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Processo n.º 783/2016
(Recurso Cível)
    
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 16/Fevereiro/2017

ASSUNTOS:
- Acão de justificação da posse
- Registo da mera posse
- Caracterização da posse
- Posse titulada e não titulada
- Posse causal e posse formal
- Requisitos da posse; comportamento; corpus e animus
- Art. 7.º da Lei Básica; posse sobre terrenos e sobre as construções

    
    SUMÁRIO :
  1. Uma pessoa considera-se proprietária de algo, independentemente do registo ou das formalidades reputadas para o exercício desse direito. Aí radica a posse, entendida como o poder de facto exercida sobre a coisa, como correspondente ao direito real respectivo – art. 1175º do CC. E essa posse, sem qualquer registo, pelo decurso do tempo, conduz à aquisição do direito real por usucapião.
  2. Uma posse escondida, oculta, “fechada na gaveta” desde sempre e para sempre não releva em termos de posse, pois esta, para existir passa por um reconhecimento de uma conduta correspondente à titularidade do direito. Por alguma razão o art. 296º do CC pressupõe a invocação da prescrição, no caso, aquisitiva do direito real, para poder ser eficaz.
  3. A questão do animus, enquanto requisito integrante da posse, vem perdendo, no actual estádio da discussão doutrinária, alguma acuidade, pelo que não interessará já tanto a indagação do elemento subjectivo do alegado possuidor, mas sim, se os actos materiais por ele praticados sobre a coisa denotam um exercício que seja correspondente, coadunável, entendido como um exercício que corresponda a um “animus”, com o alcance de que quem olhe para essa actuação possa descortinar uma vontade de agir como se de titular do direito se tratasse.
  4. Como sustenta Paula Costa e Silva, interrogando-se sobre se há uma posse ou posses juridicamente relevantes, fazendo um apelo à figura do comportamento concludente, em que a intenção está intimamente ligada à actuação, será de concluir que tal elemento não surge como um mero facto interno inacessível, antes se traduzindo numa intenção exteriorizada, através do comportamento de quem actua.
  5. Como dizem P. Lima e A. Varela, mesmo pela própria “posse não se adquirem direitos, mas a posse faculta ao possuidor a sua aquisição”. Daí que se diga que a vantagem e interesse relevante no registo da posse seja o do encurtamento dos prazos habilitantes à aquisição do direito real por via da prescrição aquisitiva, face ao disposto no art. 1220º do CC. O registo da mera posse tem carácter meramente enunciativo, o que, nas palavras de Oliveira Ascensão, significa que “a inscrição não pode acrescentar nada à situação substantiva, esgotando-se a sua função na genérica mera notícia do facto a que se reporte”.
  6. Do confronto entre os artigos 1219º e 1220º resulta clara a distinção entre posse titulada e posse não titulada, entre o registo do título de aquisição e o registo da mera posse. E sobre o conceito de título, rege o artigo 1183º, tendo-se a posse por titulada quando “fundada em qualquer modo abstractamente idóneo para adquirir o direito nos termos do qual se possui, independentemente , quer do direito do transmitente, quer da validade do negócio jurídico.”
  7. Fala-se ainda da posse causal e da posse formal. Aquela é a que existe na posse em que há coincidência entre a exteriorização e a titularidade substantiva; esta será a que se verifica quando alguém que não é titular do direito sobre uma coisa, se comporta materialmente como se o fosse, exercendo sobre ela os poderes de conteúdo respectivo.
  8. Se os AA. não concretizam em comportamentos, nem fazem prova de qualquer posse causal, se, de todo, não alegam nem fazem prova de qualquer direito real de que sejam titulares, restando, então, apenas uma posse formal, “pretensamente titulada” numa escritura de aquisição de posse, arrogando-se tão somente os transmitentes a qualidade de possuidores, não se podem ter por verificados os requisitos indispensáveis ao reconhecimento da posse dos AA.
  9. Dizer-se que se é possuidor é uma afirmação manifestamente conclusiva, que não pode deixar de ser concretizada em concretos actos materiais donde se infira um comportamento a que corresponda o exercício de um direito. Não consubstanciam verdadeiros actos de posse os que bem se podem compatibilizar com uma situação de mera detenção, tais como uma utilização com exclusividade; viver nas construções; detenção das chaves; sem oposição de ninguém. Não é difícil imaginar que também um arrendatário ou comodatário bem pode praticar tais actos. Muito menos por o transmitente o afirmar no instrumento dito transmissivo da posse.
  10. A falta de comprovação da posse e seus elementos integrantes torna desnecessária a discussão sobre a compatibilidade ou não entre os limites que advêm do disposto no art. 7º da Lei Básica e um mero registo de posse sobre construções implantadas em terreno disponível da RAEM.

             O Relator,














Processo n.º 783/2016
(Recurso Civil)
Data : 16/Fevereiro/2017

Recorrentes : - A
        - B
        - C
        - D

Recorridos : - E
- F
        - Região Administrativa Especial de Macau
        - Ministério Público
        - Interessados Incertos


    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO

1. A e outros, AA. e recorrentes nos autos à margem referenciados, tendo instaurado acção de justificação judicial contra E, F, a Região Administrativa Especial de Macau, o Ministério Público e os interessados incertos, solicitando que fosse ordenada a descrição do bem imóvel situado na Taipa, Caminho XX, n.º XX e n.º XX, e fosse registada a posse do imóvel a favor dos requerentes, tendo sido julgada improcedente a acção, notificados da admissão do recurso que interpuseram da douta sentença nos mesmo proferida, vêm, nos termos legais, apresentar as suas alegações de recurso, concluindo nos termos que seguem:

