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Processo n.º 58/2016
Conflito de competência
Requerente: A
Data do Acórdão: 17 de Janeiro de 2017
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Recurso extraordinário de revisão
- Competência do tribunal para o seu conhecimento

SUMÁRIO
1. Nos termos do art.º 658.º do Código de Processo Civil, o recurso de revisão é interposto no tribunal onde se encontrar o processo em que foi proferida a decisão a rever, mas é dirigido ao tribunal que a proferiu, ou seja, o tribunal competente para conhecer do recurso de revisão é o tribunal que proferiu a decisão objecto do recurso de revisão.
2. Este tribunal deve ser o que proferiu a decisão transitada em julgado com que se relacionam directamente os vícios fundamentos do recurso de revisão.
3. Apresentado um novo documento desconhecido da parte vencida e sem ter sido alterada a matéria de facto fixada no recurso, é o tribunal de primeira instância o competente para conhecer do recurso de revisão interposto com base no fundamento previsto no art.º 653.º, al. c) do Código de Processo Civil.

A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I - Relatório e factos provados
A, melhor identificada nos autos, requer a resolução de conflito negativo de competência entre o M.mo Juiz do 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base e o Ex.mo Relator da Secção Cível do Tribunal de Segunda Instância, no âmbito de um recurso de revisão instaurado naquele 2.º Juízo Cível e sob o n.º CV2-10-0012-CAO-A.
O recurso de revisão refere-se à decisão transitada em julgado, proferida no processo que correu termos no 2.º Juízo Cível.
Nessa acção declarativa com processo ordinário, intentada por B, C e D contra E e A, os primeiros pediram a condenação solidária dos réus na restituição aos autores da quantia de MOP$2.038.472, que alegaram lhes ter emprestado.
A sentença da Ex.ma Juíz-Presidente dos Juízos Cíveis decidiu condenar o 1.º Réu, E, e a 2.ª Ré, A, a pagar ao 1.º Autor, B, várias quantias em dinheiro. Para tal entendeu que as quantias que a ré pediu aos autores, para pagar as despesas da educação de duas das três filhas do casal no estrangeiro, Inglaterra e Suíça, quando os cônjuges estavam separados de facto, constituem encargos normais da vida familiar e, portanto, o réu também é responsável pelas mesmas.
Já o Tribunal de Segunda Instância entendeu que as despesas em questão não constituíam encargos normais da vida familiar e absolveu os réus do pedido, decisão confirmada pelo Tribunal de Última Instância.
Este Tribunal de Última Instância considerou que para um casal da classe média, com os rendimentos provados nos autos, as despesas com o estudo e estadia das duas filhas na Europa, são um encargo da vida familiar, mas não um encargo normal da vida familiar. E acrescentou, na sua decisão de 15 de Abril de 2015, no Processo n.º 11/2015, que “a menos que os membros do casal já tivessem decidido tais despesas e que as filhas já tivessem iniciado o estudo no estrangeiro. Nestas circunstâncias, a dívida para continuação dos estudos, contraída por um dos cônjuges, já poderia constituir um encargo normal da vida familiar. Mas não se prova que isso tenha acontecido no caso dos autos”.
A ré da acção, ex-cônjuge que suportou as despesas em causa com a educação das filhas, veio requerer recurso extraordinário de revisão, com fundamento na al. c) do art.º 653.º do Código de Processo Civil, segundo o qual o recurso é admissível “quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que a decisão foi proferida, sendo o documento suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida”.
E o documento é, alegadamente, uma declaração e anexos, da autoria do réu da acção, pedindo subsídio de família, donde resultaria que, em 2008, já o réu sabia que uma das filhas estudava no estrangeiro e que concordava que ela continuasse a estudar aí (os ex-cônjuges estavam separados desde Outubro de 2007).
O M.mo Juiz do 2.º Juízo Cível declarou-se incompetente para conhecer do recurso de revisão. Para tal, concordando com a opinião da doutrina e da jurisprudência, segundo a qual o tribunal competente para a revisão é o que proferiu a decisão que padece do vício invocado como fundamento do recurso, entende que o vício não está na decisão de facto, caso em que seria competente o tribunal de 1.ª instância. Estará antes na decisão de direito, que é da autoria da TSI.
Já o Ex.mo Relator da Secção Cível do TSI considera que o que está em causa é a alteração da decisão de facto com base no novo documento que a recorrente apresenta, pelo que o tribunal competente é o Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base.

II - O Direito
1. A questão a apreciar
Trata-se de saber qual o tribunal competente para conhecer do recurso de revisão em causa.

