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Processo n.º 73/2015 Recurso jurisdicional em matéria penal
Recorrentes: Arguido Teng Man Lai e A.
Recorridos: Ministério Público e assistente B.
Assunto: Acção de usucapião. Legitimidade passiva. Detentores. Indemnização.
Data do Acórdão: 2 de Março de 2017.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
I – Na acção de usucapião são partes legítimas, como autor, aquele que pretende a declaração de aquisição da titularidade de um direito real em seu favor e, como réus, quem, expressa ou tacitamente se arrogue a titularidade do mesmo direito, incluindo aquele que tenha registada a aquisição do direito a seu favor.
II - Na acção de usucapião de direito de propriedade de imóvel não são partes legítimas como réus o locatário, o comodatário ou os meros detentores.
III – O mero detentor ou ocupante precário de terreno não tem direito, em princípio, a ser indemnizado por ter de desocupar o terreno.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base (TJB), por Acórdão de 19 de Setembro de 2014, absolveu o arguido Teng Man Lai, da prática, como autor, de um crime de falsidade de declaração de parte, previsto e punível pelo artigo 323.º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelo artigo 211.º, n.º 4, alíneas a) e c), do Código Penal.
Recorreram o Ministério Público e a assistente B para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), no que respeita à absolvição do arguido do crime de burla qualificada, que, por Acórdão de 23 de Julho de 2015, julgou parcialmente procedentes os recursos interpostos, passando a condenar o arguido na pena de 4 (quatro) anos de prisão pela prática, como autor de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelo artigo 211.º, n.º 4, alínea a), do Código Penal e declarando perdido a favor do Estado o prédio dos autos, adiante descrito.
Fez-se, ainda constar o seguinte da parte final da decisão:
“Transitada em julgada a decisão do presente recurso, compete à RAEM exercer todos os poderes conferidos pela lei em representação do Estado sobre o terreno referido do Estado, tais como delimitar os destinos público e privado deste terreno do Estado, fazer o registo do solo, demolir as eventuais construções de outrem neste lote e cobrar do construtor ou do dono da obra a despesa de demolição, ou ordenar o construtor ou o dono da obra demoli-las por eles próprios. Qualquer terceiro de boa-fé que entenda que o seu direito legítimo é prejudicado por esta declaração do direito de propriedade do terreno pode requerer por meio legal a indemnização do arguido ou do construtor ou do dono da obra, consoante o caso concreto, a RAEM não é obrigada a indemnizar qualquer pessoa.
Os vendilhões cujos direitos foram prejudicados pelo acto de burla do arguido podem requerer do arguido, por meio processual civil, a indemnização dos danos patrimoniais sofridos não indemnizados”.
Recorre, agora, o arguido, para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões:
- Não é configurável o crime de burla processual;
- O entendimento de que ao arguido competia fazer contraprova dos factos da acusação viola o princípio do acusatório e o da presunção de inocência do arguido;
- Os factos provados e não provados conduzem à absolvição do arguido pelo crime de burla;
- Não houve engano de ninguém porque a acção de usucapião não tem de ser intentada contra os simples detentores do imóvel, os vendilhões;
- Para além disso, o ora Recorrente celebrou, em 17 de Outubro de 1977, com C ou C1, viúva de Chan Meng aliás Chan Pak Meng, o contrato de compra e venda do imóvel, que na data da celebração do contrato o proprietário do imóvel era Li Pat e que Chan Meng aliás Chan Pak Meng tinha sido reconhecido por decisão judicial de 12 de Novembro de 1954, como possuidor do imóvel por mais de cinco anos, nomeadamente para efeitos do respectivo registo nos termos do artigo 524.º do Código Civil de 1867 (então em vigor), correspondente ao artigo 1220.º do nosso Código;
- A posse de Chan Pak Meng continuou na sua mulher C ou C1, nos termos do artigo 1180.º do Código Civil;
- Sendo que C ou C1 agiu claramente como titular de um direito real, em 17 de Outubro de 1977, quando celebrou o contrato de compra e venda com o ora Recorrente;
- Assim, o Recorrente obteve a posse depois do pagamento da totalidade do preço da compra e venda e da entrega física do terreno em causa.
Recorre, também, A, quanto à perda do terreno a favor do Estado, suscitando as seguintes questões:
- Violação do princípio do contraditório por nunca ter sido notificada para intervir no processo;
- Violação do disposto no artigo 103.º do Código Penal.
O Ex.mo Procurador-Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso na parte penal e pela procedência do recurso da A, devendo ser revogada a parte da decisão que declarou a perda do tereno a favor do Estado e serem declarados perdidos a favor da Região os benefícios ilícitos obtidos pelo arguido, na revenda do terreno por sessenta e um milhões, setecentas e quarenta mil patacas.
  