    A) Salvo o devido respeito, a douta sentença a quo julgou erradamente ao decidir que não se verifica o animus por parte dos recorrentes, no exercício da posse que estes alegam exercer.
    B) A douta decisão recorrida faz errada interpretação da Lei de Terras, nomeadamente do disposto nos seus artigos 4.°, 8.° e 9.°, e, bem assim do disposto no art. 7.° da Lei Básica;
    C) A decisão recorrida viola o princípio da segurança jurídica consagrado na al. 9) do art. 2.° da lei de Terras, e
    D) Desconsidera direitos adquiridos.
    E) A decisão recorrida não está conforme com a definição legal de (e a distinção jurídica entre) coisas do domínio público, fora do comércio, e coisas imóveis, decorrentes dos artigos 193.° e 195.° do Código Civil.
    F) O artigo 4.° da Lei de Terras consagra como domínio público os «terrenos», que o Código Civil refere no seu artigo 193.°, disposição para a qual expressamente remete, mas não os «imóveis», os quais são definidos no art. 195.° do Código Civil.
    G) Não pode ignorar-se tal distinção.
    H) Pois, na fixação do sentido e alcance da lei, deve presumir-se que «o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (art. 8., n.º 3 do Código Civil).
    I) A douta decisão recorrida incorre no vício interpretativo de equiparar «terrenos» e «imóveis», fazendo coincidir ambos os conceitos jurídicos.
    J) Tivesse sido intenção do legislador alargar o regime dos terrenos aos imóveis, tê-lo-ia feito expressamente. Em apoio deste entendimento labora o facto de a Lei de Terras, Lei n.º 10/2013, ter sido promulgada recentemente, em 2 de Setembro de 2013, em plena discussão jurisprudencial sobre a questão abordada na decisão recorrida.
    K) Se o legislador quisesse estender as restrições que estabeleceu para os terrenos de modo a abranger também os imóveis (art. 195.° do Código Civil), certamente que teria usado outra terminologia jurídica quando da redacção da Lei de Terras, onde refere, repetidamente, tão só os terrenos.
    L) A Lei de Terras regula, claramente, apenas os «terrenos», que não os «imóveis».
    M) Daqui se conclui que os prédios urbanos, em especial os imóveis, construções ou edifícios, poderão estar fora do âmbito de aplicação da Lei de Terras.
    N) In casu, o direito de superfície incide sobre um imóvel há muito existente. Não incide sobre o terreno. A Lei de terras impede a aquisição de direitos sobre terrenos, não sobre imóveis.
    O) Admitindo a impossibilidade legal de usucapir terrenos do domínio público ou privado da RAEM, deve entender-se que tal não impede que a posse seja tutelada, em toda a sua amplitude, com as únicas excepções da prescrição positiva ou aquisição da propriedade (do terreno) por usucapião e da aquisição (do terreno) por acessão.
    P) O que a lei (de terras) quis impedir foi a usucapião (e acessão). Não quis impedir que se constituíssem outros direitos sobre os aludidos terrenos, e menos ainda, direitos sobre imóveis existentes nesses terrenos, nomeadamente a constituição do direito de superfície (sobre o imóvel), a constituição de usufruto (sobre o imóvel) ou o de uso e habitação.
    Q) Portanto, mesmo sendo terreno não usucapível, não se vê porque não há-de um imóvel construído nesse terreno ser objecto de relações jurídico-privadas.
    R) Para o efeito, a abertura de descrição não deverá ser impedida, mas, bem pelo contrário, deverá ser ordenada, até para protecção do princípio da segurança e certeza jurídicas, quer dos cidadãos quer da RAEM, estabelecendo e definindo claramente qual a esfera de uns e de outra.
    S) A decisão recorrida considera a posse, com o devido respeito, de forma redutora, como apenas relevando para o efeito da usucapião do domínio útil (dos terrenos).
    Termos em que, e nos melhores de Direito aplicáveis, deve proceder o presente recurso, e, consequentemente, ser revogada a douta decisão a quo, devendo ser substituída por outra que ordene a abertura de descrição predial, conforme pedido na petição inicial, com o que se fará a costumada JUSTIÇA.
    
2. Não foram oferecidas contra-alegações.
3. Foram colhidos os vistos legais

II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:

A. Em 20 de Setembro de 2010, os transmitentes E e F celebraram com os transmissários C e A o documento constante das fls. 12 e v dos autos, com o seguinte teor:
“Os primeiros outorgantes são possuidores de 1 casa de pedra sita na Taipa, Povoação de G, n.º XX, 1 barraca na Povoação, n.º XX, 1 casa de ferro e 1 campo de árvores frutíferas (assinalados na planta n.º 6XX5/20XX da DSCC), sendo tal posse proveniente da “escritura de compra e venda de edifício” celebrado em 6 de Abril de 1987 entre os primeiros outorgantes e os representantes do anterior proprietário H, I e J, e da “escritura de compra e venda de prédio” celebrado em 13 de Setembro de 1988 com o anterior proprietário K, e adquirida através da celebração do contrato com o anterior possuidor (esse contrato constitui parte integrante do presente contrato). Agora os primeiros outorgantes pretendem transmitir a posse aos segundos outorgantes que, por sua vez, pretendem adquirir a posse sabendo que apesar de os primeiros outorgantes terem possuído os prédios em causa como proprietário, os prédios nunca foram registados em nome dos primeiros outorgantes e não há registo de qualquer tipo. Os segundos outorgantes apenas pretendem habitar, usar e obter fruição das fracções acima referidas.
Ambos os outorgantes concordam, voluntariamente, em celebrar o presente contrato e cumprir as seguintes cláusulas:

