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Proc. nº 428/2016
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 01 de Dezembro de 2016
Reclamante: A Limitada

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I. Relatório 
A Limitada, melhor identificada nos autos, vem arguir a nulidade do acórdão de 15/09/2016, nos termos e fundamentos seguintes:
   “...
   A LIMITADA, Recorrente nos autos à margem identificados, notificado do acórdão de 15/09/2016, vem arguir - para o caso de se entender que o mesmo não admite recurso ordinário - a nulidade referida na alínea d), 1.º período, do n.º 1 do artigo 571.° do CPC, o que faz, nos termos e com os fundamentos seguintes:
   O Tribunal circunscreveu o objecto do recurso à questão de se saber se se devia ou não suspender a instância do Proc. n.º CV3-14-0052-CAO.
   Sucede que nas conclusões A, B e C e O a T das alegações de recurso, a Recorrente também levantou a questão da falta de interesse em agir resultante da eficácia da deliberação renovatória.
   Trata-se de uma questão que não ficou prejudicada pela solução dada à questão da suspensão da instância e cujo conhecimento a devia ter precedido por respeitar a um pressuposto processual, cuja falta, a verificarse, integra uma excepção dilatória insuprível, conduzindo à absolvição da instância.
   Tal questão acabou por não ser conhecida, mas, salvo melhor opinião, nada obsta a que seja agora suprida essa omissão, o que se requer, com aslegais consequências.
   V. Ex.as, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça!...”.
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II. Fundamentação
A nulidade de sentença/acórdão prevista na al. d) do nº 1 do artº 571º do CPCM traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito no nº 2 do artº 563º do mesmo Código, nos termos do qual “O juíz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Repare-se, a lei fala de “questões” e não de “razões” ou “argumentos”, daí que é pacífico, quer ao nível da doutrina1, quer da jurisprudência2, que só há lugar à nulidade da sentença/acórdão por omissão da pronúncia quando o tribunal deixar de se pronunciar sobre questões suscitadas e não sobre simples argumentos e opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes.
No caso em apreço, não corresponde à verdade de que a ora Reclamante “levantou a questão da falta de interesse em agir resultante da eficácia da deliberação renovatória” na sua motivação do recurso e este Tribunal omitiu de se pronunciar.
Na realidade, a ora Reclamante formulou, na sua motivação do recurso, as seguintes conclusões:
A. Da falta de interesse em agir - Face à renovação em 8/05/2015 das deliberações tomadas na assembleia geral de 30/06/2014, ainda que a presente acção procedesse, o Autor ficaria na mesma situação em que já se encontrava antes da sua instauração, voltando tudo ao «status quo ante».
B. Isto por a razão de ser deste pressuposto processual ser precisamente a de evitar ... que sejam impostos custos ao demandado e aos tribunais numa situação em que não se fundamenta o recurso aos órgãos jurisdicionais (Cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, in "O interesse Processual na Acção Declarativa", Edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pág. 5).
C. Daí a falta de interesse em agir do Autor, sem o qual a presente instância não pode prosseguir.
D. Ciente disso, o Autor optou pela impugnação autónoma nos autos CV2-15-0050-CAO da deliberação renovatária das deliberações objecto da presente acção (fls. 248-262).
E. Sucede que enquanto não for decidida a acção dos autos CV2-15-0050-CAO não há como saber se a deliberação que os sócios da Ré qualificaram como renovatória é ou não apta à produção dos efeitos a que se destina.
F. Na jurisprudência comparada atente-se, pelo seu interesse para o caso concreto, no Ac. da RP, de 12/05/2008, Relator: ANA PAULA LOBO, Processo 0836512, segundo o qual: "Impugnada também a deliberação dita renovatória, com fundamento em não ser renovatória e enfermar dos mesmos vícios da primeira, só depois de decidida esta acção se poderá avaliar da repercussão a ter na acção instaurada para anulação da primeira deliberação adoptada sobre a mesma matéria."