II – Os factos
Os factos provados e não provados pelo TJB são os seguintes:
Factos provados:
1.
Em 17 de Outubro de 1977, o arguido Teng Man Lai e C (ou C1) celebraram um contrato de compra e venda, o primeiro adquiriu da última pelo preço de HKD$100,000 um terreno sito em Rua do Padre João Clímaco sem n.º e Pátio dos Lírios n.º antigo 3A (antigamente Largo de loja de Pao Hok “Kuang Tai Long”), com área de cerca de 4000 pés quadrados (vide a cópia do contrato de compra e venda constante da fls. 1136 dos autos).
2.
Ao celebrar o contrato referido, Teng Man Lai deu um sinal no montante de HKD$40,000 a C, o valor restante de HKD$60,000 seria pago ao assinar a escritura. Como C declarou que precisava de proceder aos trâmites de pagamento de imposto de herança, concordaram as partes que a transacção seria completada dentro de 6 meses na altura de celebração de escritura. O contrato de compra e venda referido foi manualmente escrito em chinês, assinado e selado pelo Advogado E, as partes foram C e Teng Man Lai, a testemunha D.
3.
Ao celebrar o contrato referido, o proprietário do terreno referido não foi C, além disso, Chan Meng (ou Chan Pak Meng, falecido aos 4 de Janeiro de 1958 em Macau), marido de C, também não foi o proprietário do terreno referido, o verdadeiro proprietário foi Li Pat.
4.
Por sentença de 12 de Novembro de 1954 do tribunal de Macau sob administração portuguesa na altura, declarou-se que, para todos os efeitos jurídicos, nomeadamente o efeito de registo, Chan Meng (ou Chan Pak Meng), marido de C, tomou posse pacífica, pública e constante do prédio sito em Pátio dos Lírios por mais de 5 anos.
5.
Em 17 de Outubro de 1977, Teng Man Lai celebrou o contrato com C que não tinha o direito de propriedade do terreno. Após passado o prazo previsto de 6 meses no contrato de compra e venda, relativamente à completação de transacção e celebração de escritura, o advogado E não conseguiu fazer os trâmites de transacção e celebração de escritura para Teng Man Lai.
6.
Contudo, achando que o terreno tinha valor, Teng Man Lai continuou a cumprir o contrato e pagou a C em 10 de Agosto de 1978 o valor restante de HKD$60,000. C recebeu, pelas duas vezes, o valor total de transacção do terreno de HKD$100,000. Declarou esta que delegaria o poder ao Advogado E para vender o terreno a Teng Man Lai e para tal, se lavrou o documento (vide a folha versa da cópia do contrato de compra e venda constante da fls. 1048 dos autos).
7.
Antes de 1961, F, mãe do residente de Macau B, já vendia roupas em Rua do Padre João Clímaco, até 23 de Setembro de 2002, após falecida F, a sua licença foi transferida, com autorização do IACM, à sua filha G (vide a certidão de óbito da F constante da fls. 903, o registo de vendilhão constante da fls. 877, o pedido de transferência de licença constante da fls. 900 e a cópia do registo de vendilhão permanente do IACM constante da fls. 902).
8.
Em 1961, B imigrou para Macau, abriu banca à frente de Rua do Padre João Clímaco n.º 3 para vender roupas e panos na qualidade de vendilhão. Um indivíduo chamado de “H” tomou de arrendamento da loja sita em Rua do Padre João Clímaco n.º 6 para residir e colocar mercadorias. Até Outubro de 2009, durante cerca de 48 anos, B nunca pagou renda ao arguido Teng Man Lai (vide o recibo de renda constante das fls. 15 a 17 dos autos e o registo de endereço de comunicação).
9.
Desde 1966, a residente de Macau I já abriu banca à frente de Rua do Padre João Clímaco n.º 14 para vender os materiais dedicados aos deuses na qualidade de vendilhão, nunca pagou renda ao arguido Teng Man Lai.
10.
Desde 1977, a residente de Macau J já abriu loja, chamada de Pastelaria K, à frente de Rua do Padre João Clímaco n.º 14, ao lado da banca da sua mãe I, para vender os bolos chineses na qualidade de vendilhão. Nunca pagou renda ao arguido Teng Man Lai; na altura local registado foi Rua Leste do Mercado Almirante Lacerda, mas não Rua do Padre João Clímaco.
11.
Cerca de 1960, a residente de Macau L (melhor identificada em fls. 38 dos autos) já abriu banca ao lado de Rua do Padre João Clímaco n.º 3 e 4 para vender massa frita na qualidade de vendilhão.
12.
O IACM (Leal Senado) exerceu o direito de administração por longo tempo de maneira de administração de lugares públicos, o que se demonstra por emissão de licenças, visita e supervisão quotidianas, hoje muitos vendilhões no terreno ainda guardam a licença emitida pelo Leal Senado nas décadas de 60 e 70.
13.
De 17 de Outubro de 1977, em que o arguido Teng Man Lai e C celebraram o contrato de compra e venda do terreno referido, ele sabia bem que muitos vendilhões se dedicavam às actividades comerciais no terreno, mas nunca disse o facto de aquisição do terreno aos vendilhões, nem solicitou pessoalmente o pagamento de renda.
14.
Para possuir e obter o direito de propriedade do terreno referido, através da Advogada contratada e constituída M, o arguido Teng Man Lai apresentou uma petição inicial civil ao TJB, pedindo que fosse declarado como o proprietário do terreno com fundamento em usucapião e posse pacífica e registado como proprietário na Conservatória do Registo Predial.
15.
Na acção civil referida, Teng Man Lai teve o herdeiro incerto de Li Pat como o 1º réu, C como a 2ª ré, os outros 5 residentes de Hong Kong e um residente dos EUA como os 3º a 8º réus, mas não teve como réus os vendilhões que sabia que fizeram negócios no terreno por longo tempo (vide p.i. a fls. 1035 dos autos).
16.
O arguido intentou a acção cível, em 15 de Dezembro de 2000, em que pediu a declaração da titularidade do direito de propriedade do terreno a seguir indicado, com fundamento em usucapião, mediante a alegação dos seguintes factos na petição inicial:

“Teng Man Lai, vem propor contra
Herdeiros Desconhecidos de Li Pat, C, aliás, C1, N, aliás N1, e seu marido O, P, aliás P1, e seu marido Q, R, aliás R1, e seu marido S, aliás S1, T, aliás T1, aliás T2, e sua mulher U, V, aliás V1, e sua mulher W, X, aliás X1, aliás X2, aliás X3, Ministério Público, Interessados Incertos

Acção Declarativa com Processo Comum na forma ordinária, nos seguintes termos e com os seguintes fundamentos:
I. De Facto
1.º
O terreno, sito junto à Rua do Padre João Clímaco, com a área total de 379m2, e as seguintes confrontações:
NE – R. Norte do Mercado de Almirante Lacerda nºs 2 – 6, R. do Padre João Clímaco n.ºs 7 e 7A e R. Leste do Mercado Almirante Lacerda n.ºs 16-18 (n.º 20525) e terreno junto à R. do Padre João Clímaco (n.º 23011);
SE – Terreno junto à R. do Padre João Clímaco (n.º 23011);
SW – R. do Padre João Clímaco n.º 3 (n.º 20273) e R. do Padre João Clímaco;
NW – R. Leste do Mercado Almirante Lacerda n.ºs 4-8 (n.º 20271), n.ºs 10-12 (n.º 20272) e n.º 14 (n.º 20322).
- (Doc. n.º1)
2.º
Encontra-se incluído na descrição n° 6202 da Conservatória do Registo Predial de Macau, de que é assim parte (Doc.s nºs 1 e 2).

E tem o direito de propriedade aí registado a favor de Li Pat, que o adquiriu por compra pelo preço de MOP$12.000,00 (doze mil patacas), negócio formalizado por escrituras de 30.12.1903, lavrada a fls. 31 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n° 51 e de 15.05.1904, lavrada a fls. 35 do Livro de Notas para Escrituras Diversas do Livro n° 53 do Y, conforme registado pela inscrição n° 1288, a fls. 2v do Livro G-3, da referida Conservatória (v. Doc. n° 2, a fls. 5).

Dada a sua natureza de prédio rústico, encontra-se omisso na Matriz Predial Urbana.