I. Os primeiros outorgantes transmitem e os segundos outorgantes aceitam a posse dos prédios acima referidos, a preço de HKD1.900.000,00, equivalente a MOP$1.960.800,00.
II. Os primeiros e segundos outorgantes concordaram com a seguinte forma de pagamento:
(1) Em 29 de Julho de 2010, os segundos outorgantes pagaram aos primeiros outorgantes o sinal de HKD$1.000.000,00.
(2) Na data da celebração do presente contrato, já foi pago aos primeiros outorgantes o restante montante de HKD$900.000,00, e os primeiros outorgantes declararam que tinham recebido o preço na sua totalidade.
III. As fracções em causa serão entregues e transmitidas aos segundos outorgantes com o pagamento do remanescente, para que possam os segundos outorgantes habitar, usar e obter fruição dos prédios, sabendo bem que os prédios são de 1 piso.
IV. A partir da presente data, não podem os primeiros outorgantes celebrar, na qualidade de proprietário dos referidos prédios, com terceiros qualquer contrato-promessa/contrato de compra e venda, escritura pública, procuração e contrato de arrendamento, receber qualquer preço ou obter qualquer benefício resultante dos prédios em causa, ou pedir empréstimo a qualquer instituição financeira ou banco e hipotecar os prédios, senão, os segundos outorgantes têm direito de intentar acções contra os primeiros outorgantes, ficando a cargo destes as despesas de justiça e o prejuízo económico.
V. Devem os segundos outorgantes pagar, a partir da data de entrega dos prédios, todos os encargos relativos aos prédios, designadamente a contribuição predial. Todos os impostos e encargos existentes antes da data de entrega dos prédios devem ser pagos pelos primeiros outorgantes.
VI. Após assinado o contrato prometido, no caso de renúncia à transmissão por parte dos segundos outorgantes, revertem para os primeiros outorgantes as quantias acima referidas. Se os primeiros outorgantes não procedam à desocupação dos prédios em causa, têm de indemnizar os segundos outorgantes no dobro das supracitadas quantias.
VII. No pagamento do remanescente, os primeiros outorgantes obrigam-se a entregar aos segundos outorgantes todos os documentos relativos à posse dos prédios em causa, nomeadamente os contratos celebrados com os anteriores possuidores e os recibos das contribuições prediais pagas ao longo dos anos. Ao receber o remanescente, os primeiros outorgantes têm de assinar a procuração a favor dos segundos outorgantes.
VIII. As omissões neste contrato regem-se pela legislação vigente em Macau.
IX. O presente contrato entra em vigor logo que assinado pelos outorgantes, é elaborado em duplicado, ficando cada parte com um exemplar.

Obs.: Após a conclusão do contrato de compra e venda com o pagamento do remanescente, o comprador tem direito de ceder a posição contratual a qualquer terceiro.”
B. O prédio (junto com o campo ao lado) na Povoação de G, n.º XX e a barraca (junto com o campo de árvores frutíferas ao lado) na Povoação de G, n.º XX (assinalados na planta cadastral n.º 6XXXXX45 emitida pela DSCC com as letras A, B1, B2, B3, C, D1 e D2) não foram descritos na Conservatória do Registo Predial. (vide as fls. 49 dos autos)
C. O prédio n.º XX e a barraca n.º XX indicados na alínea B) dos factos provados são inscritos nas cotas de referência da matriz predial n.º 4XXX9-0X.
D. A planta cadastral n.º 6XXXXX45 contém e corresponde ao prédio n.º XX e à barraca n.º XX indicados na alínea B) dos factos provados.
E. O bem imóvel indicado na alínea B) dos factos provados é independente das outras edificações.
F. A parcela A do bem imóvel indicado na alínea B) dos factos provados tem a área de 58 m2, a parcela B1 tem a área de 25 m2, a parcela B2 de 20 m2, a parcela B3 de 8 m2, a parcela C de 56 m2, a parcela D1 de 22 m2 e a parcela D2 de 3 m2.
G. O requerente A usou um dos quartos da parcela A, a parcela C e a parcela D1 do bem imóvel indicado na alínea B), e permitiu a outrem habitar na parcela B1.
H. Num dia não apurado mas depois da assinatura do acordo referido na alínea A) dos factos provados, o requerente A entrou e ocupou um dos quartos da parcela A, a parcela C, a parcela D1 e a parcela B1 do bem imóvel indicado na alínea B), e permitiu a outrem habitar na parcela B1.
I. A praticou os referidos actos de forma pública e à vista de toda a gente, e não foi contestado por qualquer outra pessoa, nomeadamente os vizinhos.
    
