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Processo n.º 5/2017. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: A e B.
Recorridos: C, D, E, F e G.
Assunto: Contrato-promessa de compra e venda. Sinal. Incumprimento definitivo. Alienação a terceiro do imóvel prometido vender. Aplicação da lei no tempo em matéria de contratos. Lei nova. Lei antiga. Artigo 11.º do Código Civil. Dano excedente. N.º 4 do artigo 436.º do Código Civil.
Data do Acórdão: 30 de Março de 2017.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
  I – Se o promitente-vendedor aliena a terceiro a coisa prometida vender, sem ter reservado para si um direito que o habilite a recuperar a coisa alienada, coloca-se em situação de, por sua culpa, se ter tornado impossível a prestação a que se obrigara.
II – Em matéria de aplicação da lei no tempo, relativamente às situações jurídicas constituídas na vigência da lei antiga que subsistem quando entra em vigor a nova lei, dispõe a segunda parte do n.º 2 do artigo 11.º do Código Civil que, quando a lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Já quando a lei não abstrai dos factos que lhes deram origem, deve entender-se que continua a aplicar-se a lei antiga.
III – Em matéria de contratos, em princípio, a lei não abstrai dos factos que lhes deram origem, pelo que se continua a aplicar a lei antiga às situações jurídicas anteriores, que subsistem, em homenagem ao princípio da autonomia da vontade.
IV – Não obstante a conclusão mencionada na alínea anterior, aplica-se a lei nova aos contratos duradouros sempre que exigências de ordem pública o determinem, nomeadamente em todos os critérios inovadoramente instituídos pelo legislador, que visem a protecção da parte socialmente mais fraca da relação contratual.
V - Igualmente, no que se refere às disposições de carácter imperativo ou proibitivo da lei nova, que respeitam à violação do contrato, aplica-se, em princípio, a lei nova aos factos violadores do contrato ocorridos na sua vigência.
VI - O momento relevante para se aferir da indemnização pelo dano excedente a que se refere o n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil, é a data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil e não o momento de incumprimento do contrato.
O Relator,

Viriato Manuel Pinheiro de Lima

ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A e B intentaram acção declarativa com processo ordinário contra C, D, E, F e G, formulando vários pedidos principais e subsidiários, com fundamento em contratos-promessa de compra e venda de duas fracções, H9 e I9, do Edifício H, sito na [Endereço (1)], [Endereço (2)], [Endereço (3)] e [Endereço (4)], em Macau, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX, celebrado entre o 1.º autor (promitente-comprador) e a 1.ª ré (promitente- vendedora), não cumpridos por esta.
A sentença de 1.ª Instância decidiu, além do mais:
- Condenar a 1.ª ré C a pagar ao 1.º autor A a quantia de MOP$17,819,000.00 equivalente a HKD$ 17.300.000,00;
- Reconhecer o direito de retenção do 1.º autor A quanto às referidas fracções H9 e I9;
- Absolver os réus dos demais pedidos.
Interposto recurso da sentença pelas 1.ª e 5.ª rés, C e G, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 16 de Junho de 2016, decidiu, além do mais:
- Revogar parcialmente a sentença recorrida;
- Condenar a 1.ª ré C a pagar a 1.º autor A a quantia equivalente ao sinal em dobro, relativamente à fracção “I9” e ao valor da fracção “H9”, no momento em que ela foi vendida ao 4.º R., com dedução do preço convencionado, e devendo ser restituído o sinal e quantias entregues pelo promitente-comprador, valor a apurar em liquidação de execução de sentença, se o valor desse dano objectivamente determinado for superior ao valor do sinal em dobro, sendo este o valor devido se o valor da valorização/desvalorização for inferior;
- Manter o reconhecimento do direito de retenção do 1.º autor A quanto às referidas fracções H9 e I9.
Recorrem os autores para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo, tal como decidiu a sentença de 1.ª Instância, a condenação da 1.ª ré C a pagar a 1.º autor A a quantia de MOP$17,819,000.00, equivalente a HKD$ 17.300.000,00.