G. E no Acórdão da RL, de 03/03/2009, Relator: ROSA RIBEIRA COELHO, Processo 1008/07.0TYLSB-7, segundo o qual: havendo lugar à impugnação da nova deliberação em processo judicial autónomo, não pode deixar de suspender-se a instância no primeiro processo até que neste último seja proferida decisão final. (Cfr. Ac. RL, de 03/03/2009, Relator: ROSA RIBEIRA COELHO, proferido no processo 1008/07.0TYLSB-7).
H. Na doutrina, por exemplo, escreve ANA MARGARIDA ANDRADE E CASTRO DOS SANTOS na sua tese "As Deliberações Renovatórias Inválidas", se forem propostas duas acções contra as duas deliberações, haverá suspensão da instância da primeira acção proposta, enquanto a segunda não for decidida (cfr. arts. 276.º, c) e 279.º CPC). Tal é devido ao facto de, só depois de se aferir se a segunda pode valer como renovatória, que a primeira acção pode prosseguir, e esta é uma questão relativa ao mérito da causa só apreciável a final.
I. Acrescentando, Se a deliberação renovatória for tomada no decurso do processo judicial para acção de anulação, quer por convite do Tribunal, quer por iniciativa da sociedade Ré, deverá haver suspensão da instância da primeira acção, enquanto a segunda não for decidida, de modo a aferir se efectivamente a deliberação subsequente renova ou não a primeira (cfr. arts. 276.º c) e 279.º do CPC).
J. Também assim, ao abrigo do direito anterior, VASCO DA GAMA LOBO XAVIER, "Anulação de Deliberação e deliberações Conexas", Atlântida Editora., págs. 537 a 541.
K. Isto porque a deliberação renovatória implica a revogação ex nunc, uma vez que os efeitos da deliberação antecedente deixam de se poder produzir para o futuro, dando lugar aos da própria deliberação renovatória.
L. No mesmo sentido, CARNEIRO DA FRADA, em "Renovação de Deliberações Sociais", onde se escreveu que "Através da renovação, os sócios refazem a deliberação que antes haviam tomado, concluindo sobre o seu objecto uma nova deliberação destinada a absorver o conteúdo daquela e a tomar o lugar dela", deste modo afastando "os inconvenientes que ao desenvolvimento regular da sua actividade põe a existência de uma deliberação viciada ou, ao menos, a incerteza da sua validade" (nota de rodapé 16 das presentes alegações).
M. Por isso, na sequência dos requerimentos de fls. 224 e ss e de fls. 293, não poderia a instância prosseguir sem que se pudesse aferir, em função do desfecho do processo CV2-15-0050-CAO, se se mantinha ou não a necessidade de tutela judiciária que levara o Autor a propor a presente acção.
N. Tal solução de suspender a instância era assim, a que, na perspectiva da Ré, deveria ter sido tomada pelo Tribunal a quo.
O. Da eficácia da deliberação renovatória - Pretende-se com o processo CV2-15-0050-CAO a anulação da deliberação renovatória tomada na assembleia geral de 8/05/2015.
P. Isto por o Autor achar que ela é anulável.
Q. Sucede que a deliberação anulável, deixando de produzir os seus efeitos caso seja anulada por sentença judicial - que tem assim efeitos constitutivos - produz até esse momento, ressalvados os casos de suspensão, os efeitos jurídicos a que tendia - Cf., quanto ao regime jurídico da anulabilidade das deliberações, Prof. PINTO FURTADO, "Deliberações de Sociedades Comerciais", págs. 706-707.
R. Logo, sendo meramente anulável, a deliberação renovatória, produzindo todos os efeitos que lhe são próprios até vir a ser eventualmente anulada, determinará, por falta de interesse em agir, a absolvição da instância da sociedade na acção pendente. (MANUEL CARNEIRO DA FRADA, notas de rodapés 16 e 17 destas alegações).
S. Ora, é justamente o que acontece in casu, sendo evidente que a mera impugnação da deliberação renovatória "anulável" empreendida pelo Autor nos autos CV2-15-0050-CAO, não suspendeu a sua eficácia, sendo que, enquanto não for anulada (se alguma vez o for), produz todos efeitos jurídicos a que se destinava.