III - FUNDAMENTOS
1. Pretendem os recorrentes, AA. que foram em acção especial para justificação da posse, o reconhecimento da posse sobre um determinado imóvel, consubstanciado na construção de um prédio, tal como acima concretizado, com consequente abertura da descrição no Registo Predial e respectiva inscrição a seu favor.
2. Somos a louvar-nos, em boa parte, na douta sentença proferida pelo Mmo Juiz, cujo teor da fundamentação expendido se passa a transcrever:
  “Os requerentes instauraram o presente processo de justificação judicial nos termos do art.º 104.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, solicitando a primeira inscrição de mera posse do bem imóvel em causa.
   Nos termos do art.º 104.º, n.º 1 do Código do Registo Predial, o adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito sobre prédio não descrito no registo predial, ou descrito mas relativamente ao qual não subsista qualquer inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, pode obter a primeira inscrição por meio de acção de justificação judicial.
   Por outro lado, dispõe-se no art.º 1220.º do Código Civil que:
   “1. Não sendo a posse titulada ou não havendo registo do título de aquisição, mas havendo registo da mera posse, a usucapião tem lugar:
   a) Quando a posse tiver continuado por 5 anos, contados desde a data do registo, e for de boa fé; ou
   b) Quando a posse tiver continuado por 10 anos, a contar da mesma data, ainda que não seja de boa fé.
   2. A mera posse só é registada em vista de sentença passada em julgado, na qual se reconheça que o possuidor tem possuído pacífica e publicamente por tempo não inferior a 5 anos.”
  *
   Salvo o devido respeito e melhor opinião, este Tribunal entende que improcede o pedido dos requerentes.
   Em primeiro lugar, nos termos do art.º 7.º da Lei Básica, os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.
   Os requerentes não conseguiram provar que a inscrição de qualquer direito sobre o terreno em causa no registo predial tinha sido feita antes do estabelecimento da RAEM, nem puderam invocar qualquer título para provar que tal terreno tinha sido reconhecido como propriedade privada por qualquer autoridade de poderes públicos competente antes do retorno de Macau, pelo que o terreno em causa tem de ser reconhecido como propriedade do Estado.
   Nos termos do art.º 3.º, n.º 2 da Lei n.º 10/2013, os terrenos do Estado são classificados em domínio público e domínio privado. (vide também os art.ºs 1.º, 2.º e 6.º da Lei n.º 6/80/M)
   De acordo com os art.ºs 193.º, n.º 2 e 1192.º, n.º 1, al. b) do Código Civil, os terrenos que se encontram no domínio público não podem ser objecto da posse.1
   Os requerentes não alegaram factos suficientes para demonstrar se o terreno em causa encontra-se no domínio público ou no domínio privado da RAEM, sendo tais factos indispensáveis para a constituição do direito (caso a posse seja considerada um direito e não mera situação de facto) ou da situação que se arroga, pelo que improcede o pedido dos requerentes.
   Em segundo lugar, ainda que se suponha que o terreno em causa encontra-se no domínio privado da RAEM, também é improcedente o pedido dos requerentes.
   A “posse” é a relação que realmente existe entre um sujeito jurídico e uma coisa. Por ser difícil provar o direito de propriedade, o regime que consagre o valor jurídico da situação de facto da “posse” e que presuma a titularidade do direito do possuidor (art.º 1193.º, n.º 1 do Código Civil), tem como objectivo evitar a inconveniência na transacção causada por o titular do direito precisar provar a fonte do seu direito.
   Porém, in casu, caso o terreno em causa encontre-se no domínio privado da RAEM, ainda se pode reconhecer que os requerentes gozam da posse do terreno que constitui, com certeza, propriedade da RAEM e cujo direito de propriedade não pode ser adquirido pelos requerentes por meio de acessão imobiliária e usucapião (art.º 9.º da Lei n.º 10/2013), e que podem abrir inscrição predial do terreno pertencente à RAEM e registar a mera posse?
   Primeiro, afigura-se-nos que no enquadramento da vigente Lei Básica e Lei de Terras, não podem os particulares adquirir, por meio de usucapião, o direito de propriedade dos terrenos do domínio público ou do domínio privado do Estado, nem opor o regime da posse no Código Civil (que é apenas direito privado) à RAEM.
   Nos termos do art.º 7.º da Lei Básica, os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.
   A primeira parte do art.º 7.º da Lei Básica consagra o direito de propriedade do Estado sobre os terrenos, dispondo que os solos na RAEM são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da RAEM; e dispôs-se na segunda parte que o Governo da RAEM é responsável pela disposição, uso e gestão dos terrenos, sendo os rendimentos daí resultantes pertencentes ao governo.
   Por isso, tendo em conta que são preciosos os recursos de solos na RAEM, e atendendo à sua importância para o desenvolvimento e o interesse colectivo da sociedade, a Lei Básica clarificou o princípio de que os terrenos ficam exclusivamente à disposição do governo, de forma a garantir o desenvolvimento sustentável e o interesse público. Assim, quando o art.º 7.º da Lei Básica dispõe indistintamente que os terrenos do domínio público ou do domínio privado são propriedade do Estado, que o Governo da RAEM é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento, e que os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da RAEM, está obviamente a excluir o regime da posse no Código Civil que pertence apenas ao direito privado.
   Caso contrário, se é de admitir a possibilidade de os particulares possuírem terrenos do domínio privado do Estado, e exigir que o Estado reconheça tal posse, isso resultará na aplicação de todo o regime da posse no Código Civil, incluindo obter frutos resultantes dos terrenos na posse de boa fé (art.º 1195.º do Código Civil), solicitar a indemnização ao Estado com base no regime de benfeitorias2 (art.ºs 1198.º a 1200.º do Código Civil), o que não corresponde ao princípio consagrado pela segunda parte do art.º 7.º da Lei Básica, no sentido de ficar o Governo da RAEM responsável pela gestão e pelo rendimento dos terrenos.
   Nestes termos, não deve ser reconhecida a posse por particular, prevista no regime do direito privado, dos terrenos do domínio público ou do domínio privado do Estado, pelo que não pode proceder o pedido dos requerentes.
   Por outro lado, independentemente da questão de se poderem os particulares, de forma abstracta, gozar da posse dos terrenos do domínio privado da RAEM, este Tribunal entende que não se verifica qualquer interesse dos requerentes sobre o registo da mera posse que deve ser protegido.
   A lei permite o registo da mera posse, o que produz o efeito de edital e visa o encurtamento do tempo de usucapião, não produzindo qualquer outro efeito efectivo. A inscrição da mera posse no registo predial não faz presumir que existe efectivamente a posse registada, e não é oponível a terceiros, sempre que os terceiros consigam provar, a nível de facto, o seu animus de proprietário e que o mesmo bem imóvel fica efectivamente em seu poder, e que a posse por terceiros prevaleça a mera posse registada, devendo o beneficiário do registo da mera posse ceder face ao melhor registo de terceiros.3
   Desde que o direito de propriedade do bem imóvel em causa pertence necessariamente ao Estado de acordo com o art.º 7.º da Lei Básica e não pode ser adquirido pelos requerentes através do regime de usucapião, entende este Tribunal que os requerentes não têm interesse em fazer o registo da mera posse (porque o registo da mera posse apenas produz o efeito de edital e visa o encurtamento do tempo de usucapião), que não deve ser permitido, uma vez que a autorização do registo da posse contrariará o direito de propriedade do Estado sobre o terreno em causa.
   Além disso, a posse é a situação de facto constituída por “animus” e “corpus”, mas no caso vertente, não podem os requerentes fazer prova do seu “animus” do terreno em causa. Não obstante que os requerentes alegassem que tinham adquirido, junto dos 1º e 2ª requeridos, a “posse” do terreno em causa e juntassem o respectivo contrato, a palavra “posse” tem natureza conclusiva, e não se pode, com base no uso da palavra “posse” no contrato, concluir que os requerentes sucederam na “posse” dos vendedores (art.º 1180.º do Código Civil). Ademais, os requerentes nunca conseguiram provar que os e 2ª requeridos (na qualidade de vendedores) tinham tido o “animus” de proprietário do terreno em causa, razão pela qual a celebração de contrato entre os requerentes e os vendedores não basta para concluir que os requerentes adquiriram o “animus” e em consequência, a posse do bem imóvel.
