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--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). ----------
--- Data: 21/2/2017 ---------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Dr. Dias Azedo -----------------------------------------------------------------------------

Processo nº 102/2017
(Autos de recurso penal)

(Decisão sumária – art. 407°, n.° 6, al. b) do C.P.P.M.)

Relatório

1. A, arguido com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado pela prática como autor material de 1 crime de “usura”, p. e p. pelo art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 7 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos; (cfr., fls. 143 a 148 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, veio o arguido recorrer, imputando à sentença recorrida os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua absolvição; (cfr., fls. 158 a 159-v).

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Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 162 a 163).

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Neste T.S.I., juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Condenado na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dois anos, pela prática de um crime de usura da previsão do artigo 219.°, n.° 1, do Código Penal, vem A impugnar a sentença condenatória, imputando-lhe os vícios de insuficiência, para a decisão, da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova.
Afigura-se que a argumentação do recorrente está votada ao insucesso, tal como a Exm.a colega faz notar na sua resposta à motivação do recurso, cujo teor acompanhamos.
O recorrente faz uma leitura sui generis da prova e enuncia uma série de factos que não ficaram demonstrados, dando a entender que, sem essa demonstração, não se pode concluir pela prática de um crime de usura, mas tão só pela existência de um contrato de mútuo entre si e o ofendido. É a partir deste raciocínio, cremos, que alvitra a insuficiência da matéria de facto.
Mas não tem razão.
A prova para a condenação penal não tem que ser exaurida ao ponto da certeza suprema, absoluta, bastando-se com a certeza acima de qualquer dúvida razoável. Ora, essa prova exigível foi produzida, conforme resulta da própria sentença, da sua fundamentação e do exame crítico das provas, apresentando-se manifestamente suficiente para alicerçar e sustentar a convicção do julgador.
Os pontos que o recorrente chama à colação para lançar a dúvida sobre a justeza da condenação, além de não serem essenciais, muito menos imprescindíveis, para dar como provado o cometimento do crime, são, alguns deles, até descabidos. Como as regras da experiência ensinam, não é usual os agiotas passarem recibos. E também não é normal que uma pessoa necessitada e fragilizada, ao ponto de se colocar nas mãos e ao alcance do apetite voraz de um usurário, adopte perante este uma postura de confronto e lhe exija a passagem de recibos.
Por outro lado, nenhum erro se detecta na apreciação da prova, muito menos o notório erro exigido pela norma do artigo 400.°, n.° 2, alínea c), do Código do Processo Penal.
A ponderação dos elementos probatórios ao dispor do tribunal, que constam da acta e da fundamentação da sentença, permite perfeitamente chegar ao juízo adoptado em sede de matéria de facto. E nenhumas dúvidas relevantes se colocaram ao tribunal que impusessem o apelo ao princípio in dubio pro reo. O que se passa é que o recorrente tem a sua própria visão da prova, que não pode, naturalmente, impor ao tribunal.
A jurisprudência dos tribunais superiores vem entendendo que o erro notório na apreciação da prova pressupõe que a partir de um facto se extraia uma conclusão inaceitável, que sejam preteridas regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou que se violem as regras da experiência ou as leges artis na apreciação da prova – cf., v.g., acórdão do Tribunal de Última Instância, de 4 de Março de 2015, exarado no Processo n.° 9/2015 –, o que decididamente não sucedeu na sentença objecto de escrutínio.
Improcede, pois, a argumentação do recorrente, não merecendo a douta decisão recorrida qualquer reparo, pelo que deve ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 209 a 210).

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Em sede de exame preliminar constatou-se da manifesta improcedência do presente recurso, e, nesta conformidade, atento o estatuído no art. 407°, n.° 6, al. b) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M., (redacção dada pela Lei n.° 9/2013, aplicável aos presentes autos nos termos do seu art. 6°, n.° 1 e 2, al. 2), passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 144-v a 145-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer da referida sentença que o condenou pela prática como autor material de 1 crime de “usura”, p. e p. pelo art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 7 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos.