O A. comprou o referido prédio em 17 de Outubro de 1977 a C ou C1, viúva de Chan Meng, pelo preço de cem mil patacas (devia ser dólares de Hong Kong), havendo pago na data da assinatura do contrato, como sinal e adiantamento do preço, quarenta mil dólares de Hong Kong (Doc. n° 3).

C1 era viúva de Chan Meng, aliás Chan Pak Meng, falecido em Macau, no dia 04.01.1958 (Doc. n° 4).

Chan Meng, aliás Chan Pak Meng, havia sido declarado por sentença de 12.11.1954, já devidamente transitada em julgado, como estando na posse pacífica, pública, contínua por mais de cinco anos de um prédio sito no Pátio dos Lírios, com a área total de 1.467,19 m2- sendo 866,8m2, a área coberta, ocupada com uma casa térrea, com o n° 3 do Pátio dos Lírios, e 601,11 m2, a área descoberta, ocupada com um páteo e um poço-, para todos os efeitos legais designadamente para efeitos de registo (Doc. nº 5).

Este prédio confrontava a Norte, com a Rua Leste do Mercado do Almirante Lacerda e um terreno do Estado, a Sul, com um terreno do advogado, E, a R. do Padre João Clímaco e a lateral do prédio n° 6 desta Rua, Leste, com o Pátio dos Lírios, e Oeste, com o acima mencionado terreno do advogado, E (v. Doc. n° 5).

O prédio adquirido pelo A. fazia assim parte deste prédio, sob o qual Chan Meng já exercia uma posse de proprietário há mais de dez anos (devia ser 5 anos) à data de 12.11.1954, data da sentença (v. Doc. n° 5).
10°
Chan Meng antes de falecer havia doado parte deste prédio a sua mulher C, daí a mesma o haver vendido ao A., pelo contrato, acima referenciado, de 17.10.1977 (v. Doc. n° 3).
11°
O prazo de cumprimento do referido contrato foi fixado em seis meses, pelas partes, sob sugestão do advogado encarregado de proceder à celebração da escritura.
12°
Mas, o referido advogado, E, decorridos os seis meses ainda não havia tratado dos necessários trâmites, pelo que, a vendedora insistiu no recebimento da totalidade do preço.
13°
Em 10 de Agosto de 1978, foi acordado que o A. pagaria à vendedora, o remanescente do preço, procedendo esta à entrega do prédio e à outorga das necessárias procurações ao advogado, para que este formalizasse devidamente a venda (v. Doc. n° 3).
14°
Assim, em tal data, a vendedora C1, recebeu a totalidade do preço (v. Doc. n° 3) e entregou o terreno, vazio de pessoas e coisas, e com algumas construções temporárias a diversos inquilinos, A.
15°
Que, de imediato, se passou a comportar como dono e senhor do prédio.
16°
Utilizando o mesmo para depósito de materiais de construção,
17°
Arrendando outras suas pequenas partes a vendilhões para a exploração de diferentes negócios de venda de vegetais, dada a proximidade do referido terreno do Mercado de Almirante Lacerda, vulgarmente conhecido por Mercado Vermelho, e recebendo as respectivas rendas.
18°
Procedendo a obras de construção, reparação e manutenção de telheiros e vedações, a fim de o adaptar aos diferentes fins a que o foi destinando.
19°
Pagando todas as despesas inerentes.
20°
E decidindo toda e qualquer questão a ele relativa.
21°
Em suma, dele dispondo como melhor lhe aprouvera, como seu dono, à vista de toda a gente,
22°
Sendo por todos reconhecido como dono do prédio,
23°
Sem qualquer contestação ou oposição.
24°
A posse do A. é exercida com a convicção de não lesar o direito de outrem, por haver adquirido o prédio de sua proprietária, que a partir da venda, lhe transferiu o prédio, demitindo-se de qualquer posse sobre o mesmo.
25°
Como se pode verificar, da relação de bens apresentada no inventário por óbito de seu marido, Chan Meng ou Chan Pak Meng, em que não menciona o mesmo, por o considerar excluído (Doc. n° 4, fls. 7 a 8)
26°
E é exercida em nome próprio e sem interrupção há mais de vinte e dois anos.
27º
O advogado encarregue de proceder aos trâmites necessários para a celebração da escritura de venda, faleceu sem que a referida escritura tivesse sido celebrada”.
17.
No processo ordinário n.º CV2-00-0007-CAO do TJB, o tribunal enviou a notificação de citação por carta com aviso de recepção aos réus enumerados pelo arguido conforme os respectivos endereços de comunicação, na qual se indicou que o réu deveria apresentar contestação sobre o processo ordinário referido dentro de 30 dias contados do dia de recepção, senão, considerar-se-ia que aceitou os factos articulados pelo autor (art.º 405.º do Código de Processo Civil).
18.
Por conseguinte, o tribunal citou os réus por edital nos termos da lei, no qual se disse expressamente que, dentro de 30 dias contados do dia da 2ª publicação, ou seja da última publicação do anúncio, foram publicamente citados o herdeiro incerto de Li Pat, C e os outros 5 residentes de Hong Kong e 1 residente dos EUA e os outros interessados. Deveriam apresentar contestação dentro de 30 dias da prescrição do edital, se não agissem, seguir-se-iam os ulteriores procedimentos à revelia dos réus até final.
19.
O Código de Processo Civil dispõe que no processo civil se aplicam os princípios da iniciativa das partes, princípio do contraditório, princípio da igualdade das partes e princípio dispositivo, etc. O art.º 5.º n.º 1 dispõe que “Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.” O artigo 9.º do Código de Processo Civil dispõe o princípio de boa-fé: “1. As partes devem agir de acordo com os ditames da boa-fé. 2. As partes não devem, designadamente, formular pedidos ilegais, articular factos contrários à verdade……”.
20.
O tribunal acabou por proferir uma sentença favorável ao arguido, isto é, declarou que o autor (arguido Teng Man Lai) foi o proprietário do terreno aproximado à Rua do Padre João Clímaco, com área total de 379m2, poderia o autor (arguido Teng Man Lai) ir registar o direito de propriedade em seu nome próprio na Conservatória do Registo Predial.
21.
Proferido em 17 de Setembro de 2004 o acórdão referido favorável e transitado em julgado, o arguido não foi imediatamente dizer que foi proprietário do lote aos vendilhões que fizeram negócios por longo tempo no lote referido “Tou Fa Kón”, mas sim foi fazer registo de propriedade na CRP.
22
Até Outubro de 2009, 5 anos depois de o arguido obter o registo do direito de propriedade do terreno, foi este declarar aos vendilhões do terreno que era o proprietário e impedi-los de continuar a fazer negócios ali.
23.
  Teng Man Lai vendeu em Julho de 2012 o terreno “Tou Fa Kón” com área de 379m2 à A, pelo preço de MOP$61,740,000 (vide o registo predial constante da fls. 207 dos autos).