   Pelo exposto, improcede o pedido dos requerentes.”
   3. Não obstante o acerto da decisão proferida, acompanhando em parte a fundamentação expendida, não nos eximiremos a rebater a argumentação apresentada em sede de recurso.
   Começam os recorrentes por uma titubeante impugnação da matéria de facto, dizendo que não se pode concluir, face à inspecção judicial empreendida, que, da ausência dos ocupantes, não se pode concluir pela falta de ocupação dos respectivos espaços, dando-se por indemonstrada um dos pressupostos do reconhecimento da posse.
   Sobre esta alegação, há que dizer que os recorrentes não observam o disposto no art. 599º, n.º 1, a) e b), 629, n.º 1, a) e 581 e n.º 1 e 2, o que, por si só, neste segmento seria fundamento , por si só, para não se conhecer desta matéria.
   O certo e mais importante, aliás, como os próprios recorrentes reconhecem, é que o cerne da fundamentação que levou à improcedência da acção, o ponto crucial residiu na circunstância de o prédio não estar descrito na Conservatória do registo predial.
   Ficamos, contudo, sem saber qual a concreta matéria de facto, traduzida em artigos que deveriam ter merecido uma resposta diferente, em que sentido e qual a errada avaliação probatória efectuada pelo Tribunal a quo.
   4. A primeira linha argumentativa vai no sentido de que se julgou erradamente ao decidir-se que não se verifica o animus por parte dos requerentes no exercício da posse que os recorrentes estavam a exercer, pois o cidadão comum não se apercebe do alcance jurídico que advém da existência ou não de um registo. Um cidadão comum considera-se dono de um imóvel independentemente do registo.
   Só num certo sentido se percebe o que se pretende na alegação desenvolvida. Uma pessoa considera-se proprietária de algo, independentemente do registo ou das formalidades reputadas para o exercício desse direito. Aí radica a posse, entendida como o poder de facto exercida sobre a coisa, como correspondente ao direito real respectivo – art. 1175º do CC. E essa posse, sem qualquer registo, pelo decurso do tempo, conduz à aquisição do direito real por usucapião.
   Só neste sentido poderão os recorrentes ter razão. Mas importa não esquecer que essa posse, tradicionalmente desdobrada num corpus e num animus de nada serve, enquanto não for reconhecida pelo público, por terceiros e para isso tem de ser invocada para poder ser eficaz, em termos prescritivos do direito correspondente. Uma posse escondida, oculta, “fechada na gaveta” desde sempre e para sempre não releva em termos de posse, pois esta, para existir passa por um reconhecimento de uma conduta correspondente à titularidade do direito.
   Por alguma razão o art. 296º do CC pressupõe a invocação da prescrição, no caso, aquisitiva do direito real, para poder ser eficaz.
   No entanto, se atentarmos bem na sentença proferida, não foi por esta razão que se teve por indemonstrada a posse dos AA. É verdade que se refere que eles não conseguiram provar o animus, assim se afastando a comprovação dos requisitos integrantes desse instituto.
   A questão do animus, enquanto requisito integrante da posse, vem perdendo, no actual estádio da discussão doutrinária, alguma acuidade, pelo que não interessará já tanto a indagação do elemento subjectivo do alegado possuidor, mas sim, se os actos materiais por ele praticados sobre a coisa denotam um exercício que seja correspondente, coadunável, entendido como um exercício que corresponda a um “animus”, com o alcance de que quem olhe para essa actuação possa descortinar uma vontade de agir como se de titular do direito se tratasse.
   A posse, como assinala Oliveira Ascensão, é uma “realidade jurídica que tem como pressuposto uma realidade, ou situação de facto, mas que na sua existência tem autonomia em relação a ela.”4 E não deixa aquele Autor de sublinhar que seria ”incompreensível que se fundamentasse a posse que deve representar uma exteriorização facilmente reconhecível, nos meandros da intenção do agente."5
   Na verdade, como sustenta Paula Costa e Silva6, interrogando-se sobre se há uma posse ou posses juridicamente relevantes, fazendo um apelo à figura do comportamento concludente, em que a intenção está intimamente ligada à actuação, conclui-se que tal elemento não surge como um mero facto interno inacessível, antes se traduzindo numa intenção exteriorizada, através do comportamento de quem actua.7
   No fundo, numa aproximação à expressão de Orlando de Carvalho, ao dizer que não há corpus sem animus, nem animus sem corpus, devendo a intenção inferir-se da própria actuação.8
   Em sentido próximo a doutrina actualizada.9
   Feita esta incursão e o enquadramento da relevância de existência de um animus ou da falta dele, estamos em condições para entender o sentido da alegação do recorrente na referência que faz a uma pretensa falta de comprovação de um requisito da posse.
   5. Seguidamente, partem os recorrentes para outra questão, qual seja a da imputação de errada interpretação da lei e sua aplicação ao caso concreto, na medida em que se terá entendido, na douta decisão recorrida, de que não são susceptíveis de posse os terrenos do domínio público ou do domínio privado da RAEM, por via do disposto no art. 7.° da Lei Básica, sendo certo que o que estará em causa são edificações, constituindo prédios urbanos.
   O tribunal a quo teria entendido que terrenos não descritos no Registo Predial são, ipso facto, "terrenos da RAEM" e, como tal, não são usucapíveis, nem sobre eles se pode verificar a acessão.
   Defendem os recorrentes que qualquer questão acerca da usucapibilidade ou não de tais terrenos se situa a jusante da questão relacionada com o pedido nos presentes autos, pois o que se pretende com a presente acção é a abertura de descrição de um imóvel ao qual correspondem todas as características para se categorizar juridicamente como «prédio urbano», o qual tem sido objecto de direitos e obrigações, nomeadamente as decorrentes dos contratos que titularam os ora recorrentes e os legitimaram para a presente acção.
   “Construído há largas décadas, suporte económico de várias famílias e, agora, dos recorrentes, existindo como realidade física incontornável, delimitado e separado de outras construções, constituiu-se em objecto de direitos na esfera jurídica de cidadãos que merecem a protecção da Ordem Jurídica”, afirmam.
   Pelo que tal protecção, acentuam, poderá e deverá passar pela distinção fáctico-jurídica entre o terreno onde está implantado e a construção sobre o mesmo erigida.
   Esta é uma questão muito sensível – a da separação entre as construções implantadas e o terreno insusceptível de usucapião, face ao disposto no artigo 7º da Lei Básica, em conjugação com as disposições das Leis de Terras (art. 3º/2 , 9º da Lei n.º 10/2013 e 1º, 2º e 6º da Lei n.º 6/80/M)e as do Código Civil (193º/2 e 1192/1, b)) -, pelo que só voltaremos a ela se e na medida em que tal se mostre necessário.
   6. Por isso, vamos analisar uma outra questão que vem abordada no recurso e foi também um dos fundamentos da decisão proferida.
   Pretende-se a justificação da posse, enquanto realidade jurídica apta a habilitar à titularidade do direito real que lhe corresponda.
Como se assinala – e bem – na douta sentença recorrida a justificação da posse, seja ela notarial ou judicial, visa o registo da posse, registo esse que, no caso, não dá nem tira direitos. Para além de que como dizem P. Lima e A. Varela, mesmo pela própria “posse não se adquirem direitos, mas a posse faculta ao possuidor a sua aquisição”10. Daí que se diga que a vantagem e interesse relevante no registo da posse seja o do encurtamento dos prazos habilitantes à aquisição do direito real por via da prescrição aquisitiva, face ao disposto no art. 1220º do CC.
O registo da mera posse tem carácter meramente enunciativo, o que, nas palavras de Oliveira Ascensão, significa que “a inscrição não pode acrescentar nada à situação substantiva, esgotando-se a sua função na genérica mera notícia do facto a que se reporte”11.
    