Considera que a dita sentença padece de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “erro notório na apreciação da prova”, pedindo a sua absolvição.

Porém, é evidente que nenhuma razão lhe assiste sendo de sufragar, na íntegra, o teor do douto Parecer do Exmo. Representante do Ministério Público que dá cabal e clara resposta ao recurso em questão e que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

Seja como for, não se deixa de dizer o que segue.

–– Comecemos pelo assacado vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Como repetidamente temos afirmado:

O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 10.03.2016, Proc. n.° 95/2016, de 02.06.2016, Proc. n.° 1062/2015 e de 19.01.2017, Proc. n.° 549/2016).

E, no caso dos autos, de uma mera leitura à sentença recorrida se colhe que não deixou o Colectivo de elencar a factualidade que julgou provada, indicando a que resultou não provada, evidente sendo que apenas por equívoco se poderá dar por verificado tal vício.

Continuemos.

–– Sobre o vício de “erro notório” tem este T.S.I. consignado que:

“O erro notório na apreciação da prova apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 07.12.2016, Proc. n.° 177/2016, de 12.01.2017, Proc. n.° 498/2016 e de 26.01.2017, Proc. n.° 776/2016).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 12.01.2017, Proc. n.° 382/2016, de 19.01.2017, Proc. n.° 549/2016 e de 26.01.2017, Proc. n.° 744/2016).