T. E se a deliberação renovatória surtiu, desde o início, todos os efeitos a que se destinava, afigura-se que com a renovação das primitivas deliberações a presente acção de impugnação ficou sem ter o que impugnar, pelo que tinha de ser suspensa até a decisão da acção dos autos CV2-15-0050-CAO.
U. Da relação de prejudicialidade - O que nos leva à questão de saber se estão ou não verificados os pressupostos de que depende a suspensão da instância, na presente acção, até à decisão da acção, que, sob o na CV2-15-0050-CAO, corre os seus termos pelo 2.º juízo cível do Tribunal Judicial de Base.
V. Ora, a decisão da presente acção exige e pressupõe que as deliberações tomadas na assembleia geral de 30/06/2014 não tenham sido validamente renovadas pela deliberação tomada na assembleia geral 8/05/2015.
W. E é precisamente a questão da validade da deliberação renovatória tomada na assembleia geral 8/05/2015 que se discute na acção dos CV2-15-0050-CAO prejudicial.
X. Sendo que uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda (A. DOS REIS, "Comentário ao Código de Processo Civil", vol. 3.°- 206 e Ac. RP, de 25.6.1969: JR, 15.º-670).
Y. É justamente essa a situação do caso sub iudice, uma vez que o sentido da decisão acerca da alegada anulabilidade da deliberação renovatória na acção dos autos CV2-15-0050-CAO influencia o sentido e constitui premissa da decisão que venha a ser tomada na presente acção, dado que se não for anulada a deliberação renovatória das deliberações que foram impugnadas no presente processo, desaparece o seu objecto e com ele a carência de tutela judiciária que levou o Autor a intentá-lo.
Z. Logo, existe entre a acção dos autos CV2-15-0050-CAO e a presente acção uma incontornável conexão, na medida em que a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda.
AA. E, para constatar esse facto basta comparar a deliberação renovatória (acta de fls. 226 e ss.) objecto do processo CV2-15-0050-CAO com as primitivas deliberações (acta de fls. 49 e ss.) objecto dos presentes autos.
BB. Isto porque, de facto, aquilo que, no essencial, está em causa em ambas as acções é a anulabilidade das deliberações aprovação das contas anuais, do relatório da administração e da proposta de aplicação de resultados do exercício de 2013, sendo que a improceder a acção de anulação proposta pelo Autor nos autos CV2-15-0050-CAO, o objecto da presente acção deixa de existir.
CC. Assim, tendo a deliberação renovatória de fls. 225 e ss. tomada na assembleia geral de 8/05/2015 substituído as deliberações anteriores tomadas na assembleia geral de 30/06/2014 (ou não se sabendo se tal substituição ocorreu ou não), não é possível conhecer do objecto da presente acção sem que a acção dos autos CV2-15-0050-CAO se venha a mostrar procedente.
DD. A decisão da presente acção pressupõe, por isso, a anulação da deliberação renovatória consignada na acta de fls. fls. 226 e ss., sem o que a instância não pode, em rigor, prosseguir.
EE. Logo, não é possível apreciar o objecto processual da presente acção sem que se pressuponha a procedência do pedido formulado no processo CV2-15-0050-CAO.
FF. E, sendo assim é necessariamente de concluir pela existência do nexo de prejudicialidade descrito no disposto no artigo 223°/1, primeira parte, do CPC, entre ambas as acções, sendo de julgar procedente o recurso.
GG. Do motivo justificado - Por outro lado, ainda que, por hipótese, o Tribunal a quo entendesse não existir prejudicialidade, sempre ocorreria motivo justificado para a suspensão da presente acção até à decisão da acção dos autos CV2-15-0050-CAO, de forma a evitar o risco de incompatibilidade de fundo entre as decisões a proferir em ambas as acções, que poderia decorrer do prosseguimento simultâneo de ambos os processos.
HH. Isto, porque pode muito bem acontecer que a presente acção proceda, e a acção de impugnação da deliberação renovatória não proceda. Neste caso, verificar-se-á uma escusada incompatibilidade de fundo entre julgados.
