existente motivo sério e grave que possa gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz visado, nem se mostram violados (ou irão ser violados) os direitos do arguido, pelo que se deve recusar, desde logo, o requerimento apresentado pelo arguido, por ser manifestamente infundado.

3. Decisão
Face ao exposto, acordam em recusar o requerimento apresentado pelo arguido, por ser manifestamente infundado.
Nos termos do n.º 6 do art.º 34.º do CPP, fica o arguido condenado ao pagamento de uma soma de 10 UC.
Custas do incidente pelo arguido, com a taxa de justiça fixada em 8 UC.

Macau, 6 de Dezembro de 2016

Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Viriato Manuel Pinheiro de Lima – Lai Kin Hong



1 Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra Editora, 1974, p. 319.
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Processo n.º 60/2015 5