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Processo nº 893/2016
(Autos de recurso laboral)

Data: 16/Fevereiro/2017

Assunto: A
Contrato a favor de terceiro

SUMÁRIO
      Tendo a Ré ora recorrente prometido perante uma Sociedade fornecedora de mão-de-obra não residente proporcionar condições remuneratórias mínimas e outras regalias aos trabalhadores a contratar, e sendo o Autor ora recorrido um dos trabalhadores contratados nessas circunstâncias, não deixaria de ser ele o terceiro beneficiário na relação estabelecida entre a recorrente e a Sociedade, e por conseguinte, passando a ter direito a uma prestação, independentemente de aceitação, nos termos estipulados no artigo 438º, nº 1 do Código Civil.
       
O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 893/2016
(Autos de recurso laboral)

Data: 16/Fevereiro/2017

Recorrente:
- A, Ltd (Ré)

Recorrido:
- B (Autor)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
B intentou junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM a presente acção de processo comum do trabalho, pedindo a condenação da A, Ltd no pagamento do montante de MOP$255.868,00, acrescido de juros legais até integral e efectivo pagamento.
Realizado o julgamento, foi a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de MOP$36.786,20, acrescida de juros moratórios à taxa legal a contar do trânsito em julgado da sentença que procede à liquidação do quantum indemnizatório.
Inconformada com a sentença, dela interpôs a Ré recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
a. O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços.
b. A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente.
c. Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador.
d. É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho.
e. Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho.
f. Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3º e 9º.
g. Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil.
h. Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta.
i. As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como “contratos de prestação de serviços”.
j. Deles é possível extrair que a Sociedade “contratou” trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.
k. Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros.
l. Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro.
m. Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contraprestação de obrigações.
n. A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro.
o. Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro.
p. Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços.
q. Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro.
r. Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário.
s. Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º, n.º 2 do Código Civil (princípio res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest).
t. Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal.
u. Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse.
v. Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A., sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede a qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro.
w. Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A., de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos.
x. Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º, n.º 2 e 437º do Código Civil.
y. Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A. para reclamar quaisquer “condições mais favoráveis” emergentes destes contratos.
z. Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais.
aa. Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos deverá decorrer a absolvição da R. também quanto ao pedido formulado a título de trabalho extraordinário.
bb) Do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A. qualquer direito a título de subsídio de alimentação.
cc. Por outro lado, não se provou nos autos qual o número de dias de trabalho efectivo prestados pelo A. à R.
dd) Ao decidir no sentido em que o fez, o Tribunal recorrido incorreu em errada interpretação da estipulação dos contratos sobre o subsídio de alimentação, violando o art. 228º, n.º 1 do Código Civil.
ee. O devido entendimento quanto à ineficácia obrigacional do Despacho e dos Contratos deve igualmente conduzir à absolvição da R. do pedido formulado a título de subsídio de efectividade.
Conclui, pedindo que se conceda provimento ao recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida.
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Devidamente notificado, o recorrido não apresentou resposta ao recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores, entre outros. (A)
Desde o ano de 1992, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior», entre outros. (B)
Desde 1994, a Ré celebrou com a C Lda., entre outros, os «contratos de prestação de serviços»: n.º 02/94, de 03/01/1994; n.º 29/94, de 11/05/1994; n.º 45/94, de 27/12/1994. (C)
Entre Julho de 1994 e 30/11/2002, o Autor esteve ao serviço da Ré, exercendo funções de “guarda de segurança”. (D)
Do teor do contrato aludido em C) resultava que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré teriam direito a auferir no mínimo MOP$90,00 diárias, acrescidas de MOP$15,00 diárias a título de subsídio de alimentação, um subsídio mensal de efectividade «igual ao salário de quatro dias», sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço, sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, sendo o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau. (E)
Posteriormente, o Contrato de Prestação de Serviços n.º 02/94 foi substituído pelo Despacho n.º 03010/IMO/SEF/2001, de 16/10/2001, com efeitos a partir de 18/01/2002 até 18/01/2003 (Cfr. Doc. 2, que se junta para os legais efeitos). (F)
Durante todo o período da relação de trabalho, a Ré nunca atribuiu ao Autor um qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, tendo sido remunerado pela Ré com o valor de uma retribuição diária, em singelo. (G)
Durante todo o período da relação de trabalho, o Autor auferiu da Ré, a título de salário anual e de salário normal diário, as quantias que abaixo se discrimina: (H)
ano
salário normal diário (A)
1995