E, sendo de se manter o que se expôs sobre o “vício” pela recorrente imputado à decisão recorrida, patente é que o mesmo não existe, pois que o Tribunal a quo apreciou a prova em conformidade com o “princípio da livre apreciação” consagrado no art. 114° do C.P.P.M., decidindo com clareza, lógica e de a acordo com a normalidade das coisas, não se vislumbrando onde, como, ou em que termos tenha violado qualquer regra sobre o valor das provas legais ou tarifadas, regra de experiência ou legis artis; (aliás, como se pode ver da exposição feita em sede da
“fundamentação da sua convicção”, onde consignou que “O arguido prestou voluntariamente declarações em audiência, negando ter praticado o facto criminoso que lhe foi imputado. Alegou não conhecer ou ter visto o ofendido, nem ter-se deslocado ao Edf. XX indicado pelo ofendido, acrescentando não saber por que razão foi acusado da prática dos referidos factos.
A testemunha B relatou em audiência o caso, alegando que, em Maio de 2012, não tinha dinheiro para pagar a renda da casa e teve conhecimento, através de um homem chamado “Man Chai”, de que o arguido concedia empréstimos, assim, telefonou-lhe para pedir dinheiro. Depois, as duas partes assinaram o recibo de empréstimo na casa dele e da sua ex-mulher C. Tal recibo, sob exigência do arguido, foi feito na fotocópia do seu bilhete de identidade, cujo teor, em síntese, disse que por ter dificuldades financeiras o signatário pediu ao arguido uma quantia de HKD6.000,00 que seria restituída em prestações. O recibo de empréstimo não disse nada sobre os juros, mas a taxa de juros era realmente 10% a 10 dias. O arguido disse-lhe para se preparar a restituição do dinheiro, referindo ainda que caso não conseguisse pagar o empréstimo, ele “pode pagar o pequeno (juros) se não tenha grande (capital + juros)”. A testemunha alegou que o recibo de empréstimo foi feito num exemplar único que ficou com o arguido. Depois, ele tinha pagado por três a quatro vezes os juros (no valor de HKD600 por prestação) de cinco prestações nos locais tais como o Restaurante McDonald em Fai Chi Kei, Nova Yaohan, etc. A partir da altura para pagar a sexta prestação a testemunha já não era capaz de efectuar o pagamento. Finalmente, o arguido chegou a combinar com a testemunha para esta pagar mais uma quantia de HKD8.000,00, no sentido de liquidar a dívida. Tal quantia seria paga em três prestações. A testemunha alegou não ter mais capacidade de restituir a dívida depois de pagar HKD3.000, no Jardim Luís de Camões. A testemunha só revelou dever dinheiro a alguém quando foi perguntado pela ex-mulher, e nunca recebeu recibos do arguido pelo dinheiro que devolveu.
A testemunha C alegou que, uns dias antes de alguém atirou tinta vermelha contra a sua casa, o arguido foi a casa dela bater a porta à procura de B e disse “B está em casa? Este é o filho de Lo!” (sic) O arguido disse em seguida que B lhe devia dinheiro, perguntando à testemunha “ajuda-o a pagar a dívida?” A testemunha disse ao arguido que já não tinha qualquer relação com B e este já não morava ali. Posteriormente, a testemunha perguntou a B, este admitiu que, para conseguir obter o empréstimo, levou alguém à casa para inspeccionar e nela assinou o recibo de empréstimo. Uma vez já se separou de B, a testemunha recusou-se a pagar a dívida, por isso não precisava de perguntar a B o valor concreto do empréstimo. A testemunha acrescentou não conhecer o arguido. Apesar de o arguido usar cabelo loiro quando exigiu a restituição da dívida, a testemunha, em audiência, manifestou ter certeza de que o arguido era a pessoa que exigiu a dívida naquele dia.
O agente da Polícia Judiciária D prestou depoimento em audiência, alegando que B conseguiu fornecer o nome completo e número do telefone do arguido quando o denunciou. Com os dados fornecidos conseguiu encontrar no banco de dados policial os dados iguais aos do arguido. Na identificação efectuada, as testemunhas B e C identificaram o arguido como o autor do caso. Efectuada a investigação, a Polícia encontrou na mota do arguido um recibo do empréstimo que o arguido concedeu a um homem.
Analisadas as declarações do arguido e depoimentos da testemunha, bem como as provas documentais e demais provas, o arguido negou ter emprestado dinheiro à testemunha B e ter-lhe cobrado juros, acrescentando não conhecer ou ter visto B e C. Ainda que exista, nesta causa, uma falta de documento relativo ao empréstimo, o depoimento de C, em que expôs clara e detalhadamente o ocorrido, e a informação manifestada na queixa feita à Polícia comprovam que em Setembro de 2012 o arguido foi à casa da testemunha para exigir a dívida de B. Dado que nunca tinha visto o arguido e já se separou com o ex-marido B (quebrou-se a relação conjugal), a testemunha recusou-se a ajudar B a pagar a dívida, daí verifica-se que o depoimento da testemunha é verdadeiro e objectivo, sendo credível. Segundo as regras da experiência, caso o arguido não conhecesse B, como conseguiu ir à referida habitação à procura de B e exigiu C para pagar a dívida do ofendido? Tal facto desmente a alegação do arguido de não ter emprestado dinheiro a B e de não ter visto B e C. Tendo analisado criticamente o depoimento da testemunha B prestado em audiência, embora o facto, invocado por ele, de restituir HKD8.000,00 tal como combinado não corresponda ao teor da acusação, da informação pormenorizada fornecida, tais como o valor do empréstimo, o cálculo dos juros, a situação em que foi obtido o empréstimo, o número de vezes que o ofendido pagou os juros, locais e a continuidade do facto, conjugada com o resultado da investigação da Polícia Judiciária, o Tribunal entende serem relativamente críveis os depoimentos testemunhais e a partir dos quais e de toda a prova produzida em audiência, formou a sua convicção. Verificam se provas suficientes nesta causa para dar como provados os factos acima expostos”).

Dest’arte e limitando-se o recorrente a insistir na sua “versão”, onde nega a prática dos factos dados como provados, à vista está que tão só afronta o princípio do art. 114° do C.P.P.M..

Por sua vez, apresentando os factos provados todos os elementos típicos do crime pelo qual foi condenado, óbvio é que o recurso não pode proceder.

Decisão

4. Em face do exposto, decide-se rejeitar o recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs, e como sanção pela rejeição do recurso o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 3 do C.P.P.M.).

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 21 de Fevereiro de 2017
José Maria Dias Azedo
Proc. 102/2017 Pág. 14

Proc. 102/2017 Pág. 13