Suscita as seguintes questões:
  - O incumprimento dos contratos-promessa dos autos não ocorreu nas datas em que o proprietário as vendeu a terceiros, 5 de Dezembro de 2000 e 4 de Junho de 1999, mas apenas quando a 1.ª ré consignou em depósito o dobro do sinal, em 9 de Setembro de 2011, mostrando não querer cumprir os contratos;
  - O momento relevante para se aferir da indemnização pelo dano excedente a que se refere o n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil é a data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil e não o momento de incumprimento dos contratos.
  
II – Os factos
O Tribunal de 1.ª Instância considerou provados os seguintes factos:
a) Em 10.03.1999 a 1ª R. e o 1º A. subscreveram dois documentos escritos em que aquela prometeu vender a este as fracções autónomas designadas por “H9” e “I9”, do Ed. H, pelos preços de, respectivamente, HKD$350,000.00 (trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong) e HKD$250,000.00 (duzentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong), a pagar na totalidade no momento da celebração e subscrição desses documentos que se encontram juntos a fls. 13 a 16 dos autos e que aqui se consideram integralmente reproduzidos;
b) O prédio, descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, tem actualmente [Endereço (1)], [Endereço (2)], [Endereço (3)] e [Endereço (4)] e encontra-se inscrito sob o artigo n.º XXXXX na Matriz Predial do Concelho de Macau em conformidade com os documentos juntos a fls. 17 a 37 dos autos e que aqui se consideram integralmente reproduzidos;
c) O 1º A. pagou a totalidade dos preços para a compra das fracções à 1ª R. nesse acto e, consequentemente, a mesma emitiu e subscreveu recibos das quantias de HKD$350,000.00 (trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong) e HKD$250,000.00 (duzentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong), na mesma data de 10.03.1999 em conformidade com os documentos juntos a fls. 38 a 39 dos autos e que aqui se consideram integralmente reproduzidos;
d) Por escritura de 04.06.1999, lavrada a fls. 12 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 11 do Notário Privado I, a 1ª R. declarou vender ao 2º R., D, solteiro, maior, pelo preço declarado de MOP$862,640.00 (oitocentas e sessenta e duas mil seiscentas e quarenta patacas) a fracção autónoma “I9”, do prédio descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, aquisição que ficou definitivamente registada a favor do adquirente na mesma Conservatória pela inscrição n.º XXXXXX em conformidade com os documentos juntos a fls. 58 a 63 e 17 a 26 dos autos e que aqui se consideram por integralmente reproduzidos;
e) Por escritura de 18.12.2007, lavrada a fls. 28 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 325 do Notário Privado J, o 2º Réu D, representado por seu procurador S, declarou vender à 3ª R., divorciada, residente na China, pelo preço de MOP$1,100,000.00 (um milhão e cem mil patacas) a fracção autónoma “I9”, do prédio descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, aquisição que ficou definitivamente registada a favor da adquirente na mesma Conservatória pela inscrição n.º XXXXXXX em conformidade com os documentos juntos a fls. 64 a 72 e 27 a 35 dos autos e que aqui se consideram por integralmente reproduzidos;
f) Por escritura de 05.12.2000, lavrada a fls. 40 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 16 do Notário Privado K, a 1.ª R. declarou vender ao 4º R., F, solteiro, maior, residente na China, pelo preço de MOP$11,643,600.00 (onze milhões seiscentas e quarenta e três mil e seiscentas patacas) as fracções autónomas “A5”, “C5”, “E5”, “F5”, “G5”, “H5”, “J5”, “K”, “L5”, “F8”, “L8”, “C9”, “D9”, “E9”, “F9”, “G9”, “H9”, “K9” e “H16”, todas do prédio descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, aquisição que ficou definitivamente registada a favor do adquirente na mesma Conservatória pela inscrição n.º XXXXXX em conformidade com os documentos juntos a fls. 75 a 82 e 17 a 26 dos autos e que aqui se consideram integralmente reproduzidos;
g) Por escritura de 28.02.2011, lavrada a fls. 143 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 7 do Notário Privado L, o 4º R., F, representado por seu procurador S, declarou vender à 5ª R., “G”, pelo preço de MOP$800,000.00 (oitocentas mil patacas) a fracção autónoma “H9”, do prédio descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, aquisição que ficou definitivamente registada a favor da sociedade adquirente na mesma Conservatória pela inscrição n.º XXXXXXX (em conformidade com os documentos juntos a fls. 83 a 111 e 27 a 35 dos autos e que aqui se consideram por integralmente reproduzidos);