Actualiza-se aqui a pertinente passagem da sentença recorrida, ao referir os ensinamentos de Henrique Mesquita, assinalando que não é o ingresso no registo que pode isentar a posse de ter de ser o exercício de poderes fácticos, ou a possibilidade de exercê-los, em que por definição consiste. Seja no passado, seja no presente, devendo o interessado e beneficiário do registo, dele querendo tirar partido para mais depressa invocar a usucapião, cumprir-lhe-á fazer prova de que manteve a posse por determinado prazo (CCivil, art. 1220.º, n.º 1, als. a e b), não lhe bastando para tanto a mera invocação do registo do facto, o qual, como se disse, para este efeito não releva. Se há presunção que aqui possa operar, ela não é a do registo – não deriva dele, não é criação dele, não é virtude dele – mas sim a da própria lei, que no n.º 2 do art. 1181.º, do CC faz presumir a conservação da posse em quem a começou.
    Do confronto entre os artigos 1219º e 1220º resulta clara a distinção entre posse titulada e posse não titulada, entre o registo do título de aquisição e o registo da mera posse. E sobre o conceito de título, rege o artigo 1183º, tendo-se a posse por titulada quando “fundada em qualquer modo abstractamente idóneo para adquirir o direito nos termos do qual se possui, independentemente , quer do direito do transmitente, quer da validade do negócio jurídico” (n.º 1). Daqui se poderá ver até a vantagem, por vezes não facilmente abarcável, na caracterização da posse, se direito, se mera situação jurídica ou de facto com relevância jurídica.
    Da análise cuidada deste artigo retira-se, por um lado, que continua a ser válida a distinção romana entre o negócio obrigacional transmitente do direito (emptio, donatio, etc.) pelo qual se entra na posse, sendo esse o título e os modos de aquisição, traduzidos nos actos posteriores integrantes da posse. O que se compreende; se a posse é o comportamento correspondente aos poderes de facto próprios de um dado direito real (art. 1175º), uma pessoa pode comprar, receber, suceder num direito e como este disponibiliza o exercício dos actos materiais sobre a coisa, digamos que por esse negócio está apto a exercer a posse, mas tem de a exercer efectivamente. Daí que, superando esta dicotomia que poderia levar a uma cisão na compreensão do fenómeno – entre título e modo de aquisição -, Oliveira Ascensão venha dizer que o título é o facto ou conjunto de factos de que uma situação jurídica tira a sua razão de ser, a sua existência. Posse, a que título?12
Relacionada com esta distinção, ainda que não confundíveis as figuras, fala-se ainda da posse causal e da posse formal. Aquela é a que existe na posse em que há coincidência entre a exteriorização e a titularidade substantiva13; esta será a que se verifica quando alguém que não é titular do direito sobre uma coisa, se comporta materialmente como se o fosse, exercendo sobre ela os poderes de conteúdo respectivo.14
A ordem jurídica regula a posse, tutela e atribui-lhe efeitos, sem se se preocupar se o possuidor é titular do direito a que a posse se refere. De facto, “a disciplina legal da posse desconhece a categoria da posse causal, e não limita nunca os meios facultados ao possuidor formal. Por isso, todo o litigante que for vencido na discussão da posse mantém intactas as possibilidades de discussão da titularidade do direito ”15 (art. 1203º/1 do CC).
As várias distinções legais da posse referem-se, por norma, à posse formal, mas o possuidor causal também se pode socorrer da protecção possessória.
7. Posto isto, parece que estamos em condições de integrar a pretensão dos recorrentes e de analisar da apontada insuficiência dos pressupostos necessários à sua pretensão.
O que querem os AA., ora recorrentes?
A abertura de uma descrição predial e que seja registada a posse a seu favor.
Desde logo se observa que reconduzem a sua pretensão à descrição que do imóvel fazem na p.i., com a respectiva planta cadastral, não excluindo a parte descoberta, de terreno, sem construção, a que corresponde uma área de 81 m2 contra 111 m2 de área de construção.
Deixemos, por ora, este particular aspecto da base de incidência da pretensão relativa ao terreno “tout court”.
Quanto ao registo da posse, o que se verifica é que não concretizam em comportamentos, nem fazem prova de qualquer posse causal. Na verdade, seguramente, de todo, não alegam nem fazem prova de qualquer direito real de que sejam titulares.
Resta-nos, então, uma posse formal, “pretensamente titulada” numa escritura de aquisição de posse. E se dizemos “pretensamente titulada” é porque nos deparamos apenas com uma esrcitura de transmissão/venda de posse que se afigura não ter a virtualidade de configurar uma posse titulada, pois que se arrogam tão somente os transmitentes a qualidade de possuidores. Desde logo, porque não se mostra apta a transmitir qualquer direito; tão somente a posse e, como vimos, a posse não é direito, pelo menos na acepção do que se dispõe no art. 1183º.
Mas mesmo que, por mero exercício de raciocínio, se entendesse que essa escritura, transmissiva da posse, transmitia também esse direito, qual posse, situarmo-nos íamos apenas ao nível de um mero negócio obrigacional, ficando por preencher o conteúdo relativo aos actos materiais em que se deve traduzir a posse.
Dizer-se que se é possuidor é uma afirmação manifestamente conclusiva, que não pode deixar de ser concretizada em concretos actos materiais donde se infira um comportamento a que corresponda o exercício de um direito.
Ora, sobre essa realidade, nada se comprova. Aliás, em bom rigor, independentemente da prova, os factos alegados nem sequer consubstanciam verdadeiros actos de posse, bem se podendo compatibilizar com uma situação de mera detenção: utilização com exclusividade; viver nas construções (que tipo de construções?); detenção das chaves; sem oposição de ninguém. Não é difícil imaginar que também um arrendatário ou comodatário bem podia praticar tais actos. Muito menos por o transmitente o afirmar no instrumento dito transmissivo da posse
Por isso, não é de admirar que, sobre essa matéria, o Mmo Juiz tenha elucubrado, como o fez, o que não deixou de corroborar com a prova (ou falta dela) produzida.
Perante isto, pouco mais haverá que dizer, na certeza de que os AA. não lograram provar, desde logo, os requisitos da posse formal que lhes competia fazer, na certeza de que em nada podem ancorar qualquer posse causal.
    
