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Processo n.º 6/2017. Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal.
Recorrentes: A, B, C e D.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal. Oposição de acórdãos. Vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Objecto do processo.
Data do Acórdão: 24 de Março de 2017.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Está dentro do objecto do processo facto omitido pela sentença, plenamente provado por documento, que conduzia à absolvição inelutável do arguido, mesmo que não constante da acusação e da contestação do arguido.
II – Não há oposição entre este entendimento e o resultante do acórdão de 21 de Julho de 2016, no Processo n.º 626/2014, do Tribunal de Segunda Instância, que julgou improceder o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na medida em que o tribunal de 1.ª instância apreciou toda a matéria da acusação e defesa (contestações dos arguidos), o que constitui o objecto do processo, sendo irrelevante outra matéria alegada pelos arguidos na audiência de julgamento.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, B, C e D, 2.º, 4.º, 5.º e 6.º arguidos, interpõem recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão de 21 de Julho de 2016, no Processo n.º 626/2014, do Tribunal de Segunda Instância (TSI), com fundamento em o mesmo se encontrar em oposição com o Acórdão do mesmo Tribunal, de 14 de Maio de 2015, no Processo n.º 323/2015.
De acordo com os recorrentes, a oposição entre os dois acórdãos consiste no seguinte:
Enquanto que no acórdão recorrido se entendeu improceder o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na medida em que o tribunal de 1.ª instância apreciou toda a matéria da acusação e defesa (contestações dos arguidos), o que constitui o objecto do processo, sendo irrelevante outra matéria alegada pelos arguidos na audiência de julgamento, no acórdão fundamento teve-se outro entendimento, decidindo-se que o tribunal recorrido devia ter conhecido de uma questão de facto suscitada pelo Ministério Público na audiência, embora não constante da acusação nem da contestação do arguido.
O Ex.mo Procurador-Adjunto, na resposta à motivação, pronuncia-se pela rejeição do recurso, pois que no acórdão fundamento, quando foi realizada a audiência de julgamento em 1.ª instância, os documentos tendentes a provar que o arguido não estava em Macau já estavam juntos aos autos, sendo que tal facto conduziria à absolvição do arguido, pelo que é plenamente justificável que tal facto se considerasse integrante do objecto do processo.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.


II - Fundamentos
1. Requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal.
Cabe proferir a decisão a que se refere o n.º 1 do artigo 423.º do Código de Processo Penal, isto é, decidir se o recurso deve prosseguir ou se deve ser rejeitado, por ocorrer motivo de inadmissibilidade ou por não existir oposição de julgados.
Seguimos aqui o que dissemos no acórdão de 23 de Setembro de 2015, no Processo n.º 59/2015.
Dispõe o artigo 419.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pelo artigo 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20.12:
“Artigo 419 º
Fundamento do recurso

1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.

Face a esta norma, trata-se de saber:
- Se foram proferidos dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- Se as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- Se o acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado;
- Se do acórdão recorrido não era admissível recurso ordinário;
- Se o recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, ou seja do acórdão recorrido (n.º 1 do artigo 420.º do Código de Processo Penal).

2. Existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas
Relativamente ao pressuposto fundamental em questão – existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas - tem-se considerado (por exemplo, no acórdão do TUI, de 11 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009) que:
As decisões devem ser diversas, opostas, não necessariamente contraditórias.
A oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita. Não basta que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.
A questão decidida pelos dois acórdãos deve ser idêntica e não apenas análoga. A este respeito tem-se entendido que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos.
A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto.
A questão sobre a qual há oposição tem de ser uma questão de direito. Não pode ser uma questão de facto, até porque o TUI não aprecia, normalmente, matéria de facto.
Se uma referência, de um Acórdão, sobre uma questão jurídica, não se consubstancia numa decisão, nunca pode haver oposição de acórdãos conducente a uma decisão uniformizadora de jurisprudência por parte do TUI (acórdão do TUI, de 31 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009).
A parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão. Os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam (acórdão do TUI, de 31 de Março de 2009, no Processo n.º 6/2009).