h) Por sentenças transitadas em julgado no âmbito dos processos n.º CV1-05-0069-CAO e CV3-05-0072-CAO foi reconhecido, respectivamente, que o ora Réu D era o proprietário da fracção autónoma designada “I9” e que o ora Réu F era o proprietário da fracção autónoma designada “H9”, ambas do prédio melhor descrito em B), e que o ora 1º Autor era titular de um direito de retenção sobre as ditas fracções, em conformidade com o teor das certidões judiciais juntas a fls.112 a 152 dos autos e que aqui se consideram por integralmente reproduzidas;
i) A 5ª R., “G”, com sede em Macau, [Endereço (5)], registada sob o n.º XXXXX(XX) na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, com o capital social de MOP$980,000.00, era em 12/12/2011, detida por M e por sua mulher, N, detendo ambos quotas nos valores nominais de, respectivamente, MOP$520,000.00 e MOP$460,000.00, sendo representada pelo administrador M em conformidade com os documentos juntos a fls. 162 a 164 e a 523 a 529 dos autos e que aqui se consideram integralmente reproduzidos;
j) A 1ª R. “C”, com sede em Macau, [Endereço (6)], registada sob o nº XXXX(XX) na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, com o capital social de MOP$50,000.00, era em 06.01.2012, detida pela “O”, “M” e “P”, respectivamente, titulares de quotas nos valores nominais de MOP$48,000.00, MOP$1,000.00 e MOP$1,000.00, sendo administradores M, com o cargo de gerente-geral, que integra o Gurpo A, e Q e R, com os cargos de vice-gerentes gerais, que integram o Grupo B em conformidade com os documentos juntos a fls. 165 a 168 dos autos e que aqui se consideram integralmente reproduzidos;
k) A “O”, com sede em Macau, na [Endereço (7)], registada sob o nº XXXXX(XX) na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau, com o capital social de MOP$100,000.00, é detida por M e pela “P”, respectivamente, titulares de quotas nos valores nominais de MOP$50,000.00 e MOP$50,000.00, sendo administradores M, com o cargo de gerente-geral, que integra o Grupo A, e Q e R, com os cargos de vice-gerentes gerais que integram o Grupo B em conformidade com os documentos juntos a fls. 169 a 171 dos autos e que aqui se consideram por integralmente reproduzidos;
l) A 1ª R. “C” propôs uma Acção de Consignação em Depósito n.º CV3-11-0045-CPE, pretendendo consignar em depósito o dobro dos preços pagos pelo 1º A., a título de restituição dos preços pagos e indemnizações devidas pelo incumprimento dos contratos-promessa, com o fim de resolver os contratos por si celebrados, acção essa que se encontra suspensa por decisão judicial transitada em julgado;
m) Em 09.09.2011, a 1ª Ré efectuou o depósito aludido em l), no montante total de MOP$1,238,150.00 à ordem dos autos de consignação em depósito n.º CV3-11-0045-CPE em conformidade com os documentos juntos a fls. 530 a 536 dos autos e que aqui se consideram integralmente reproduzidos;
n) O 1º A. adaptou as fracções às necessidades da sua família para nelas instalar a residência da mesma;
o) Na data do acto mencionado na al. a), porque o prédio já se encontrava construído e havia sido emitida a licença de utilização, a 1ª R. entregou as fracções “H9” e “I9” e suas chaves ao 1º A.;
p) Aproximadamente em Setembro de 1999, o 1º A. e sua família começaram a residir nas fracções;
q) Os 2º, 3ª, 4º e 5º RR nunca acederam ou viram as fracções “H9” e “I9”;
r) Até 2005, os RR F e D, nunca solicitaram aos AA a entrega das fracções;
s) A fracção “H9” vale actualmente a quantia de HKD$10,000,000.00 (Dez milhões dólares de Hong Kong);
t) A fracção “I9” vale actualmente a quantia de HKD$7,900,000.00 (Sete milhões novecentos mil dólares de Hong Kong);
u) Os Autores sofrem preocupados com a situação das fracções a que se reportam os autos por correrem o risco de perder a sua casa de morada de família que compraram e decoraram a seu gosto;
v) Os Autores já tiveram de se defender em vários processos propostos em tribunal contra si por causa das fracções autónomas a que se reportam os autos;
w) O 1º Autor despendeu em obras de decoração nas fracções em 1999, a quantia de MOP$305,500.00 para a fracção “H9” e de MOP$273,000.00 para a fracção “I9”;
x) Os AA efectuaram obras de construção nas duas fracções para as tornarem apenas numa.