Mais se provou:
Em 1984, mas 1982 como descrito na acusação, o residente Z começou a vender comida e café na banca à frente de Rua do Padre João Clímaco n.º 3.
Conforme o CRC, o arguido é primário.
O arguido Teng Man Lai declara que é comerciante de construção, auferindo mensalmente um montante de MOP$150,000, tem como habitação académica o 3º ano do ensino secundário, não tem encargo familiar.

Após a audiência de julgamento, não se dão assentes os factos seguintes por não serem provados ou consistirem em juízo de direito ou de factos:

1. Instaurado o processo, o Ministério Público fez investigação com a Polícia e os outros órgãos, foram apurados os factos seguintes:
Em 23 de Fevereiro de 2010, B (melhor identificada em fls. 1 ou 14 dos autos) apresentou denúncia ao Ministério Público, alegou que desde a década de 60 tem vendido roupas com a mãe em Rua do Padre João Clímaco (ou seja “Tou Fa Kón”), até o dia de denúncia ainda se dedicou ao trabalho de vendilhão. Em Outubro de 2009, o pessoal do IACM exigiu aos vendilhões do lote “Tou Fa Kón” referido ir assistir à reunião daquele Instituto, afirmou que o promotor de empreendimento iria desenvolver um projecto no lote “Tou Fa Kón”, por isso, solicitou-lhes deslocar-se desse lote para evitar perigo na execução da obra. Em Novembro de 2009, um indivíduo masculino chamado de Teng Man Lai (arguido) foi contactar B e os outros vendilhões no lote, disse que foi o proprietário desse lote e não permitiu aos vendilhões fazer negócios ali. Como o denunciante B dedica-se a fazer negócios neste lote desde a década de 60 há quase 50 anos e nunca ouviu o nome Teng Man Lai, foi consultar o Instituto de Habitação e a Conservatória do Registo Predial, assim, percebeu que o proprietário do lote era Teng Man Lai. Contratou advogado com os outros vendilhões para examinar os documentos deste lote, descobriu que o lote foi concedido a Teng Man Lai pelo TJB por meio de “usucapião” ou “posse pacífica” no processo n.º CV2-00-0007-CAO, fundamentando-se em que Teng Man Lai cobrou renda aos vendilhões do lote referido, colocou materiais de construção, reparou toldos e tapumes e exerceu a posse do terreno desde 1977, sem interrupção há mais de 22 anos, etc. Porém, discutindo com os outros vendilhões que fizeram negócios no lote referido por longo tempo, a denunciante B entendeu que as informações no processo do tribunal não foram verdadeiras, uma vez que a denunciante B e os outros vendilhões nunca ouviram o nome Teng Man Lai, nem lhe pagaram renda, tampouco viram que Teng Man Lai reparou toldos e tapumes ou colocou materiais de construção ali, pelo que suspeitou que Teng Man Lai tomou “posse pacífica” do lote por meio de falsificação de documentos, prestação de declaração falsa e burla, afirmou que iria efectivar as responsabilidades penal e civil de Teng Man Lai ---- Não é preciso dar assente por ser descrição de contexto.
2. Em 17 de Outubro de 1977, ao celebrar o contrato de compra e venda relativamente ao terreno sito em Rua do Padre João Clímaco sem n.º e Pátio dos Lírios n.º antigo 3A (antigamente Largo de loja de Pao Hok “Kuang Tai Long”), a vendedora C provavelmente declarou a Teng Man Lai e às respectivas pessoas que o terreno foi obtido do seu marido Chan Meng (ou Chan Pak Meng, falecido aos 4 de Janeiro de 1958 em Macau) através de doação inter vivos. ---- Não provado.
3. Chan Meng (ou Chan Pak Meng), marido de C, não foi este registado legalmente como o proprietário por não satisfação das condições legais de posse pacífica ou usucapião ---- Não se pode provar a causa do facto.
4. Pelo que, foi impossível que, Chan Meng (ou Chan Pak Meng), por meio de doação inter vivos, doasse o direito de propriedade do terreno referido à esposa C, isto é, mesmo existindo e sendo verdadeiro o acto de doação inter vivos de Chan Meng, foi impossível que C fosse registado legalmente como a proprietária através desta doação ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva.
5. Deste modo, foi impossível que Teng Man Lai obtivesse o direito de propriedade do terreno referido através do contrato celebrado em 17 de Outubro de 1977 com C que não tinha o direito de propriedade do terreno, ou seja, Teng Man Lai não obteve o direito de propriedade do terreno referido ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva.
6. Contudo, Teng Man Lai já fez outro plano na altura e pretendeu obter o direito de propriedade no futuro por procedimentos jurídicos como posse pacífica ou usucapião ---- Não provado.
7. Desde 1960, o vendilhão L nunca pagou renda ao arguido Teng Man Lai ---- Não provado.
8. Isto é, de 17 de Outubro de 1977, em que o arguido Teng Man Lai e C celebraram o contrato de compra e venda do terreno referido, até Outubro de 2009, muitos residentes de Macau já abriram bancas no terreno para vender panos, roupas, materiais dedicados aos deuses, farinha e café, etc. Os vendilhões nunca pagaram renda ao arguido Teng Man Lai, nem viram que Teng Man Lai possuiu pacifica, publica e constantemente e dispôs o terreno como fosse o dono. Na verdade, até Outubro de 2009, os vendilhões que faziam negócios no terreno nem sequer ouviram o nome Teng Man Lai ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva.
9. Além dos vendilhões que prestaram depoimentos na audiência, os vendilhões que faziam negócios no terreno consideravam-no sempre como terra pública ---- Não provado.
10. Além disso, conforme a informação e o ofício da Divisão de Vendilhões do IACM, ao abrigo da postura de vendilhões vigente e do art.º 9.º alínea (2) do Regulamento Administrativo n.º 32/2001, compete ao IACM (Leal Senado) licenciar a actividade de vendilhões apenas na via pública e em lugares públicos (vide as fls. 237 e 238 dos autos). Essas disposições verificam que é razoável e legalmente fundamentado que os vendilhões vejam o terreno como terra pública ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva jurídica.
11. De facto, Teng Man Lai nunca tinha o direito a cobrar renda dos vendilhões, porque ele sabia que apenas com o contrato de compra e venda celebrado com C não obteve o direito de propriedade do terreno ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva.
12. Da celebração do contrato referido, o arguido Teng Man Lai nunca usou efectivamente o terreno referido, nem se dedicou a qualquer actividade comercial ali, tampouco colocou materiais de construção ou outros objectos no terreno ---- Não provado.
13. Da celebração do contrato referido, o arguido Teng Man Lai nunca arrendou qualquer parte nele a qualquer residente ou vendilhão de Macau para fazer negócios como vender vegetais, nem sequer cobrou a renda ---- Não provado.