8. Depois, há ainda um aspecto que não se mostra despiciendo.
Para além da alegação na art. 16º da p.i. de que agiram com a convicção e se comportaram como únicos donos e proprietários – prova não feita – essa alegação só posteriormente nos autos vem a ser precisada, particularmente em sede de recurso, ao sustentar-se que a pretensão incide apenas sobre as construções e já não sobre os terrenos, porventura para tornear a inibição do art. 7º da Lei Básica.
Chega até a aludir-se a um eventual direito de superfície para fugir à questão da titularidade da RAEM sobre os terrenos, ficando-se, então, sem se saber, se terão agido como proprietários ou superficiários. Mas sobre este ponto não deixamos de reconhecer que não tem o cidadão comum, que exerce os seus poderes de gozo e disposição sobre a coisa, de caracterizar juridicamente, ele próprio, a sua actuação.
9. De todo o modo, não deixa de relevar de uma forma muito marcante e incisiva a dificuldade que sempre resultaria da satisfação da pretensão que não distingue uma área considerável de terreno, sem qualquer edificação, tal como já acima referido.
Razões por que somos a sufragar a decisão proferida, enquanto julgou improcedente a acção.
10. Tanto basta para que nos escusemos à apreciação daquela questão delicada da possibilidade de reconhecimento da posse sobre edifícios implantados em terrenos.
É que se, por um lado, o objecto da posse são edificações e, na mesma linha, ainda não está em causa, com o registo da mera posse, a atribuição de qualquer direito -, sendo essa apenas uma questão que se colocaria a jusante, por outro lado, na linha que levaria em direcção contrária, qual fosse a da denegação desse reconhecimento e registo, a dificuldade sempre assentaria na indissociabilidade entre uma edificação – que abstractamente até podiam ser umas barracas – e o terreno da implantação, sem qualquer base jurídica que integrasse essa cisão, em termos de direitos reais – qual direito de domínio útil, superfície, concessão, acessão, servidão -, dificuldade acrescida, meramente em termos comportamentais, pelo facto de o utilizador/possuidor não deixar de fazer uso dos solos que por lei não deixam de pertencer à RAEM, cabendo-lhe a esta a sua gestão nos termos do art. 7º e 10º da Lei de Terras.
Para além de que, no limite, nem sequer se comprova a matéria de facto que possa ajudar à caracterização dos bens em causa em termos de dominialidade privada e, tendo-se o terreno por disponível, ao proibir-se a acessão imobiliária e usucapião nos termos do art. 9º da Lei de Terras (Lei n.º 10/2013), não sendo esta possível, ainda que a jusante, ficaria sem interesse o registo que tivesse por objecto a mera posse. No fundo, algo que o Mmo Juiz também não deixou de referir.
Não há interesse, no entanto, nesta sede e por ora, em “queimar cartuxos” sobre esta vexata quaestio, razão por que dela não curaremos..
    