III - O Direito
1. As questões a apreciar
As questões a apreciar são as de saber:
- Em que data ocorreu o incumprimento dos contratos-promessa;
  - Qual o momento relevante para se aferir da indemnização pelo dano excedente a que se refere o n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil, a data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil, ou o momento de incumprimento do contrato.

2. A data em que ocorreu o incumprimento dos contratos-promessa
Trata-se de saber em que datas ocorreu o incumprimento dos contratos-promessa.
  Por escrituras de 4 de Junho de 1999 e 5 de Dezembro de 2000 a 1.ª ré vendeu a outras pessoas as fracções dos autos, que havia prometido vender ao 1.º autor.
  No acórdão de 30 de Janeiro de 2011, no Processo n.º 44/2011, considerámos não merecer censura o entendimento do acórdão ali recorrido, de que a promitente-vendedora se colocou na posição de não poder cumprir o contrato-promessa celebrado com o autor, ao ter vendido os imóveis a terceiro.
  E acrescentámos:
  «Como explica VAZ SERRA1, o não cumprimento definitivo “não tem de derivar de uma impossibilidade absoluta, no sentido de não poder em caso algum desaparecer”; citando Enneccerus-Lehmann, acrescentava que “também é definitiva a impossibilidade que só possa cessar por um facto extraordinário com que não seja legítimo contar”. Defende que se o promitente-vendedor aliena a terceiro bens que se obrigara a vender ao promitente-comprador, torna, assim, impossível o cumprimento do contrato, desde que não tenha reservado para si um direito que o habilite a recuperar a coisa alienada, pois que, embora subsista a possibilidade de reaquisição, quando essa possibilidade é remota e improvável equivale a uma definitiva impossibilidade. E, como a impossibilidade de cumprimento de um contrato não tem necessariamente que se produzir na data em que ele deve ser cumprido, podendo já produzir-se antes, conclui que o promitente-vendedor, vendendo a coisa (pura e simplesmente) a terceiro, que se obrigara a vender ao promitente-comprador, se coloca “em situação de, por sua culpa, se ter tornado impossível a prestação a que se obrigara”, e que, “a partir do momento em que a alienou, tornou-se impossível o cumprimento do contrato”2 ».
   Sendo este entendimento de manter, não se provando que o promitente-vendedor tenha reservado para si um direito que o habilite a recuperar as coisas alienadas, bem decidiu o acórdão recorrido que o incumprimento definitivo dos contratos-promessa ocorreu aquando da venda das fracções a terceiros, ou seja, em 4 de Junho de 1999, quanto à fracção I9 e 5 de Dezembro de 2000, quanto à fracção H9.

3. Aplicação de lei no tempo
  Cumpriria, agora, estabelecer o momento relevante para se aferir da indemnização pelo dano excedente a que se refere o n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil, se a data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil ou o momento de incumprimento do contrato.
Previamente, há que fixar qual a lei aplicável à violação contratual.