14. Da celebração do contrato referido, o arguido Teng Man Lai nunca fez qualquer obra de construção de toldos e tapumes, nem sequer fez reparação e manutenção e pagou a respectiva custa ---- Não provado.
15. O arguido Teng Man Lai sabia bem que foi totalmente impossível que se dedicasse a qualquer actividade comercial, fizesse qualquer obra de construção de toldos e tapumes ou procedesse à administração, porque sabia que qualquer posse, uso ou disposição do terreno seria oposta pelos vendilhões que fizeram negócios no terreno por longo período ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva.
16. Após adquirido o terreno, o arguido Teng Man Lai nunca praticou qualquer acto como fosse o dono ou proprietário do terreno em face de todos, nomeadamente dos vendilhões que fizeram negócios no terreno por longo tempo, tampouco qualquer pessoa o aceitou como o dono do terreno ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva.
17. Na acção civil referida, Teng Man Lai teve o herdeiro incerto de Li Pat como o 1º réu, C como a 2ª ré, os outros 5 residentes de Hong Kong e um residente dos EUA como os 3º a 8º réus, mas não teve como réus os vendilhões que sabia que fizeram negócios no terreno por longo tempo, a fim de impedir o conhecimento e a intervenção dos vendilhões directamente relacionados na acção, de forma a evitar os vendilhões que verdadeiramente tomaram posse e efectivamente usaram o terreno referido por longo tempo de opor ou obstar a sua obtenção do direito de propriedade por meio de alegada posse pacífica ou usucapião ---- Não provado.
18. Comparando com os factos descritos nos 7º a 21º parágrafos, permite-se ver que, entre os 27 artigos dos factos articulados na petição inicial referida, só os 1º a 14º e 25º artigos estão conforme à realidade, os 15º a 24º e 26º a 27º artigos estão completamente desconformes à verdade ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva.
19. Contudo, como o arguido Teng Man Lai dolosamente não teve como réus os vendilhões que fizeram negócios no terreno referido por muitos anos, assim, em todo o processo civil, nenhum vendilhão teve conhecimento, fazendo com que essas partes directamente relacionadas fossem completamente excluídas da acção e fosse crida uma ilusão a que ninguém opusesse em todo o processo ---- Não provado.
20. O arguido Teng Man Lai premeditou e previu que, no processo ordinário n.º CV2-00-0007-CAO do TJB, o tribunal enviaria a notificação de citação por carta com aviso de recepção aos réus enumerados pelo arguido conforme os respectivos endereços de comunicação ---- Não provado.
21. Pode-se prever que, a notificação de citação foi enviada apenas ao herdeiro incerto de Li Pat, a C, aos outros 5 residentes de Hong Kong e 1 residente dos EUA (não se sabia se o endereço era válido), mas não aos vendilhões que efectivamente tomaram posse e utilizaram o terreno para fazer negócios por quase 50 anos, pelo que, naturalmente, no que diz respeito ao resultado da notificação de citação, ninguém apresentou contestação dentro de 30 dias ---- Não é dado assente por ser conclusão presuntiva.
22. Superficialmente, o processo civil referido parece lícito e prosseguido conforme o procedimento legal, mas o arguido dolosamente ocultou o facto mais importante e relevante, isto é, mediante a ocultação com má-fé e a declaração falsa, o arguido Teng Man Lai não teve como réus os vendilhões que sabia que fizeram negócios no terreno por longo tempo, fazendo com que ao citar os réus o tribunal não enviasse notificação de citação aos vendilhões directamente relacionados e, assim, ninguém apresentasse contestação dentro do prazo legal ---- Não provado.
23. Deste modo, o autor, uma das partes no processo civil referido, ora arguido Teng Man Lai tinha obrigações e deveres de cumprir o princípio de boa-fé e prestar declaração ao tribunal no seu processo civil que esteja conforme à realidade. Mas o arguido não o fez, mas sim dolosamente ocultou os factos e prestou declaração falsa ao tribunal ---- É questão jurídica e os factos não podem ser provados.
24. Enquanto um comerciante no sector de construção, foi impossível que o arguido não fosse pessoalmente ao terreno para fazer visita ao comprá-lo, ou não soubesse que muitos vendilhões faziam negócios no terreno antes e depois da aquisição, mas com o intuito de causar prejuízos de outrem e obter enriquecimento ilegítimo, o arguido ocultou dolosamente os factos ao tribunal e prestou declaração desconforme à verdade nos factos articulados ---- Não provado.
25. O arguido conseguiu enganar e induzir em erro o Tribunal Judicial de Base, fazendo-o acreditar a declaração falsa do arguido e proferir uma sentença favorável ao arguido, isto é, declarou que o autor (arguido Teng Man Lai) foi o proprietário do terreno aproximado à Rua do Padre João Clímaco, com área total de 379m2, poderia o autor (arguido Teng Man Lai) ir registar o direito de propriedade em seu nome próprio na Conservatória do Registo Predial ---- Não provado.
26. O arguido foi silenciosamente fazer registo de propriedade na CRP.
27. A razão pela qual o arguido declarou, tendo ocultado por 5 anos, aos vendilhões que tomou posse pacífica do terreno obviamente consiste em fazer o acórdão do tribunal irrecorrível por meio dilatório com má fé, assim, os vendilhões não poderiam interpor recurso mediante processo jurídico e tornar-se-ia num facto iniludível a sua aquisição da propriedade do terreno através de truque e alegado “usucapião” ou “posse pacífica” ---- Não provado.
28. Mediante o truque referido e o procedimento que parece legal, o arguido Teng Man Lai obteve indevidamente o direito de propriedade e o interesse patrimonial consideravelmente grande ---- Não provado.
29. O arguido Teng Man Lai obteve lucros de MOP$61,740,000 por ter vendido o terreno “Tou Fa Kón” ---- Não provado o valor concreto de enriquecimento.
30. O acto do arguido Teng Man Lai conduziu ao sofrimento de prejuízo patrimonial consideravelmente grave dos verdadeiros possuidores e utilizadores de longo tempo do terreno “Tou Fa Kón”. Além disso, os possuidores e utilizadores do terreno eram os residentes de Macau que viviam de fazer negócios no lote, mas eles foram expulsos pelo truque do arguido e incorreram necessariamente em difícil situação económica ---- Não provado.
31. O arguido praticou dolosamente o acto referido da forma livre e consciente, sabia bem que a sua conduta era proibida e punida pela lei ---- Não provado.

