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Processo n.º 718/2015 Data do acórdão: 2017-3-23 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– contestação escrita
– invocação abstracta e genérica dos factos para defesa
S U M Á R I O
Se o arguido, na contestação escrita apresentada, anda a defender-se através da invocação, de forma abstracta e genérica, de “todos os factos constantes dos autos que lhe sejam favoráveis”, sem impugnar nem excepcionar a matéria de facto acusada, essa contestação não pode relevar como uma contestação escrita propriamente dita.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 718/2015
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com o acórdão constante de fls. 437 a 444 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR2-14-0233-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material, na forma consumada, de dois crimes de falsificação informática, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.os 10.º, n.os 1 e 4, alínea 1), e 12.º, n.º 1, da Lei n.º 11/2009, de 6 de Julho, na pena de um ano e sete meses de prisão por cada, e de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.º 347.º do Código Penal (CP), na pena de nove meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas três penas, finalmente na pena única de dois anos de prisão efectiva, veio recorrer o arguido A, aí já melhor identificado, para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pretender a revogação do dito aresto, mediante a invocação das seguintes questões, em essência (cfr. a motivação do recurso apresentada a fls. 490 a 501 dos presentes autos correspondentes):
– existência do vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.º 400.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), por nesse acórdão ter o Tribunal recorrido referido expressamente que “não há qualquer contestação escrita”, contra, pois, o facto nítido de que o arguido já apresentou a contestação escrita, então admitida pelo Tribunal;
– a violação do art.º 29.º, n.º 2, do CP, por o Tribunal recorrido não ter qualificado juspenalmente a conduta do próprio arguido no tocante à falsificação informática como sendo um crime continuado de falsificação informática;
– a indevida consideração de existência de concurso real efectivo entre o crime de abuso de poder e o crime de falsificação informática, por, no caso, vista a factualidade provada, por um lado, e, por outro, atenta a natureza subsidiária do tipo legal de abuso de poder do art.º 347.º do CP, o próprio arguido não dever ser punido autonomamente como autor deste delito penal;
– e a violação do disposto nos art.os 40.º, 64.º e 48.º do CP, por não se ter decidido pela suspensão da execução da pena de prisão.
Ao recurso respondeu a Digna Delegada do Procurador junto do Tribunal a quo no sentido de improcedência da argumentação do recorrente (cfr. a resposta de fls. 507 a 510v).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 520 a 522v), pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que:
– o acórdão ora recorrido consta de fls. 437 a 444 dos autos, cujo teor integral se dá por aqui inteiramente reproduzido;
– segundo a matéria de facto aí dada por provada, e na sua essência:
– o arguido ora recorrente, como guarda policial em exercício de funções no Terminal Marítimo do Porto Exterior de Macau, introduziu, em datas diferentes, e por método materialmente idêntico, dois conjuntos de registos informáticos, falsificados, de saída e entrada fronteiriços de um cidadão do Interior da China, para fins de prorrogação, sucessivamente por duas vezes, do prazo de estadia deste indivíduo em Macau, a pedido (também sucessivamente por duas vezes) de outrem a favor deste (cfr. mormente os factos provados n.os 8 a 20);
– quando este indivíduo pretendia sair de Macau através desse Terminal no dia 7 de Agosto de 2013, foi descoberto por um outro guarda policial, através da pesquisa de dados informáticos, que esses dados de registos de saída/entrada fronteiriços não corresponderam aos dados do visto e à data de última entrada em Macau do mesmo indivíduo como tal registados no respectivo salvo-conduto, pelo que o indivíduo foi levado por outros dois guardas policiais à sala de graduado de serviço para fins de investigação (cfr. o facto provado n.º 22);
– sucede que o arguido mandou mensagens curtas para os telemóveis desses três guardas policiais, nelas dizendo que tinha um amigo a sair de Macau, e pedindo até expressamente àqueles dois guardas investigadores que “dessem facilidade” a tal indivíduo, chegando mesmo a pedir expressamente a um desses guardas investigadores que deixasse primeiro tal indivíduo a ir-se embora (cfr. o facto provado n.º 23);
– o arguido apresentou a contestação escrita em chinês (que ora consta de fl. 394 dos autos), na qual, para além de apresentar o seu rol de testemunhas, pedir a junção de um documento e solicitar a consulta dos autos, afirmou defender-se através da invocação, de forma abstracta e génerica, de “todos os factos constantes dos autos que sejam favoráveis ao arguido”, sem ter impugnado ou excepcionado a matéria fáctica por que vinha acusado penalmente (cfr. o teor da contestação de fl. 394 dos autos);
– no relatório do acórdão recorrido, consta referido, em chinês, que “não há qualquer contestação escrita”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
O recorrente coloca primeiro a questão de erro notório na apreciação da prova, mas de modo descabido. É que a referência, no relatório do acórdão recorrido, de que “não há qualquer contestação escrita” não afectou de modo algum o julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido, porquanto na contestação escrita então apresentada pelo recorrente, este não chegou a impugnar ou excepcionar concretamente a matéria de facto por que vinha acusado. Ademais, ante esse dado processual (de ele não ter impugnado nem excepcionado a matéria de facto acusada), a contestação então apresentada não pôde relevar processualmente como uma contestação escrita propriamente dita ou no sentido estrito do termo. Nesta perspectiva, foi acertada tal referência de que “não há qualquer contestação escrita”.
Outrossim, não pode ter violado o acórdão condenatório o disposto no art.º 29.º, n.º 2, do CP, porquanto a situação provada nos autos não é subsumível a qualquer “situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente” de que fala neste preceito legal. Sobre o sentido e alcance desse pressuposto material para aferição do crime continuado, é de consultar os preciosos ensinamentos do PROFESSOR EDUARDO CORREIA, in Direito Criminal, Volume 2, Almedina, 1992 (reimpressão), páginas 208 e seguintes, aliás já seguidos, de entre outros arestos, no acórdão deste TSI, de 5 de Dezembro de 2013, no Processo n.º 744/2012.
É, pois, também acertada a qualificação jurídico-penal dada pelo Tribunal recorrido aos factos provados nos autos como integrando dois crimes de falsificação informática.
Também naufraga a tese de não concurso efectivo real entre o tipo legal de falsificação informática e o de abuso de poder. É que no caso concreto dos autos, e atenta a factualidade provada acima especificadamente referida na parte II do presente acórdão de recurso, mostra-se claro que o recorrente, ao ter pedido expressamente aos acima referidos dois guardas policiais investigadores que dessem facilidade ao caso do indivíduo em questão, e até pedido expressamente a um desses guardas que deixasse primeiro esse indivíduo a ir-se embora, cometeu sem mais nem menos o crime de abuso de poder por que vinha acusado.
É, assim, correctamente condenado o arguido como autor também do crime de abuso de poder.
E quanto à pretendida suspensão da execução da pena de prisão, entende-se que dadas as elevadas exigências da prevenção geral da conduta do arguido de falsificação informática (qualificada) e de abuso de poder, a mera censura dos factos e a ameaça de prisão não dão para realizar de modo adequado e suficiente tal finalidade da penição.
Improcede efectivamente o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada pela análise acima feita.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com quatro UC de taxa de justiça.
A presente decisão é irrecorrível nos termos do art.º 390.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Comunique a presente decisão ao Comissariado contra a Corrupção, e ao Corpo de Polícia de Segurança Pública.
Macau, 23 de Março de 2017.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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