No acórdão deste Tribunal, de 5 de Dezembro de 2008, no Processo n.º 41/2008, fizemos as seguintes reflexões em matéria de aplicação de lei no tempo, no concernente a contratos, referindo-nos ao artigo 11.º do Código Civil:
«A norma relevante para o nosso caso é a segunda do n.º 2 do artigo 11.º:
Quando a lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Estão em causa as situações jurídicas constituídas na vigência da lei antiga que subsistem quando entra em vigor a nova lei.
Nestas situações, “ Se, porém, tratando-se do conteúdo do direito, for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei é já aplicável”3.
Explica J. BAPTISTA MACHADO4:
“É fácil descortinar a ratio legis que está na base desta regra da aplicação imediata: por um lado, o interesse na adaptação à alteração das condições sociais, tomadas naturalmente em conta pela LN5, o interesse no ajustamento às novas concepções e valorações da comunidade e do legislador, bem como a exigência de unidade do ordenamento jurídico, a qual seria posta em causa, e com ela a segurança do comércio jurídico, pela subsistência de um grande número de SsJs6 duradoiras, ou até de carácter perpétuo, regidas por uma lei há muito ab-rogada”.
Tudo está em saber, então, e é aqui que se suscitam as maiores dúvidas, se quando a lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstrai ou não dos factos que lhes deram origem. Se abstrai, aplica-se a lei nova. Se não abstrai aplica-se a lei antiga.
Nesta matéria, “... a atitude aconselhável - na ausência de qualquer prescrição legislativamente reguladora do problema, ou manifestando-se dúvidas justificadas sobre o seu sentido, ou sobre a suficiência do seu fundamento prático-normativo – é a de ponderar o tipo concreto de concorrência de normas no tempo perante o qual se encontra o decidente e tentar compatibilizar praticamente os dois objectivos teoreticamente contrários: o da garantia da estabilidade das situações envolvidas e o da excogitação, para cada situação decidenda, da solução normativamente mais adequada”7.
Assim, por exemplo, celebrado um casamento na vigência da lei antiga, se a lei nova previr deveres de cooperação, de assistência, de contribuir para os encargos da vida familiar, não previstos na lei antiga, é manifesto que se aplica a lei nova, não podendo os cônjuges invocar a lei vigente à data da celebração do casamento para se eximirem aos deveres previstos na lei nova. Isto porque o que está em causa é o conteúdo da relação jurídica, sem relação com o facto que lhe deu origem (segunda parte do n.º 2 do artigo 11.º do Código Civil).
Da mesma forma, se uma nova lei introduzir o divórcio num ordenamento jurídico, ela aplica-se aos casamentos celebrados na vigência da lei antiga, sendo certo que quanto aos fundamentos de divórcio relativos a factos praticados pelos cônjuges, a nova lei só se aplicará aos factos praticados depois da sua entrada em vigor8.
Em matéria de contratos, a doutrina defende, em termos gerais, a aplicação da lei antiga, em homenagem ao princípio da autonomia da vontade.9
Mas mesmo aqueles que defendem esta teoria, na interpretação da segunda parte do n.º 2 do artigo 11.º do Código Civil, têm que conceder que, em muitos casos, se tem de aplicar a lei nova. É o caso, por exemplo, de FERNANDO JOSÉ BRONZE10, que opina que “Excepcionalmente, e sempre que exigências de ordem pública o determinem, pode, contudo, ter de privilegiar-se, em relação, nomeadamente, a contratos duradouros, o prescrito pela lei nova... Pense-se em todos aqueles critérios inovadoramente instituídos pelo legislador e v. gr. colimados à protecção da parte socialmente mais fraca da relação contratual.”.
Por outro lado, no que se refere às disposições de carácter imperativo ou proibitivo da lei nova, que respeitam à violação do contrato, há-de aplicar-se, em princípio, a lei nova aos factos ocorridos na sua vigência11.
Por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento na vigência da lei antiga, os direitos das partes fixados imperativamente na lei (por exemplo, os fundamentos de resolução do contrato por parte do senhorio) são, em nossa opinião, em regra, regulados pela lei nova, por ser irrelevante, para este efeito, a data da celebração do contrato. Isto quanto aos factos ocorridos na vigência da lei nova, bem entendido12.