    IV - DECISÃO
     Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pela recorrente.
Macau, 16 de Fevereiro de 2017,
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho


1 Para os fundamentos no direito privado de que o domínio público não poder ser objecto da posse, cfr. MIGUEL RICARDO MACHADO OLIVEIRA, A POSSE – NA DOUTRINA E NA JURISPRUDÊNCIA, p. 32 e segs.
2 Apesar de ser proibido adquirir, por meio de acessão, o direito de propriedade dos terrenos nos termos do art.º 9.º da Lei n.º 10/2013.
3 Existe a seguinte teoria : “Relativamente ao registo da mera posse, não obstruindo o curso tabular do direito pré-inscrito nem de maneira nenhuma pondo em causa a sua consistência, importa saber para que serve e o que significa.
Ao que serve não é difícil de responder: para abreviar o tempo da usucapião. Fora este, outro mérito não somos capazes de encontrar para a inscrição da posse. E se este é o seu préstimo, também a pouco mais se resume o seu significado. O registo da mera posse tem carácter meramente enunciativo, o que, nas palavras de OLIVEIRA ASCENSÃO, significa que «a inscrição não pode acrescentar nada à situação substantiva, esgotando-se a sua função na genérica mera notícia do facto a que se reporte» 8. Por conseguinte, à excepção do que se assinalou, todos os efeitos da posse, com a tutela que o ordenamento genericamente lhes dispense, produzem-se fora e independentemente do registo. Ao contrário do de propriedade, designadamente, o registo da mera posse não faz presumir que a posse actualmente exista a favor do respectivo «titular inscrito». Na verdade, mesmo quem defende que a posse é ela própria um direito, e um direito de natureza real, que não somente uma situação de facto juridicamente relevante, é forçado a admitir que se trata de direito que vive, e só vive, enquanto corresponder ao exercício efectivo dos poderes inerentes a um dos típicos e consagrados direitos reais cujo licere concretamente actua. Como escreve HENRIQUE MESQUITA, na posse «o facto acompanha indissoluvelmente o direito, em tais termos que este se extinguirá logo que o facto deixe de existir» 9. Não é portanto o ingresso no registo que, desvirtuando-a no que tem de essencial, pode isentar a posse de ter de ser o exercício de poderes fácticos, ou a possibilidade de exercê-los, em que por definição consiste. O que portanto significa, neste caso particular da posse, que o registo assevera decerto um passado (uma cada posse, com determinados sinais, cuja existência foi reconhecida pelo meio próprio – Ccivil, art.º 1295.º, n.º 2), mas já nada pode afirmar quanto à existência e manutenção dessa posse hoje. E é por isso que quando – e se – chegar a hora do beneficiário do registo dele querer tirar partido para mais depressa invocar a usucapião, cumprir-lhe-á fazer prova de que manteve a posse por determinado prazo (Ccivil, art.º 1295.º, n.º 1, als. a e b), não lhe bastando para tanto a mera invocação do registo do facto, o qual, como se disse, para este efeito não releva. Se há presunção que aqui possa operar, ela não é a do registo – não deriva dele, não é criação dele, não é virtude dele – mas sim a da própria lei, que no n.º 2 do art.º 1257.º, do Ccivil faz presumir a conservação da posse em quem a começou.” Vide PARECER, Pº RP 303/2004-DSJ-CT, in http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2004/p-rp-303-2004-dsj-ct1559/downloadFile/file/prp303-2004.pdf?nocache=1315991990.26.
4 - Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 5ª ed., 1993, 80
5 - ob. cit., 88
6 - Posse ou Posses?, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2005
7 - Ob. cit., 27
8 - Introdução à Posse, RLJ, 3780, 105
9 - Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogmáticas actuais, 3.ª ed., n.º 25.III; Pinto Duarte, Curso de Dts Reais, n.º 5.2.1; Carvalho Fernandes, lições de Dts Reais, 4.ª ed., n.º 133. II.
10 - CCAnot., III, 2.ª ed., Coimbra Editora, 65
11 - Direito Civil – Reais, 5.ª ed., , Coimbra Editora, 1993, p. 359.
12 - Ob. cit., 95
13 - Oliveira Ascensão, ob. cit., 75
14 - Menezes Cordeiro, Dts Reais, 1979, 859
15 - Oliveira Ascensão, ob. cit., 76
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783/2016 30/30