III - O Direito
1. As questões a resolver
A primeira questão a resolver é a de saber se os factos praticados pelo réu integram o crime de burla.
Dado que tanto a acusação, como o acórdão recorrido, consideram que os factos integrantes do elemento do crime de burla consistente no erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, são não ter indicado como réus da acção cível de usucapião os vendilhões do terreno - mas apenas os descendentes da pessoa que constava do registo predial (em 1904) como proprietário do prédio, bem como quem lhe terá vendido verbalmente o terreno em 1977 e os descendentes da pessoa que, em 1954 possuía o terreno - para evitar que alguém contestasse a acção, consistindo nisto o engano, elemento do crime de burla, previsto no artigo 211.º, n.º 1, do Código Penal (“Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido …”), há que examinar a questão da legitimidade passiva nas acções cíveis, mormente na acção de usucapião.
Conexa com a questão anterior, está o exame do elemento prejuízo no crime de burla, visto que o acórdão recorrido decidiu que este seria o prejuízo sofrido pelos vendilhões por deixarem de poder fazer negócios no terreno. Há que apurar, com os elementos constantes dos autos, se estes vendilhões teriam direito a ser indemnizados, no caso de terem de abandonar o terreno.
Cabe, ainda, apurar se houve intenção do ora arguido de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.
Se o recurso do arguido improceder há que conhecer das questões suscitadas no recurso da A.

2. A tese da acusação e do acórdão do TSI
O acórdão recorrido condenou o arguido na pena de 4 (quatro) anos de prisão pela prática, como autor, de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelo artigo 211.º, n.º 4, alínea a), do Código Penal.
Os factos e circunstâncias relevantes para a condenação do arguido, pelo acórdão recorrido – que deu, assim, procedência à tese da acusação - são as seguintes:
- O arguido intentou uma acção cível tendente à declaração de aquisição da titularidade do direito de propriedade do terreno dos autos, com fundamento em usucapião, que foi procedente, por se ter demonstrado que o arguido tinha a posse pública e pacífica do prédio durante mais de 20 anos;
- Na acção cível o arguido alegou e logrou provar que, a partir de 1977, ano em que o arguido adquiriu o mesmo, por simples escrito, a C, o primeiro começou a comportar-se como dono do terreno, designadamente, arrendando pequenas partes a vendilhões de vários negócios, dada a proximidade do chamado Mercado Vermelho, sendo reconhecido por todos como dono do terreno;
- Ora, neste processo penal, provou-se que vários vendilhões com banca no terreno desde a década de 60 do século XX, nunca pagaram renda ao arguido nem este nunca lhes solicitou que pagassem;
- Concluiu, assim, o acórdão recorrido que o arguido alegou e provou factos falsos na acção cível, que conduziram a que esta fosse procedente e que o arguido tivesse adquirido a propriedade do terreno dos autos por usucapião, tendo registado a aquisição na competente Conservatória do Registo Predial;
- Não está excluído que a burla processual seja punida;
- O arguido não indicou como réus da acção cível os vendilhões do terreno - mas apenas os descendentes da pessoa que constava do registo predial (em 1904) como proprietário do prédio, bem como quem lhe terá vendido verbalmente o terreno em 1977 e os descendentes da pessoa que, em 1954 possuía o terreno - para evitar que alguém contestasse a acção, consistindo nisto o engano, elemento do crime de burla, previsto no artigo 211.º, n.º 1, do Código Penal (“Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido …”).
- O enriquecimento ilegítimo do arguido foi a obtenção do direito de propriedade sobre o prédio;
- O prejuízo de outrem, outro elemento do crime de burla (“Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido …”), seria o prejuízo sofrido pelos vendilhões por deixarem de poder fazer negócios no terreno;
- O mencionado prejuízo dos vendilhões será sempre superior a MOP$150,000 [O crime de burla é punido com a pena de 2 a 10 anos de prisão quando o prejuízo patrimonial da vítima é superior a MOP$150,000, nos termos dos artigos 211.º, n.º 4, alínea a) e 196.º, alínea b) do Código Penal];
- Só 5 anos após ter transitado em julgado a acção cível o arguido comunicou aos vendilhões que era proprietário do terreno e os impediu de ali continuarem, para frustrar a possibilidade de estes interporem recurso de revisão da sentença.