II. É que o critério orientador decisivo para uma correcta utilização da faculdade contemplada no 223.°/1, última parte, do CPC é o de prevenir, através do decretamento da suspensão da instância, a eventualidade de a mesma questão poder vir a ser objecto de decisões incoerentes, quiçá mesmo contraditórias entre si, como sucederá, por exemplo, se a acção de anulação da deliberação renovatória for julgada improcedente e a presente acção procedente.
JJ. Assim, tendo em conta que nos autos CV2-15-0050-CAO existe a possibilidade de improcedência da acção de anulação da deliberação renovatória que substituiu as deliberações tomadas na assembleia geral de 30/06/2014 e, no caso da presente acção, existe a possibilidade de o tribunal vir a concluir pela invalidade dessas mesmas deliberações numa data em que elas já não existem no mundo do Direito por força da eficácia plena e imediata do deliberado em 8/05/2015, é real o perigo de julgados incoerentes ou contraditórios entre si.
KK. Assim, a decisão recorrida, ao consentir que ambas as acções corram em simultâneo, não observou o disposto no artigo 223.°/1 do CPC, pelo que, salvo melhor entendimento, deverá ser revogada.
Da transcrição supra resulta de forma clara que a ora Reclamante, não obstante ter referido “a falta de interesse de agir por parte da Autora” na sua motivação do recurso, nunca a configurou como uma questão autónoma no sentido de constituir uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância, razão pela qual nunca pediu, tanto na jurisdição do 1º grau como do 2º grau, a sua absolvição da instância.
A referência da “falta de interesse de agir” serviu apenas como um dos fundamentos da sua tese defendida no recurso interposto, que é justamente a necessidade/obrigatoriedade da suspensão da instância.
Aliás, a posição da Reclamante na presente arguição da nulidade é incoerente com a assumida quer no Tribunal a quo, quer nesta instância. Pois, se entendesse a Autora não ter o interesse de agir, o que implicaria a sua absolvição da instância, porquê requereu ao Tribunal a quo, em vez da absolvição da instância, a suspensão da instância? Indeferido o seu pedido, porquê recorreu para este Tribunal para defender a necessidade da suspensão da instância?
A Reclamante não pode ignorar que nunca formulou a questão da “falta de interesse de agir” como uma questão autónoma da excepção dilatória no recurso jurisdicional interposto, pelo que ao arguir a nulidade do acórdão com fundamento na omissão da pronúncia dessa questão, está agir de má fé nos termos da al. a) do nº 2 do artº 385º do CPCM, ou seja, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.
Nesta conformidade, a Reclamante não deixa de ser condenada como litigante de má fé nos termos acima expostos.
Afigura-se que a mandatária da Reclamante, que é a mesma que subscreveu a motivação do recurso, tenha responsabilidade pessoal na condenação da litigância de má fé da sua mandante, já que como advogada e autora das peças processuais em referência, tem obrigação de saber que a arguição da nulidade por si subscrita consiste numa pretensão sem qualquer fundamento, quer de direito, quer de facto, e traduz numa actuação processualmente reprovável.
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III. Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar improcedente a arguição da nulidade, bem como condenar a Reclamante como litigante de má fé nos termos da al. a) do nº 2 do artº 385º do CPCM na multa de 10UC de taxa de justiça.
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Custas do incidente pela Reclamante, com 8UC taxa de justiça.
Notifique e registe.
Transitado em julgado, remeta certidão do presente aresto, do acórdão de 15/09/2016, da motivação do recurso e do requerimento da arguição da nulidade ao Conselho Superior da Advocacia para efeitos tidos por convenientes.
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RAEM, aos 01 de Dezembro de 2016.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
1 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, quer de Alberto dos Reis, quer de Abílio Neto.

2 Acs. do TSI de 01/03/2012 e de 31/05/2012, Procs. nºs 867/2010 e 167/2012, respectivamente, bem como, no Direito Comparado, Acs. do STJ, de 11/01/2000 e de 28/03/2000, in Sumários 37º-19 e 39º-26, respectivamente.
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428/2016
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