3. O caso dos autos
É exacto que no acórdão recorrido, seguindo, aliás, jurisprudência constante deste Tribunal de Última Instância (TUI) se entendeu que o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consiste numa lacuna no apuramento da matéria de facto, dentro do objecto do processo, de modo que a matéria de facto provada se apresente insuficiente ou incompleta para fundamentar a decisão proferida. No mesmo acórdão recorrido considerou-se, ainda, que os recorrentes nas suas contestações nunca tinham alegado os factos que agora sustentavam que o tribunal de 1.ª instância deveria ter apurado, pelo que a decisão recorrida apreciou completamente o objecto do processo.
Tais factos eram os seguintes:
Os recorrentes eram acusados do crime de branqueamento de capitais. Relativamente ao crime precedente, praticado no Interior da China, exploração ilícita de jogo, sob a forma de associação criminosa, pelo qual foram condenados pelos respectivos Tribunais, alegaram os recorrentes que a sentença de 1.ª instância enfermava de insuficiência da matéria de facto, porquanto o Tribunal a quo não tinha provado as circunstâncias de crime, tais como se o casino foi gerido sob a forma de empresas de capitais mistos ou de capitais inteiramente detidos pelos próprios, através de quem é que foram as linhas e os servidores destinados para jogos via internet instalados em Guangzhou, Dongguan e Foshan, como funciona a colocação de apostas via chamadas telefónicas, a situação concreta da colocação de apostas directamente via internet, e a repartição concreta dos proventos ilícitos entre os arguidos.
É também certo que no acórdão fundamento teve-se, aparentemente, outro entendimento, decidindo-se que o tribunal recorrido devia ter conhecido de uma questão de facto suscitada pelo Ministério Público na audiência, embora não constante da acusação, nem da contestação do arguido.
Só que, como bem atenta o Ex.mo Procurador-Adjunto, nas suas alegações, o condicionalismo, no caso do acórdão fundamento era totalmente diverso do do acórdão recorrido.
Relembremos este caso.
Tratava-se da prática de uma contravenção imputada ao arguido, consistente em desrespeito da obrigação de paragem imposta pela luz vermelha de sinal luminoso de trânsito, apenas por ser proprietário do veículo, dado não se ter apurado quem o conduzia na ocasião da infracção.
Quando o Ex.mo Juiz proferiu sentença de condenação encontrava-se junto aos autos documento emitido pela autoridade fronteiriça de Macau, onde se comprovava que na ocasião da infracção o arguido estava fora de Macau, sendo que o Ex.mo Juiz não deu como provado este facto que, segundo o acórdão fundamento, levaria à absolvição do arguido, de acordo com as normas jurídicas aplicáveis, questão esta que não nos cumpre apreciar.
Embora o facto em causa não constasse da acusação – no caso constituído pelo auto de notícia da contravenção – nem da contestação do arguido – é inteiramente justificável considerar que o facto omitido pela sentença deveria constituir objecto do processo por se tratar de facto plenamente provado por documento, que conduzia à absolvição inelutável do arguido, sendo que este acabou por ser condenado pela mesma contravenção.
Por outro lado, é também pacífico que o juiz tem um poder-dever de considerar factos não constantes da acusação (ou pronúncia), das contestações, e dos articulados do pedido cível, se no decurso da audiência resultarem factos com relevo para a decisão da causa, nos termos do disposto nos artigos 339.º e 340.º do Código de Processo Penal (acórdãos deste TUI, de 4 de Março de 2015, 26 de Março de 2014, 19 de Março de 2014, 6 de Novembro de 2013, 10 de Julho de 2013 e 24 de Abril de 2013, respectivamente, nos Processos n.os 9/2015, 4/2014, 5/2014, 51/2013, 29/2013 e 17/2013)
Por isso, se nos afigura não haver oposição entre as decisões sobre a mesma questão de direito.
Está, pois, prejudicado o exame dos restantes requisitos do recurso.

III - Decisão
Face ao expendido, rejeita-se o recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Macau, 24 de Março de 2017.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
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