3. Circunstâncias relevantes da situação registral e negocial do terreno dos autos
O terreno dos autos, situado em Macau junto ao chamado Mercado Vermelho, tem de área 379 m2 e faz parte da descrição n.º 6202, da Conservatória do Registo Predial de Macau.
O prédio desta descrição n.º 6202 tem a natureza rústica, tinha inicialmente a área de 44851,6 m2, do qual foram sendo desanexados, pelo menos, 50 prédios.
Relativamente ao prédio rústico descrito sob o n.º 6202 foi, em 18 de Maio de 1904, inscrita a aquisição do domínio útil a favor de Li Pat, por compra (escritura pública de 30 de Dezembro de 1903), sob o n.º 1288 do Livro GL3, fls. 2v, da Conservatória do Registo Predial de Macau, ficando-lhe assim a pertencer a propriedade perfeita por já ser o dono do domínio directo.
É este o registo em vigor relativamente à titularidade do direito de propriedade do terreno dos autos.
Por sentença de 12 de Novembro de 1954, do Juiz de Direito da Comarca de Macau, foi Chan Meng, declarado ter a posse pacífica, pública e contínua, por mais de 5 anos, de um terreno com a área de 1467, 19 m2, onde se inclui o terreno dos autos.
Chan Meng faleceu no dia 4 de Janeiro de 1958, estando casado com C ou C1.
Por escrito de 17 de Outubro de 1977, o ora arguido Teng Man Lai comprou o terreno dos autos a C ou C1, por cem mil patacas.
Em 15 de Dezembro de 2000, o ora arguido Teng Man Lai propôs a acção cível contra Herdeiros Desconhecidos de Li Pat, C, todos os restantes herdeiros de Chan Meng (N, aliás N1, e seu marido O, P, aliás P1, e seu marido Q, R, aliás R1, e seu marido S, aliás S1, T, aliás T1, aliás T2, e sua mulher U, V, aliás V1, e sua mulher W, X, aliás X1, aliás X2, aliás X3), bem como o Ministério Público e Interessados Incertos, pedindo que fosse declarado titular do direito de propriedade do terreno dos autos, por o ter adquirido por usucapião, tendo alegado ter a posse pública e pacífica do terreno desde 1977.
Na mencionada acção cível, alegou o ora arguido Teng Man Lai (e assim foi julgado provado) que:
“Assim, em tal data1, a vendedora C1, recebeu a totalidade do preço (v. Doc. n° 3) e entregou o terreno, vazio de pessoas e coisas, e com algumas construções temporárias a diversos inquilinos, ao A.
15°
Que, de imediato, se passou a comportar como dono e senhor do prédio.
16°
Utilizando o mesmo para depósito de materiais de construção,
17°
Arrendando outras suas pequenas partes a vendilhões para a exploração de diferentes negócios de venda de vegetais, dada a proximidade do referido terreno do Mercado de Almirante Lacerda, vulgarmente conhecido por Mercado Vermelho, e recebendo as respectivas rendas.
18°
Procedendo a obras de construção, reparação e manutenção de telheiros e vedações, a fim de o adaptar aos diferentes fins a que o foi destinando.
19°
Pagando todas as despesas inerentes”.
No presente processo-crime deu-se como provado que vários vendilhões, com bancas no terreno dos autos desde os anos sessenta e setenta do Século XX, nunca pagaram renda ao ora arguido, nem este lhes solicitou tal pagamento. Bem como que o IACM (Leal Senado) exerceu o direito de administração no terreno dos autos, por longo tempo, da mesma maneira como administra lugares públicos, emitindo licenças, fazendo visitas e supervisão quotidianas.
Logo após a sentença da mencionada acção cível ter sido procedente, o arguido não foi imediatamente comunicar o facto aos vendilhões no terreno.

4. O crime de burla
O crime de burla está previsto no artigo 211.º, n.º 1, do Código Penal, da seguinte forma:
“Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
São elementos deste crime:
- Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo (dolo específico);
- Determinação, por parte do agente, de outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial;
- Esta determinação ter sido levada a cabo por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou.
Trata-se de “ … um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro”2.
Por outro lado, a burla constitui “um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída de bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção”3.
Como explica A. M. ALMEIDA COSTA4 “Tratando-se de um crime material ou de resultado (supra § 12), a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) 1) e, depois entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial 2)”.
No que toca ao elemento do dolo específico (intenção de enriquecimento ilegítimo), a conduta do agente na convicção errada de que tem um direito sobre a coisa, exclui o dolo5.
Alinhadas estas breves considerações – visto não haver qualquer divergência sobre questões jurídicas atinentes ao crime de burla, mas apenas divergências na qualificação dos factos – avancemos na integração jurídica dos factos provados.

5. Intenção do réu, de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo
Vejamos, primeiramente, se existiu, por parte do réu, intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo (dolo específico).
O terreno dos autos está registado como propriedade privada desde 1904, pelo que a ele não se aplica o disposto no artigo 7.º da Lei Básica. Trata-se de um terreno privado, não público.
Como tantas vezes sucedeu em Macau, desde a primeira inscrição de aquisição do direito de propriedade, em 1904, a favor de Li Pat, nunca mais voltou a ser registada nenhuma outra aquisição do mesmo direito.
Sabemos que, pelo menos desde 1949 até 1954, o prédio maior, onde se integrava o terreno dos autos, estava na posse pública e pacífica de Chan Meng, como tal declarada por sentença judicial de 1954.
Não está excluído que a sentença tenha julgado mal.
Chan Meng faleceu em 1958, estando casado com C ou C1.
Por escrito de 17 de Outubro de 1977, o ora arguido Teng Man Lai comprou o terreno dos autos a C ou C1, por cem mil patacas.
Cabe recordar que, como resulta da descrição de bens no inventário por morte de Chan Meng, junta aos autos, este era dono de vários bens imóveis e titular de metade indivisa das Pontes-Cais n. os 8 e 10 e da totalidade da Ponte-Cais n.º 12-A.
É possível que Chan Meng tenha adquirido legitimamente o terreno de que o dos autos fazia parte, embora sem título formal, como resulta da sentença judicial.
Também sem título formal, a sua viúva, a quem o marido doou o prédio, vendeu o terreno dos autos ao ora arguido. Houve, provavelmente dificuldades na legalização da compra e venda, já que o último registo remontava a 1904 e as transacções subsequentes não terão sido formalizadas por escritura pública, como se impunha. Seria difícil reatar o trato sucessivo.
Mas o ora arguido parece ter ingressado legitimamente na posse do terreno, pois pagou o mesmo à pessoa que aparentava ter a sua posse há muitos anos.
Assim sendo, como bem decidiu o acórdão de 1.ª instância, não se pode dar como provado que houve intenção do réu obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.
O terreno foi-lhe vendido, embora sem título, pelo que a sua aquisição formal não constituía qualquer enriquecimento, muito menos ilegítimo.
É certo que o ora arguido mentiu na acção cível, dizendo que tinha o corpus da posse, cobrando renda aos vendilhões, o que se provou neste processo-crime não ser verdadeiro. Tudo leva a crer que usou um meio ilícito (mentir na acção cível sobre determinados factos) para atingir um fim aparentemente legítimo, que era a legalização registral do terreno, que pagou a quem se apresentou como dono legítimo.
Certo que ninguém contestou a acção cível, tendo sido citados, por anúncios em língua chinesa e portuguesa, os interessados incertos.
Estas considerações não afastam a possibilidade de qualquer interessado poder, ainda agora, demonstrar a aquisição do terreno por usucapião, movendo acção contra o presuntivo proprietário (artigo 7.º do Código do Registo Predial).
Assim, se o fim era legítimo, é evidente que não houve qualquer intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.