A mesma ideia é defendida por ANTUNES VARELA13 relativamente aos efeitos da violação de contrato-promessa de compra e venda:
“É perfeitamente defensável a ideia – diferente – de que à violação ou infracção do contrato – não exclusivamente subordinada à vontade presumível das partes, mas também ao comando imperativo da lei – se aplique antes a norma vigente à data em que a violação ou infracção é cometida”.
É também esta a solução de direito transitório, estabelecida pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 39/99/M, para uma matéria respeitante ao regime dos contratos em que existe sinal14, em que o novo Código inova, a do direito à indemnização pelo dano excedente, previsto no n.º 4 do artigo 436.º: no que toca aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do Código há lugar a esta indemnização se o incumprimento ocorrer já na vigência da lei nova».
Ou seja, à violação do contrato-promessa é aplicável a lei vigente à data da violação.
Relativamente à fracção I9, tendo a venda ocorrido a 4 de Junho de 1999, na vigência do Código Civil de 1966, não se pode aplicar o disposto no n.º 4 do artigo 436.º do novo Código, que é inovador. Tem o 1.º autor direito ao dobro do sinal, como decidiu o acórdão recorrido.
Quanto à fracção H9, tendo a venda ocorrido já na vigência do Código Civil de Macau, aplica-se o disposto no n.º 4 do artigo 436.º.

4. O momento relevante para se aferir da indemnização pelo dano excedente a que se refere o n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil
  Relativamente à fracção H9 há, agora, que estabelecer o momento relevante para se aferir da indemnização pelo dano excedente a que se refere o n.º 4 do artigo 436.º do Código Civil, se a data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil, ou o momento de incumprimento dos contratos, ou outra.
  Dispõe o artigo 436.º do Código Civil:
Artigo 436.º
(Sinal)
1. Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.
2. Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado.
3. A parte que não tenha dado causa ao incumprimento poderá, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, quando esse poder lhe seja atribuído nos termos gerais.
4. Na ausência de estipulação em contrário, e salvo o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste.
5. É igualmente aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 801.º
  
Uma das funções do sinal é a determinação prévia (ou forfaitaire) da indemnização devida em caso de não cumprimento.15
Quando o não cumprimento do contrato é devido ao que recebe o sinal, tem aquele que prestou o sinal o direito de exigir o dobro do que houver prestado.
O novo Código prevê o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior ao valor do sinal ou ao do seu dobro.
O dano excedente constitui aqui o valor de mercado da fracção, que é o valor que o promitente-comprador terá de despender para adquirir uma fracção semelhante à que havia prometido comprar. Mas não tem direito ao sinal, nem ao seu dobro, já que recebendo o valor actual da fracção isso permite-lhe pagar a totalidade do preço de uma fracção semelhante. Recorde-se que o valor do sinal era o preço do pagamento da fracção que prometeu comprar.
O acórdão recorrido entendeu que o momento relevante para se aferir da indemnização pelo dano excedente é o de incumprimento dos contratos, com os seguintes fundamentos:
- O valor do dano não pode estar dependente da mera vontade do credor, quanto à propositura da acção;
- Esse é o momento relevante na norma do Código Civil português, em que o Código Civil de Macau se terá inspirado.
Já os autores, ora recorrentes, pugnam pela data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, pois que o legislador de Macau não quis seguir o regime português.
Os argumentos do acórdão recorrido a favor da solução de que o momento relevante para se aferir da indemnização pelo dano excedente é o de incumprimento dos contratos, mostram algumas debilidades.
Nos termos do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil português, quem prestou o sinal pode exigir o dobro ou, se houve tradição da coisa, o seu valor à data do não cumprimento da promessa.
A solução de Macau é diferente, prevendo o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior. Mesmo que a solução tenha semelhanças com o regime português, o certo é que não se prevê que o valor do dano seja à data do incumprimento, pelo que, da omissão, o que se pode retirar é que o legislador de Macau não quis a solução portuguesa. Por isso não parece razoável aplicar o regime português, que o Código Civil de Macau não pretendeu seguir.