2. Tribunal competente para conhecer do recurso de revisão, quando está em causa o fundamento da al. c) do art.º 653.º do Código de Processo Civil
Nos termos do art.º 658.º do CPC, o recurso de revisão é interposto no tribunal onde se encontrar o processo em que foi proferida a decisão e rever, “mas é dirigido ao tribunal que a proferiu”.
Por outras palavras, o tribunal competente para conhecer do recurso de revisão é o tribunal que proferiu a decisão objecto do recurso de revisão.
As letras parecem claras; surge no entanto problema quando estão em causa mais do que uma decisão, de diversas instâncias, por ter havido recurso ordinário.
Neste caso, como é o presente, há que apurar o sentido próprio do disposto no art.º 658.º, a fim de determinar qual é o tribunal competente para conhecer do recurso de revisão interposto com fundamento na al. c) do art.º 653.º do CPC.
No acórdão de 20 de Março de 2002, proferido no Processo n.º 15/2001, teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de se pronunciar, num caso semelhante, quanto ao tribunal competente para conhecer do recurso de revisão, quando está em causa o fundamento da al. c) do art.º 653.º do CPC: o tribunal de 1.ª instância.
Aí, e após a abordagem sobre qual o tribunal competente consoante os fundamentos invocados do recurso, se decidiu que no recurso de revisão, “o competente para julgar o recurso de revisão é sempre o tribunal onde foi cometido o vício que suporta o fundamento daquela”, ou seja, o tribunal competente deve ser o que proferiu a decisão transitada em julgado com que se relacionam directamente os vícios fundamentos do recurso de revisão.
Apresentado um novo documento desconhecido da parte vencida e sem ter sido alterada a matéria de facto fixada no recurso, é o tribunal de primeira instância o competente para conhecer do recurso de revisão interposto com base no fundamento previsto na al. c) do art.º 653.º do CPC.
É de manter tal decisão.
No caso ora em apreciação, a requerente do recurso de revisão alega que obteve uma certidão emitida pelo Fundo de Pensões que contem de uma declaração e alguns anexos de que ela não tinha tido conhecimento nem tinha podido fazer uso no processo em que a decisão foi proferida, sendo esses documentos suficientes, por si só, para modificarem a decisão em sentido mais favorável à requerente, na medida em que demonstram que o 1.º Réu, E, sabia perfeitamente que, a partir de Setembro de 2006, a sua filha estudava no estrangeiro e pretendia suportar os custos da sua vida, o que revela que as dívidas da filha no exterior de Macau constituíam encargo normal da vida familiar.
Tal alegação prende-se, evidentemente, com a matéria de facto objecto da discussão e audiência de julgamento no Tribunal Judicial de Base, pelo que o recurso de revisão deve ser dirigido a este tribunal, que é competente para conhecê-lo nos termos do art.º 658.º do CPC.
Como se sabe, os documentos destinam-se sempre a provar factos. O documento novo, que serve de fundamento ao recurso de revisão, tem de ser suficiente, por si só, para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida. Tem de ser suficiente para modificar de tal maneira a decisão de facto, que conduza a modificar a decisão da acção.
O que se pretende é, pois, e sempre modificar a decisão de facto.
Se a recorrente não apresenta nenhum facto a alterar com a apresentação do documento (este é um dos fundamento do M.mo Juiz do 2.º Juízo Cível para dizer que não está em causa a alteração da matéria de facto provada), isso pode ser fundamento para indeferimento liminar, por ser evidente a improcedência da pretensão, mas não modifica a competência do tribunal competente para o julgamento, que, como é evidente, é o de 1.ª instância, que foi o autor da decisão de facto.
Diz ainda o M.mo Juiz do 2.º Juízo Cível que “se o novo documento implicar a ampliação da base instrutória, terá de ser a decisão dos tribunais superiores alterada de forma a permitir tal ampliação e, em vez de revogar parcialmente a decisão da primeira instância, determinar a repetição do julgamento para conhecimento da nova matéria de facto que não constava alegada nos articulados nem resultou da instrução e discussão da causa”.
Salvo o devido respeito, há aqui alguma confusão com a tramitação do recurso de revisão.
Apresentada a petição de recurso de revisão, se for admitido liminarmente notifica-se pessoalmente a parte contrária para, em 20 dias, responder (n.º 3 do art.º 660.º do CPC).
Logo após a resposta do recorrido ou o termo do prazo respectivo, o tribunal realiza as diligências necessárias e conhece do fundamento do recurso de revisão (n.º 1 do art.º 661.º do CPC).
Quando o tribunal competente é o de 1.ª instância, o juiz do processo de revisão é o singular, mesmo que tenha de modificar a decisão de facto. Nunca há lugar a qualquer ampliação da matéria de facto. Os factos a alterar ou a revogar (declarar não provados) são os factos considerados provados nos autos, ou seja, no despacho do art.º 430.º do CPC e no julgamento da matéria de facto, seja de juiz singular, seja de colectivo. Ou, eventualmente, julgar provado um facto alegado, relevante e controvertido, constante ou não da base instrutória, não provado primitivamente porque só o poderia ser mediante documento, documento este obtido após trânsito em julgado da decisão e que conduz à prova do facto, suficiente para modificar a mencionada decisão.
Não há lugar a qualquer repetição de julgamento.
Se o julgamento do juiz singular for no sentido da improcedência do recurso de revisão, este finda. Se o recurso for procedente e revogar a decisão transitada em julgado, no caso do fundamento em questão, da al. c) do art.º 653.º do CPC, profere-se nova decisão, procedendo-se às diligências indispensáveis e dando-se a cada uma das partes o prazo de 20 dias para alegar por escrito [al. b) do art.º 662.º do CPC].
Em conclusão, o tribunal competente para conhecer do recurso de revisão é o de 1.ª instância.

III - Decisão
Face ao expendido, decidem ser o M.mo Juiz do 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base o competente para conhecer do recurso de revisão.
Sem custas.

                Macau, 17 de Janeiro de 2017
   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Processo n.º 58/2016 1