6. Determinação, por parte do réu, de outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, tendo esta determinação sido levada a cabo por meio de erro ou engano sobre factos que o réu astuciosamente provocou.
A tese da acusação e do acórdão recorrido é a de que o arguido não indicou como réus da acção cível os vendilhões do terreno - mas apenas os descendentes da pessoa que constava do registo predial (em 1904) como proprietário do prédio, bem como quem lhe terá vendido verbalmente o terreno em 1977 e os descendentes da pessoa que, em 1954 possuía o terreno - para evitar que alguém contestasse a acção, consistindo nisto o engano, elemento do crime de burla, previsto no artigo 211.º, n.º 1, do Código Penal.
Esta tese parte de um erro fundamental de doutrina de processo civil.
A acção de usucapião visa a declaração de aquisição da titularidade de um direito real, no caso o direito de propriedade, com fundamento na posse do bem em causa, durante certo tempo e na sua invocação por parte do interessado, dado que a usucapião não opera automaticamente pela constatação de que alguém tem a posse pública e pacífica pelo tempo necessário à aquisição por usucapião.
Nos termos do artigo 58.º do Código de Processo Civil, na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade passiva para a acção cível os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Assim, nesta acção de usucapião são partes legítimas, como autor, aquele que pretende a declaração de aquisição da titularidade de um direito real em seu favor e, como réus, quem, expressa ou tacitamente se arrogue a titularidade do mesmo direito.
Quer isto dizer que, estando registada a aquisição do direito de propriedade a favor de certa pessoa, tem esta pessoa de ser demandada, visto que, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Por outro lado, se houver litígio quanto à titularidade do mesmo direito, isto é, se alguém se arrogar ser dono do bem em causa, também tem essa pessoa de ser accionada como réu, ainda que não beneficie de registo a seu favor.
Pois bem, outras pessoas, como o locatário, o comodatário ou os meros detentores, não só não devem, como não podem ser demandadas como réus, já que não sujeitos da relação controvertida, que é a da titularidade do direito real, mormente do direito de propriedade do imóvel. Isto é pacífico.
Na verdade, nos termos do artigo 1215.º do Código Civil, os detentores não podem adquirir para si, por usucapião, o direito nos termos do qual possuem, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.
Ora, os vendilhões segundo se provou neste processo-crime eram meros detentores, meros ocupantes precários do terreno.
Não tinham de ser nem podiam ser réus na acção.
Já assim não seria se se tratasse de acção de reivindicação do imóvel, que é a acção em que o proprietário pede a restituição do prédio e sua desocupação (artigo 1235.º do Código Civil). Nesta acção, já aqueles que ocupam o prédio e nele querem permanecer têm de ser accionados como réus, pois são sujeitos da relação material controvertida.
Em conclusão, não existiu qualquer erro ou engano por parte do ora arguido em não demandar os vendilhões, já que na acção de usucapião de direito de propriedade de imóvel os seus detentores não podem ser accionados como réus.
É certo que está provado:
12.
O IACM (Leal Senado) exerceu o direito de administração por longo tempo de maneira de administração de lugares públicos, o que se demonstra por emissão de licenças, visita e supervisão quotidianas, hoje muitos vendilhões no terreno ainda guardam a licença emitida pelo Leal Senado nas décadas de 60 e 70.
Sendo assim, parece que o IACM (Leal Senado) considerava o terreno como público.
Embora se tenha considerado como não provado:
9. Além dos vendilhões que prestaram depoimentos na audiência, os vendilhões que faziam negócios no terreno consideravam-no sempre como terra pública ---- Não provado.
Mas a ser assim, o Ministério Público devia ter imputado na acusação que o arguido não accionou a RAEM na acção cível, bem sabendo que entidades públicas consideravam o terreno como público. E devia ter alegado na acusação que nisto consistiu o engano, elemento do crime de burla.
Como não o fez, e embora este facto esteja provado, o arguido não foi acusado deste facto – central na acusação pelo crime de burla – e dele não pôde defender-se. Logo, não pode ser condenado por tal crime.

7. Prejuízo patrimonial dos vendilhões
Na tese do acórdão recorrido o prejuízo de outrem, outro elemento do crime de burla, seria o prejuízo sofrido pelos vendilhões por deixarem de poder fazer negócios no terreno.
Ora há aqui um evidente equívoco, na medida em que não se identifica de que direito seriam titulares os vendilhões, que os habilitasse a ser indemnizados da cessação da sua actividade no terreno.
Tanto quanto resulta dos autos, os vendilhões não têm qualquer direito a estar no terreno. A sua ocupação do terreno não tem na sua base qualquer título, não sendo arrendatários do mesmo. São meros ocupantes precários. Logo, o proprietário que pretenda a desocupação do imóvel não tem de os indemnizar.
Com o que falece a tese do prejuízo.
Quem poderia estar prejudicado era a RAEM, se tivesse sido alegado e provado que o terreno teria sido adquirido por usucapião pela RAEM.
Mas este facto não foi alegado na acusação e, como tal, é imprestável agora para fundamentar a condenação do arguido pelo crime de burla.
Em suma, não se verifica nenhum dos elementos do crime de burla imputado ao réu, pelo que se impõe a sua absolvição, como bem se decidiu em primeira instância.
Está prejudicado saber se a burla processual constitui crime e o conhecimento do recurso da A.
8. Nota final – O perdimento do terreno
O acórdão recorrido condenou o arguido pela prática de crime de burla, pelo qual obteve a propriedade do terreno e, ao abrigo do disposto no artigo 103.º, n.º 2, do Código Penal, decretou o perdimento do terreno a favor do Estado.
Só que o acórdão recorrido parece ter esquecido que, se o arguido não adquiriu legitimamente a propriedade do terreno, este, que é de propriedade privada desde 1903, haveria de pertencer a alguém, haveria de ter um legítimo proprietário, embora porventura desconhecido. Então, a que título é que se declararia o perdimento de terreno a favor do Estado, terreno este no regime de propriedade privada, cujo titular desconhecido nada fez de errado?

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogam o acórdão recorrido e absolvem o arguido do crime de burla qualificada, de que vinha acusado.
Não conhecem do recurso da A.
Custas pelo assistente neste TUI e no TSI, com taxas de justiça fixadas em 6 e 7 UC, respectivamente.
Macau, 2 de Março de 2017.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

     1 10 de Agosto de 1978.
     2 A. M. ALMEIDA COSTA, anotação ao artigo 217.º do Código Penal português, no Comentário Conimbricence do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, II volume, 1999, p. 276.
     3 A. M. ALMEIDA COSTA, anotação…, p. 292, 293, 276 e 277.
4 A. M. ALMEIDA COSTA, anotação…, p. 293.
     5 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, 2010, p. 682.
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Processo n.º 73/2015

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Processo n.º 73/2015