O argumento do acórdão recorrido de que não seria razoável deixar na mão do credor o momento em que viesse a propor a acção, face à revalorização do imóvel, não é consistente. Por um lado, entre a propositura da acção e o momento a atender (o encerramento da discussão em 1.ª instância) sempre decorre algum tempo. E entre os dois momentos a coisa tanto pode valorizar como desvalorizar, o que está totalmente fora do controlo do autor da acção. O caso dos autos é bem ilustrativo: aquando da propositura da acção em 2012, a fracção agora em causa valia HKD$4.510.000,00. Aquando do encerramento da discussão em 1.ª instância, em 2015, já valia HKD$10.000.000,00. Mas podia ter sucedido o inverso.
Por outro, não faz sentido dizer que o promitente-comprador pode estar à espera da revalorização do imóvel. Porque se ele necessitar ou pretender comprar uma fracção, para habitar ou não, após receber o valor de mercado fixado judicialmente, do promitente-vendedor, também irá pagar mais para adquirir, já que todos os imóveis se valorizaram e não apenas aquele que ele prometeu comprar.
Sendo a solução de Macau a do dano excedente, não há dúvidas de que a regra da obrigação de indemnização, de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 560.º do Código Civil, é a de que “… a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”.
É que é pacífico que esta norma também se aplica à responsabilidade contratual.
Ora a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, sendo a indemnização liquidada por via judicial, é a do encerramento da discussão em 1.ª instância16.
Assim, merece provimento o recurso nesta parte.
Na aplicação prática do dispositivo legal, temos que o promitente-comprador tem direito a receber a quantia de HKD$10.000.000,00, que é o valor do dano.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem parcial provimento ao recurso e:
A) Confirmam o acórdão recorrido na parte em que condenou a 1.ª ré, C, a pagar ao 1.º autor, A, a quantia equivalente ao sinal em dobro relativamente à fracção I9;
B) Revogam o acórdão recorrido na parte atinente à fracção H9, condenando a 1.ª ré, C, a pagar ao 1.º autor, A, a quantia de HKD$10.000.000,00 (dez milhões de dólares de Hong Kong).
Custas no TUI e TSI na proporção do vencido, sem prejuízo da decisão do acórdão recorrido quanto à ali recorrente E.
Macau, 30 de Março de 2017.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 VAZ SERRA, em anotação a acórdão na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 100.º, p. 253 e segs.
2 Neste sentido, também, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código ..., 1986, 3.ª ed., Volume II, p. 60.
3 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código..., vol. I, 4.ª ed., p. 61.
4 J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Casos de Aplicação Imediata, Critérios Fundamentais, Coimbra, Livraria Almedina, 1968, p. 96.
5 Abreviatura de Lei Nova.
6 Abreviatura de Situações Jurídicas.
7 FERNANDO JOSÉ BRONZE, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 773.
8 MÁRIO DE BRITO, Código Civil Anotado, edição do autor, 1968, Volume I, p. 29 e 30.
Já se uma lei nova vier a elevar a idade para contrair casamento, é evidente que não se aplica aos casamentos celebrados antes da sua entrada em vigor, por estarem em causa as condições de validade substancial do acto (primeira parte do n.º 2 do artigo 11.º do Código Civil).
9 Entre outros, J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação..., p. 103 e segs.
10 FERNANDO JOSÉ BRONZE, Lições .., p. 788 e nota (61).
11 Contra, J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação..., p. 103 e segs., em particular p. 112 a 121.
12 Mesmo não havendo normas de direito transitório aplicáveis, como sucede presentemente quanto aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do novo Código (artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto).
13 ANTUNES VARELA, anotação jurisprudencial, em Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128.º, p. 142 e 143.
14 Como se sabe, no contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor (artigo 435.º do Código Civil).
15 CALVÃO DA SILVA, Cumprimento ..., p. 301.
     16 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código ..., 1987, 4.ª ed., Volume I, p. 583 e 584.
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Processo n.º 5/2017