90
1996
90
1997
90
1998
90
1999
90
2000
90
2001
90
2002
90
O Autor exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré, ininterruptamente, ao abrigo dos contratos aludidos em C) e F). (1º)
Entre 1 de Outubro de 1995 e 30 de Junho de 1997, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$1,700.00, mensais. (2º)
Entre 1 de Julho de 1997 e 31 de Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1,800.00 mensais. (3º)
Entre Abril de 1998 e 30 de Novembro de 2002, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,000.00 mensais. (4º)
Entre 13 de Novembro de 2000 e 18 de Janeiro de 2002, o Autor trabalhou em turnos de 10 horas de trabalho por dia, o que corresponde à prestação por parte do Autor de 2 horas de trabalho extraordinário por dia. (7º)
A Ré sempre remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$9.30 por hora. (8º)
Até Janeiro de 2002, a Ré nunca pagou ao Autor uma qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (9º)
Entre 13 de Novembro de 2000 e 30 de Novembro de 2002, nunca o Autor – sem conhecimento e autorização prévia pela Ré – deu qualquer falta ao trabalho. (10º)
A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de «subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias». (11º)
Entre 13 de Novembro de 2000 e 30 de Novembro de 2002, nunca o Autor gozou de qualquer dia a título de descanso semanal, com excepção de 4 dias no ano 2000 e 45 dias no ano 2001. (12º)
A Ré nunca fixou ou conferiu ao Autor o gozo de um outro dia de descanso compensatório em virtude do trabalho prestado em dia de descanso semanal. (14º)
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Da aplicação do direito: configuração de contrato a favor de terceiros
A propósito da questão invocada pela recorrente A, este TSI já teve oportunidade de se pronunciar, de forma unânime, em vários processos congéneres, sobre o tipo de relação estabelecida entre a recorrente e a Administração e a natureza jurídica do negócio celebrado entre a recorrente e a C, Limitada (sociedade prestadora de serviços).
Em todas as decisões proferidas no âmbito desses processos1, firmou jurisprudência uniforme de que está perante um contrato a favor de terceiro plasmado no artigo 437º do Código Civil, na medida em que, por meio desse contrato, é atribuído um benefício a um terceiro, a ele estranho, que adquire um direito próprio a essa vantagem.
No caso vertente, tendo-se a Ré ora recorrente comprometido com dada sociedade prestadora de serviços a dar trabalho ao Autor ora recorrido, bem como assumido o compromisso de lhe oferecer determinadas condições de trabalho, fica aquela obrigada a cumprir, no mínimo, as condições de trabalho assumidos no contrato celebrado entre a recorrente e a respectiva sociedade prestadora de serviços, ao abrigo do qual o Autor foi autorizado a trabalhar em Macau.
Na esteira do tal entendimento jurisprudencial, continuamos a entender ser essa a melhor solução para o caso, não se descortinando razão para alterar a posição já assumida nesta Instância.
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Das diferenças salariais, trabalho extraordinário e subsídio de efectividade
Concluído que o contrato de prestação de serviços celebrado entre a recorrente e a C Limitada consubstancia como sendo um contrato a favor de terceiro, é forçoso concluir que a decisão de condenação da recorrente no pagamento das diferenças salariais, do trabalho extraordinário e do subsídio de efectividade não merece qualquer reparo.
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Do subsídio de alimentação
Concluído que o contrato de prestação de serviços celebrado entre a recorrente e a C Limitada consubstancia como sendo um contrato a favor de terceiro, também deveria a recorrente ser condenada no pagamento do subsídio de alimentação, se assim tivesse sido acordado.
No concernente ao subsídio de alimentação, entende a Ré que o subsídio de alimentação depende da prova do número de dias de trabalho efectivamente prestados pelo Autor, e não obstante ter sido provado que aquele nunca faltou sem justificação ou autorização, sempre restariam os dias em que implicitamente reconhece ter faltado com justificação ou autorização, pelo que entende não poder o Tribunal a quo ter condenado a recorrente nos termos em que o fez.
Vejamos.
No caso vertente, ficou provado que o Autor tinha direito a auferir da Ré subsídio de alimentação, mas esta nunca pagou ao Autor qualquer quantia a esse título, para além de que o Autor nunca deu qualquer falta ao trabalho sem conhecimento e autorização e prévia pela Ré ora recorrente.
Na esteira da jurisprudência deste TSI, designadamente nos Acórdãos dos Processos 376/2012, 322/2013, 78/2012, 414/2012, 317/2016, 815/2016, assinala-se que a atribuição do subsídio de alimentação depende da prestação de serviço efectivo, isto significa que, para se poder efectuar o cálculo do respectivo subsídio, terá que se apurar o número de dias de trabalho efectivamente prestados pelo Autor.
Nesta conformidade, uma vez que não foi apurado o número de dias de trabalho efectivo, deve a sentença recorrida ser revogada quanto a esta parte e, em consequência, ser a Ré ora recorrente condenada a pagar ao Autor o subsídio de alimentação, cujo valor se relega para execução de sentença, nos termos do artigo 564º, nº 2 do Código de Processo Civil.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela recorrente A, Ltd (Ré), revogando a sentença na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de MOP$6.480,00, a título de subsídio de alimentação, relegando-se para execução de sentença o que aí vier a ser apurado em função dos dias de trabalho efectivo, nos termos do artigo 564º, nº 2 do Código de Processo Civil.
Confirmando-se a sentença em tudo o mais.
Custas pelas partes, em ambas as instâncias, na proporção do decaimento.
Registe e notifique.
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RAEM, 16 de Fevereiro de 2017
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira

1 A título exemplificativo, citam-se os mais recentes Acórdãos deste TSI: 274/2016, 317/2016, 322/2016, 376/2016 e 815/2016.
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Recurso Laboral 893/2016 Página 14